SOBRE DIREITO E PSICANÁLISE

Notas sobre o filme “O Estudante de Praga”

Direito e Psicanálise
Cena inicial entre Balduin e Scapinelli em “O Estudante de Praga”.

A coluna de hoje promove uma reflexão sobre as fronteiras do direito com a psicologia, mais precisamente com a psicanálise.

O cenário da discussão é o filme O Estudante de Praga. Em razão de um contrato assinado por um estudante com o diabo as cenas se desenrolam mostrando a força de como o que entendemos como Lei (mesmo o contrato como lei entre as partes) é um elemento que funda tanto o direito quanto a psicanálise.

Em 1913, três anos após o aparecimento do termo narcisismo no pensamento de Freud, numa nota de rodapé em reedição dos Três ensaios sobre a teoria da sexualidade[1], surge na Alemanha a versão original do filme O Estudante de Praga, inaugurando o cinema expressionista alemão[2].

Nessa época as primeiras produções do cinema expressionista aconteceram na Dinamarca e os temas centrais abordados eram a loucura, a angústia, o misticismo e a bruxaria e eles contavam, em alguns casos, com cenas de alucinações que exigiam novas técnicas fotográficas e cenários que propiciassem jogos de luzes reveladores.

Por influência do cinema dinamarquês, o filme protagonizado por Paul Wegener é o primeiro filme alemão no mercado externo e contou com a direção do sueco Stellan Rye com produção da Union Film, agrupando diversos temas da literatura fantástica como a ideia do duplo no conto William Wilson de Edgar Allan Poe e no Retrato de Dorian Gray de Oscar Wilde, nos contos de T. A. Hoffmann e no pacto com o diabo no Fausto de Goethe.

O enredo é construído no ano de 1820, em Praga, que pertencia, então, ao império Austro-húngaro. O filme tem início com o protagonista Balduin – um estudante considerado o melhor espadachim de Praga -, sentado, desolado e afastado do ambiente principal que reproduz a festança dos jovens estudantes de Praga na frente de uma taverna. Ao seu lado se aproxima Scapinelli, uma figura diabólica, que o cutuca com os dedos, questionando sobre seu desânimo. Balduin revela sua falta de dinheiro e o interesse de obter fortuna e de conseguir uma rica esposa, representada no filme na figura da Condessa Margit.

Sob a advertência dos olhares de uma cigana – personagem que aparece misticamente em todo o desenrolar da narrativa -, o protagonista faz um acordo em seu apartamento com Scapinelli para atingir seu desejo de ser rico e ter uma rica esposa.

No acordo assinado ele permite que em troca, o mago possa tirar qualquer coisa de seu pequeno quarto. A escolha inusitada revela a figura mefistofélica de Scapinelli: ele pega o reflexo do estudante no espelho. Em duas cenas anteriores, a pressuposição do sentido do acordo se anuncia.

Na primeira, o estudante aparece de frente ao espelho de seu quarto e segurando sua espada na mão simula um ataque contra si mesmo no espelho.

Fica evidenciado nesse momento que apesar de ser o melhor espadachim de Praga, seu maior inimigo era ele mesmo. Tal sentido é reforçado quando o diabo toma sua imagem refletida no espelho. No início ele parece um pouco atordoado, mas logo se regozija (goza) com o fato de ter ficado rico e alcançado, agora, a possibilidade de ter seu amor correspondido, mesmo não podemos mais “ver” a si mesmo.

Já na segunda cena, Balduin e Scapinelli estão caminhando lado a lado por uma estrada, quando um cavalo montado pela condessa Margit passa em disparada rumo ao lago e este se põe a correr e salva a condessa de um afogamento, ganhando dela, como retribuição, uma medalha com sua foto e o agradecimento de seu pai que, ao tempo que Balduin a salva, chega à beira do lago em busca à filha. O contexto que antecede a disparada do cavalo da condessa é sua participação numa caçada juntamente com seu pretendido futuro marido e primo, o Conde Schwarzerberg. Eles acabam se perdendo em meio a floresta e o Conde aproveita o acontecido para tratar da promessa de seu casamento com a Condessa que, sumariamente, lhe responde que irá atender a ordem de seu pai casando-se com ele, mas que não o amava. Balduin, então rico, passa frequentar a alta sociedade de Praga e a cortejar clandestinamente Margit.

Interessante ressaltar que nas cenas de cortejo a imagem sempre aparece vagando e todas as vezes é por ele confrontada.

A primeira aparição da imagem ocorre logo após um cortejo em que os personagens estão num baile de gala e se afastam dos demais chegando a uma sacada do Castelo onde ocorria a festa. Neste momento eles estão sendo espiados pela cigana que chega até lá escalando as paredes e fica escondida atrás de um balaústre. O encontro é frustrado pela chegada do Conde Schwarzerberg, com quem a Condessa vai embora, mas deixa cair ao chão um lenço que é rapidamente apanhado por Balduin. Assim que ele pega o lenço e começa a andar, dá de cara com sua imagem num parapeito. Ao vê-la ele se desconcerta, pergunta quem ela é esta simplesmente desaparece. Logo após o acontecimento chegam dois convidados do baile que encontram o espadachim pasmo e sem forças. Estes tentam lhe mostrar um espelho para que se veja e recebem uma investida feroz contra esta atitude.

Em sua saída do castelo, Balduin aguarda escondido atrás de uma árvore a passagem da carruagem da Condessa e lhe entrega o lenço, que havia deixado cair no momento em que o Conde a levara embora, envolvido na medalha que ganhará dela no momento em que a salva do afogamento.

Não suportando ficar sem realizar a correspondência de seu amor, ele propõe um encontro às escondidas com a Condessa no cemitério judeu, onde não poderiam ser vistos por ninguém. Seu convite é atendido, mesmo sob as advertências da cigana que continua sempre à espreita, e censura a Condessa.

Cena do cemitério entre Margit e Scapinelli
Cena do cemitério entre Margit e Scapinelli

Ao chegar no cemitério Margit se depara com Scapinelli sentado na entrada, ao ver sua figura diabólica, lembrando das advertências da cigana, faz algumas vezes o sinal da cruz em proteção e se dirige para dentro do cemitério, fazendo uma parada numa fonte para rezar e encontra-se em seguida com Balduin.

Novamente, a imagem aparece e sendo vista pelos dois, põe a perder novamente o encontro, com a debandada da Condessa.

A trama logo se intensifica quando a cigana, ao entrar escondida no quarto da condessa, furta às escondidas o lenço com a medalha que Balduin havia lhe dado e os entrega ao Conde Schawrzerberg, como se a Condessa simplesmente tivesse os perdido.

O Conde repreende a cigana e por lembrar que aqueles bens estavam antes em poder do espadachim, vai ao seu encontro e o convoca para um duelo de espadas.

O pai da Condessa, Barão Waldis, para proteger a manutenção de sua estrutura familiar nobre e as suas propriedades, vai ao encontro de Balduin e o faz  prometer que não matará seu adversário. A cena seguinte é emocionante: o espadachim dirige-se ao local do duelo e se depara no caminho com seu espectro limpando de sangue a espada. A imagem havia assassinado o Conde.

Balduin se desespera e parte em disparada para casa Barão para explicar o acontecido, mas não é recebido. Ele se dirige desiludido para taverna, bebe e inicia um jogo de cartas no qual, aos poucos, vai derrotando cada um dos seus adversários. Quando seu último adversário vai embora o reflexo de sua imagem aparece novamente, senta à mesa do jogo, e lhe pergunta “Quer jogar cartas comigo?”, ele a interpela “O que apostaremos?”, ao que ela responde “Um de nós dois”.

O estudante mais uma vez atordoado foge em direção à casa da Condessa e escondido consegue entrar em seu quarto para lhe explicar o ocorrido e lhe pedir desculpas. No episódio há um espelho e a Condessa assustada questiona onde estaria o reflexo de Balduin, eis aí a deixa para que mais uma vez o seu duplo entre em atividade, aparecendo para ambos e gerando mais uma vez o colapso do encontro entre os amantes.

Scapinelli rasga o contrato sobre o corpo de Balduin.

Balduin, completamente desnorteado, corre para casa e, derradeiramente, lá encontra de novo seu reflexo. Não podendo mais suportar vê-lo, pega um revólver e atira nele. Ao atirar, a imagem some e ele tem a ligeira impressão de estar livre, até perceber que na verdade atingira seu próprio coração e morre. Scapinelli, então, entra no quarto com uma feição satírica e rasga o contrato sobre seu cadáver.

Sucede-se, enfim, a última cena do filme e nela se vê o espectro, com um sorriso sarcástico, empoleirado sobre o túmulo de Balduin.

Em várias passagens do filme, nos escritos em que aparecem os diálogos os personagens e que intercalam as cenas, aparecem poemas de Alfred de Musset entoando o enredo da estória e logo após a última cena o seguinte poema é transcrito: “Não sou Deus, nem posso ser o demônio, mas com desprezo, pronuncio o seu nome, onde quer que estiveres, eu também estarei e, em sua última hora, diante de tua lápide, me sentarei sobre sua tumba”.

A primeira impressão que o filme me despertou é a possibilidade de fazer uma correspondência sobre passagem do auto-erotismo ao narcisimo em Freud com o estádio do espelho em Lacan. O sujeito que irá advir é formado antes na assunção do bebê que não nasce como eu, mas assume a imagem antecipada, se identificando a ela.

Essa imagem adquirida pelo bebê em seus gestos lúdicos e a relação que estabelece com a imagem refletida no espelho é assegurada no olhar adulto (mãe) que traz a promessa de que a imagem expressa que aquele é mais Um entre os demais (terceiro). Por esse movimento chega-se ao princípio da alteridade.

Enquanto num primeiro momento o sujeito é capturado pela imago materna, logo em seguida é capturado pela sua própria imagem no espelho que para sempre o alienará neste outro que é ele mesmo. O estádio do espelho é a experiência derradeira em que se coloca o eu como outro.

Na imagem de uma completude e perfeição (instaurada no narcismo primário) o sujeito reconhece-se e passa a gerar uma relação de amor consigo mesmo (eu-ideal), algo que vai ser cultivado e defendido como necessidade da satisfação narcísica que se transforma na demanda de ser objeto de amor de um outro.

Além deste tracejo crucial sobre o narcisimo, um rastro ficou sobre o que me evocou o filme, a saber, de que o narcisimo não está ligado apenas à sexualidade, mas também à morte (pulsão de morte). O filme parece corresponder a uma ilustração dessa questão.

Tal ligação parece ocorrer numa forma de substituição. O narcisismo como um substituto (ersatz) da pulsão de morte[3]. A hipótese é de que a duplicação do eu consiste inicialmente um modo narcísico de desmentir a finitude. Essa é a marca do abismo que se instaura no eu que se vê e a imagem refletida.

No filme, o personagem busca uma correspondência amorosa junto à condessa. Ele busca uma identidade alheia para suprir uma característica social que ele não possuía para conquistar a condessa. Em todas as tentativas de realização da correspondência de seu amor, o espectro entre em cena o afronta e acaba com ela.

A relação inicial que me ocorre do narcisimo como um substituo da pulsão de morte é a própria figura de Scapinelli. Ele é o Diabo, ele é a forma do estabelecimento originário do duplo que constitui o próprio Balduin. A sílaba “dia” de Diabo, evidencia a noção de dual, duplo. O conto de Machado de Assis “A igreja do Diabo” revela exatamente isto que pretendo apresentar aqui, pois nele o Diabo reconhece Deus como seu maior rival e por sua vez, Deus reconhece o Diabo como seu maior rival.

Assim, um é o duplo do outro na medida em que – sem levar em conta qualquer concepção moral ou crença religiosa – é possível afirmar, num plano de fundo, que todo ser humano é formado a partir desta mistura paradigmática.

O duplo está em nós[4]. Nós somos seres-para-morte.[5] No Estudante de Praga é o Diabo que propõe o acordo ao personagem e mesmo sem a sua imagem – que lhe foi tomada – esta continua a persegui-lo ativando a irrealização de sua correspondência amorosa.

Na passagem do jogo de cartas, Balduin havia vencido todos os seus adversários até que se viu confrontando consigo mesmo – com sua imagem – que o convida para jogar e cuja aposta seria um dos dois. Este confronto paradoxal tem um ponto alto na cena anterior em que a imagem mata o Conde, mesmo Balduin tendo prometido ao Barão que não o mataria.

Em sua tentativa final de desmentir a finitude, o personagem atira na imagem e enquanto é tomado por um sentimento de liberdade pelo seu desaparecimento, percebe que havia atirado em si próprio. O Diabo rasga o contrato sobre o cadáver, mas a imagem aparece sentada sob a lápide do túmulo de Balduin, com um sorriso irônico. Ela permanece, sempre e para sempre na medida da zonal abissal do duplo que nos funda.

As advertências da cigana e seu papel de promotora da intriga que faz gerar o desafio (o duelo) que propicia a principal possibilidade do personagem ter o desejo de seu amor correspondido, pois agora aquele que era o prometido de sua amada estava morto, compõem muito bem o espaço entre o duplo que nos habita[6] e de sempre estarmos, em verdade, no lugar em que nós mesmos nos colocamos.

O reflexo da imagem ao matar o Conde permite que o protagonista possa pedir perdão, chorar e implorar para realização do seu desejo de ter seu amor correspondido, mas novamente isso não acontece porque a imagem aparece e Balduin foge dela em direção ao seu apartamento, onde acaba por terminantemente encontra-la, cometendo como último ato desesperado seu assassinato/suicídio.

Se, nestes trilhos, o que está em jogo é a finitude, o narcisismo, nos abre, então, no âmbito da clínica psicanalítica, para as possibilidades da própria vida. Para uma vida genuína que reconheça o duplo e o lugar ambíguo do narcisismo em nós.

 

Em tempos como os atuais, em que o narcisismo se espraia num sujeito com possibilidades de simbolização empobrecida, no uso obsessivo das redes sociais com postagens de selfies e de autopromoção, na supervalorização dos corpos, do sucesso e de si e no apagamento do outro, refletir sobre a ambiguidade de uma ética da sobrevivência narcísica hoje em dia (em que o excesso narcísico torna-se suicídio) pode ser um passo para a criação de vivências autênticas nas quais não se precise ganhar o duelo.

[1]O termo narcisismo tem importância angular na psicanálise, tendo sido foi explorado e desenvolvido amplamente por Freud vai muito além do sentido em que aparece pela primeira vez.

[2] Sobre o cinema alemão da época e a discussão em torno da autoria do filme, cf. MÜLLER, Adalberto. O estudante de praga: o duplo, o espelho, o autor. Estudos de cinema. Esther Hamburgues e outros (orgs.) FAPESP, Socine IX. São Paulo, Anablume, 2008, p. 15-24.

[3] O tema é proposto por Otto Rank em obra que utiliza, dentre outros, o filme aqui apresentado.

RANK, Otto. O duplo: um estudo psicanalítico. Porto Algre: Dublinense, 2013.

[4] ASSIS, Machado de. A igreja do diabo. Volume de contos. Rio de Janeiro: Garnier, 1884 e

PRZYBYISKI, Mauren Pavão. O diabo como forma de estabelecimento do duplo: uma análise de ‘A igreja do diabo’ de Machado de Assis. Uniletras, Ponta Grossa, v. 30, n. 1, p. 237-251, jan./jun. 2008, p. 237 a 251.

[5] HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. Vol. 2. 5 Ed., Petrópolis RJ: Vozes, 1997, p. 17.

[6] Cabe aqui uma relação com a ideia freudiana do unheimlich: “a palavra alemã ‘unheimlich’ é obviamente o oposto de ‘heimlich’ [‘doméstica’], ‘heimisch‘ [‘nativo’] – o oposto do que é familiar; e somos tentados a concluir que aquilo que é ‘estranho’ é assustador precisamente porque não é conhecido e familiar […]O que mais nos interessa […] é descobrir que entre os seus diferentes matizes de significado a palavra ‘heimlich‘ exibe um que é idêntico ao seu oposto, ‘unheimlich‘. Assim, o que é heimlich vem a ser unheimlich. […] Em geral, somos lembrados de que a palavra ‘heimlich’ não deixa de ser ambígua, mas pertence a dois conjuntos de idéias que, sem serem contraditórias, ainda assim são muito diferentes: por um lado significa o que é familiar e agradável e, por outro, o que está oculto e se mantém fora da vista”. Cf. FREUD, Sigmund. O estranho in Edição Standard Brasileira das obras psicológicas de Sigmund Freud, J. Strachey (org.) vol V, XVII, Rio de Janeiro: Imago editor, 1986. p. 240-241.

Siga a coluna Fronteiras do Direito.

Autor

  • Doutor e mestre em filosofia do direito e teoria do estado pela PUC/SP. Pós-doutor em filosofia pela UNICAMP. Professor do núcleo de filosofia e teoria geral do direito da Universidade Presbiteriana MACKENZIE. Professor permanente do curso de mestrado e doutorado em direito da Faculdade Autônoma de Direito - FADISP e do curso de mestrado em direito constitucional econômico da UNIALFA



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