UM POUCO SOBRE ARTE E OBRAS-PRIMAS

This book is intended for all who feel in need of some first orientation in a strange and fascinating field. It may serve to show newcomers the lie of the land without confusing them with details; to enable them to bring some intelligible order into the wealth of names, periods and styles which crowd the pages of more ambitious works, and so to equip them for consulting more specialized books” (primeiras linhas do prefácio de E. H. Gombrich, The Story of Art).

A história da arte de E. H. Gombrich

Esta coluna destina-se a todos aqueles que sentem necessidade de uma primeira orientação (ou querem refletir criticamente) em um extraordinário e fascinante campo de estudo. Pode servir de apresentação geral aos recém-chegados, sem confundi-los com detalhes; ou os tornar aptos a atingir alguma ordem inteligível em um mar de nomes, períodos e escolas que se acumulam nas páginas de obras mais ambiciosas e, assim, prepará-los para a consulta de trabalhos mais especializados.

Falemos um pouco de arte…

(Muitos) anos atrás, quando fui morar na Itália, um mundo novo foi descortinado para mim. Em vários aspectos. Ou seja, vários mundos. Um dos que lembro sempre com muito carinho foi o mundo da arte.

Ainda era a época em que “todo” conhecimento não cabia nos bolsos (em celulares) e a comunicação não era tão fácil e barata como hoje. Lembro que abri a minha primeira conta de e-mail (que tenho até hoje!) naquele longínquo ano 2000. Era o tempo em que se ia à Faculdade ou a cursos técnicos para adquirir conhecimento fundamental para a formação profissional e que dificilmente poderia ser adquirido de outra forma. Era a época em que se respeitava mais os “cabelos brancos” porque eles eram presumivelmente fonte importante para adquirir conhecimento, assim como as coleções de folhas escritas de papel (vulgo “livros”) cuidadosamente reunidas em bibliotecas públicas ou particulares.

Tive a sorte (hoje diria privilégio) de ter sido criado em meio a livros e a “cabelos-brancos”: na minha casa, as bibliotecas (sim: plural!) reuniam mais de 20.000 volumes (2.000 só no meu quarto, desde que eu “me lembro por gente”) e meu pai era um “cabelos-brancos” (embora calvo…) sempre disposto a conversar sobre qualquer assunto.

E dentre os seus assuntos preferidos estava a arte. Não obstante ele próprio nunca tivesse saído do país, dizia que podia conhecer todos os maiores museus pelos livros que tinha. Aos museus paulistas, levou-me a todos. Várias vezes (perdi a conta de quantas vezes pisei com ele no Museu do Ipiranga, por exemplo). Por tudo isso, quando vi a possibilidade de ir à Europa, evidentemente inseri nos meus planos a visita a museus. Como fui morar em Roma, os Museus do Vaticano eram a primeira parada.

Passei o dia inteiro pelos famosos corredores lotados de turistas: da Galeria dos Mapas (normalmente uma passagem mais rápida para a horda de curiosos) à Capela Sistina (onde a sensação se aproxima bastante do empurra-empurra de uma Estação da Sé lotada, mas com a relevante diferença de se poder levantar a cabeça para respirar e se deparar com Michelangelo). Na saída, caminhando pela famosa escada helicoidal de Giuseppe Momo, fui tomado por um sentimento de frustação. Era tudo bonito… mas não mais do que bonito… E bela pode ser a natureza, como um pôr do sol… A arte, como um produto humano, não podia ser somente o belo.

Comecei então a me expor mais ao “melhor das artes”: concentrei-me em “obras-primas”. Elas, em sua acepção tradicional, são “a mais bela obra de um artista, de uma época, de um gênero etc. … o que é perfeito em seu gênero” (Houaiss): e mais uma vez deparei-me com a ideia do “belo”… E se era para ver obras-primas, busquei a “obra-prima das obras-primas”: a Mona Lisa. Providenciei uma ida a Paris.

La Joconde, Salle des états

Chegando lá, na sala lotada do Louvre, consegui ficar por alguns instantes diante do famoso quadro. Saí, mais uma vez, sinceramente decepcionado e, em um espaço contíguo, parei diante da “Coroação de Napoleão” (talvez para inconscientemente contrapor as dimensões monumentais desse quadro com o de Da Vinci). Fiquei por minutos absorto por pensamentos variados.

Estava errando em algo. E não tinha “cabelos-brancos” para me ajudar. Meu pai não era uma opção pela dificuldade de comunicação (ah se já houvesse WhatsApp, Messenger, Instagram etc.!). As bibliotecas e livrarias eram a única solução. E Paris era cheia delas. Foi nesse momento que eu encontrei um livro que efetivamente mudou minha forma de pensar: “A História da Arte” de Gombrich. Varei horas nos agradáveis cafés da cidade nos três dias seguintes lendo o máximo que pude da obra.

A “revolução” (perdão pelo termo) para mim foi começar a me concentrar mais no artista do que na arte em si (“There really is no such thing as Art. There are only artists” – Gombrich). A ideia central é tentar entender o contexto (pessoal e social) de produção de uma obra para entender o seu verdadeiro significado (inclusive do ponto de vista da técnica empregada). Resolvi testar a ideia em outro museu (D’Orsay) e fiquei maravilhado com o resultado (hoje entendo que tive sorte por escolher esse museu, pois essas circunstâncias por detrás da arte afloram mais facilmente nos artistas do período abrangido pelo acervo principal dele). Comecei a gostar de arte! Melhor: dos artistas!

Voltei a Roma e comecei a adotar a mesma abordagem com outros assuntos, como a música: finalmente começou a fazer sentido tudo o que eu sempre ouvi nos velhos vinis e cd’s de música “clássica” e jazz do meu pai. A técnica e sua evolução eram importantes, mas a verdadeira arte estava escondida atrás. O que não dizer da beleza e significado de canções da nossa Bossa Nova em vozes de quem nunca teve a competência de um cantor lírico (mas que ainda assim transbordam em lirismo)?

E isso funcionaria com o estudo do direito? Afinal de contas, estava na Sapienza para fazer uma pós-graduação em direito romano (não em arte, música etc.). Comecei a estudar o contexto de cada autor que pesquisava, vinculando-o a uma sociedade, escola, contexto econômico, jurídico etc. Foi libertador. Quantos dos que estão lendo este texto conhecem Cujácio, Grócio, Pufendorf, Pothier, Kant, Savigny, Kelsen, Ross, Teixeira de Freitas, Pontes de Miranda etc.? Quase todos, pois suponho que sejam juristas. Mas quantos não se restringiram a ter contato apenas com trechos dessas obras (mui comumente por citações indiretas) e efetivamente as leram (ainda que por traduções)? Mais: quantos contextualizaram as obras-primas desses autores com o restante de sua produção? E quantos a contextualizaram com o momento em que foram produzidas e no qual se inseriam?

Um exemplo mais específico: vejo muitos estudantes lendo (não espontaneamente) a “Teoria Pura do Direito” de Kelsen. Contudo, vejo poucos tentando entender o contexto dessa obra na primeira metade do século XX. E menos ainda são os que a compreendem (não necessariamente por conta da dificuldade da obra, mas por conta da abordagem equivocada dos leitores).

Quando alguém se propõe a fazer isso depara-se com uma realidade “inafastável”: do século XV (para nos restringirmos à produção consubstanciada em livros impressos) ao momento atual, uma parcela absolutamente enorme das obras-primas dos grandes juristas (tomem-se como exemplo os citados acima) foi produzida à luz de quatro textos jurídicos romanos cujo conjunto é chamado hoje de Corpus Iuris Civilis (são eles: as Institutas, o Digesto, o Código e as Novelas).

É realmente possível entender Cujácio, Grócio, Pufendorf, Pothier, Kant, Savigny e Teixeira de Freitas (para não adentrar o século XX) sem conhecer o direito dos romanos? Se a beleza de suas obras-primas só pode ser captada em toda a sua plenitude pelo contexto de suas épocas e o Corpus Iuris Civilis estava (de um modo ou de outro) em vigor em suas épocas, quero crer que não. Um grande problema que temos em nosso ensino jurídico é que não treinamos nossos juristas empregar esse raciocínio.

Voltemos à arte… Algo que sempre me impressionou em museus europeus é que frequentemente eu vejo excursões de escolas aos museus. Como curioso, já acompanhei algumas delas. A última vez acho que foi no Hermitage, em São Petersburgo. Vi um grande grupo de alunos uniformizados subindo a bela escadaria monumental. Aproximei-me e, com autorização, acompanhei o grupo por algumas salas. Não era preciso saber russo para admirar a habilidade de professores-monitores em, com dons quase teatrais, prender a atenção das crianças (acredito de 10 anos). De forma lúdica, eles contextualizavam as principais obras.

No Brasil, essa é cena rara. As crianças ficam entediadas não por ser arte, mas por não haver arte na comunicação com elas. E passam a não entender ou gostar de arte. Algumas têm uma admiração falsa (mecânica) pela arte; outras desenvolvem ojeriza por ela.

Muito parecem alguns juristas atuais, em sua atitude com relação ao direito romano. Não se trata de gostar ou não gostar de direito romano, mas de, ao menos, não negar o inegável: que ele foi um dos pilares para a construção do nosso direito contemporâneo (diretamente ou através de juristas que construíram sobre suas fundações).

Reitere-se: não há como se verdadeiramente compreender grande parte da produção jurídica dos últimos 500 anos (ao menos) sem um mínimo conhecimento do direito romano. Tentar fazê-lo seria como tentar captar toda a “beleza” de uma obra-prima simplesmente olhando-a “descontextualizadamente”. Os que dizem que conseguiram fazê-lo (e ignoram o direito romano) agem como crianças que, diante de um quadro de Tarsila do Amaral, dizem que o compreenderam.

E, como se verá em breve nesta coluna, o potencial do direito romano não esgota somente nessa ideia. E veremos, aos poucos, como entender e estudar a maior obra-prima dos romanos: o Corpus Iuris Civilis. Por ora, reproduzo uma frase em espanhol que meu maior “cabelos-brancos” (meu pai) sempre repetia, como uma sugestão para reflexão: “Yo soy yo y mi circunstancia, y si no la salvo a ella no me salvo yo” (Ortega y Gasset).

Como disse acima, falemos um pouco de arte… mas de uma arte específica… da arte (ars) do bom e do équo (Celso)[1]. E estudemos juntos uma espécie do conhecimento (notitia) das coisas divinas e humanas: a sabedoria (scientia) do justo e do injusto (Ulpiano)[2]. Aguardamos todos neste nosso encontro quinzenal.

* Esta coluna é produzida pelos professores Bernardo Moraes e Tomás Olcese e por estudiosos convidados, todos interessados no Direito Romano e em suas conexões com o Direito Contemporâneo.

[1]Ars boni et aequi” – D. 1, 1, 1 pr. (para os não-iniciados: Digesto, livro 1º, título 1º, fragmento 1º, em seu princípio – “principium”).

[2] D. 1, 1, 10, 2, e Inst. 1, 1, 1 (Institutas de Justiniano, livro 1º, título 1º, fragmento 1º).

Autor

  • Bacharel, Doutor e Livre-Docente pela Faculdade de Direito da USP (FDUSP), Especialista (“Perfezionato") em Direito Romano pela Università di Roma I – La Sapienza, Professor Associado (graduação e pós-graduação) da FDUSP (Direito Civil e Direito Romano). Procurador Federal (AGU) – https://www.bernardomoraes.com



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