“Powell’s radio voice was tense in Donovan’s ear: ‘Now, look, let’s start with the three fundamental Rules of Robotics – the three rules that are built most deeply into a robot’s positronic brain.’ In the darkness, his gloved fingers ticked off each point. ‘We have: One, a robot may not injure a human being under any conditions – and, as a corolary, must not permit a human being to be injured because of inaction on his part.’ ‘Right!’ ‘Two,’ continued Powell, ‘a robot must follow all orders given by qualified human beings as long as they do not conflict with Rule 1.’ ‘Right!’ ‘Three: a robot must protect his own existence, as long as that does not conflict with Rules 1 and 2.’” (Asimov, Isaac, Runaround, in Astounding Science Fiction, Street and Smith, edição de março de 1942, p. 100).
O tema da coluna desta semana bem poderia ser o título de um filme pós-apocalíptico com pitadas de paradoxo temporal. Daqueles exibidos na Sessão da Tarde de meados dos anos oitenta. De gosto até duvidoso.
O leitor curioso o suficiente para ler esta coluna merece uma explicação. Toda semana, Bernardo Moraes, meu querido mentor, amigo e também organizador desta coluna, e eu temos uma conversa telepresencial (ou, como se diz hoje, “fazemos uma live”) no Instagram, apropriadamente intitulada “Papo de Civilista”. O tema da nossa conversa do último 15 de outubro (inspirada numa sugestão do nosso colega Lucas Morelli) foi, justamente, a intersecção entre o direito romano e o regime jurídico da nascente inteligência artificial. Tema improvável, porém bastante disseminado, ao que tudo indica, em certos ramos do conhecimento jurídico.
Mas o que levaria alguém a associar o direito romano à inteligência artificial? Lorenzo Franchini, da Università Europea di Roma, menciona vários motivos[1]. O principal deles, por incrível que pareça, é o paralelo que muitos traçam entre a escravidão romana e a inteligência artificial. O fenômeno da escravidão antiga, nesse sentido, seria análogo ao da moderna robótica. Do ponto de vista socioeconômico, há uma espécie de paralelismo entre o antigo escravo e o moderno robô, entendido como qualquer máquina capaz de substituir a inteligência humana na realização das mais diversas tarefas. O robô de hoje, tal como o escravo da antiguidade romana, é destituído de personalidade jurídica, mas pratica atos jurídicos cujos efeitos se projetam na esfera jurídica de uma pessoa.
De fato, diz Franchini, os escravos da antiga domus romana se assemelham aos aparelhos domésticos equipados com inteligência artificial dos dias de hoje (pensemos em Siri, Bia etc.) e as massas de escravos oriundos das conquistas romanas, principalmente após a Segunda Guerra Púnica (fim do séc. III a.C.), guardam certo paralelismo com os robôs industriais de produção em série, hoje controlados por inteligência artificial (seria o caso dos robôs nas linhas de montagem de automóveis, nos sistemas de transporte de mercadorias etc.). Até os escravos especializados da Roma antiga (professores, administradores, preceptores etc.) seriam análogos aos aplicativos de inteligência artificial especializados em determinados tipos de tarefa (busca de jurisprudência, preenchimento de petições, redação de cláusulas contratuais etc.).
O foco dessas pesquisas é o regime jurídico romano dos atos lícitos e ilícitos. E, nesse sentido, é fundamental a distinção romana entre pessoas juridicamente autônomas (sui iuris) e pessoas subordinadas ao poder de outrem (alieni iuris). “Algumas pessoas estão sob a sua própria potestade, outras sob o poder de outrem”, escreveu Gaio no século II d.C.[2]. Nesse esquema, a pessoa juridicamente autônoma por excelência era o chefe de família (paterfamilias), sob cujo poder se encontravam todos os demais membros da família romana, a saber: os filhos nascidos em justas núpcias (filii familias) e seus descendentes[3], a esposa casada sob o poder marital (uxor in manu), as pessoas livres cedidas por outro chefe de família (personae in mancipio) e, evidentemente, os escravos (servi)[4].
Gaio também relata que os bens e direitos adquiridos por descendentes ou escravos pertenciam ao respectivo chefe de família, pois “quem está sob o nosso poder nada pode ter para si” (nihil suum potest habere)[5]. A situação era bem diferente, entretanto, no que diz respeito à aquisição de deveres. O direito romano mais antigo (ius civile) desconhecia a representação direta e praticamente inviabilizava a alteração da esfera jurídica do chefe de família por prepostos. Logo, os atos praticados por pessoas sujeitas ao poder do pater geravam obrigações naturais ou, no máximo, obrigações cuja exequibilidade era muito restrita.
Era o melhor dos mundos para o pater adquirente/devedor: ficava com todas as vantagens e não adquiria qualquer dever. Já para a parte alienante/credora (normalmente outro pater, convém notar) a situação era exatamente inversa: perdia todas as vantagens e, ainda, tornava-se credor de mera obrigação natural (se contraída com escravo ou pessoa cedida in mancipio) ou exequível somente após a extinção da pátria potestade (se celebrada com filho). Não era, certamente, um ambiente muito propício para o comércio jurídico, especialmente após Roma ter se firmado como senhora do Mediterrâneo[6].
Diante dessa situação, o pretor (magistrado incumbido de conceder ou denegar ações e redigir as fórmulas processuais) paulatinamente atenuou essa “blindagem”. Foi graças à criatividade do direito pretoriano (ius honorarium) que foram criadas ações de responsabilização do pater pelos atos dos seus prepostos, que os autores medievais denominaram actiones adiecticiae qualitatis. O traço comum dessas ações era a gestão de algum negócio pelo qual uma pessoa sujeita ao poder de outrem, com a autorização ou conhecimento do respectivo pater, gerava um dever para o titular desse poder[7].
Foi assim que filhos e escravos, num mundo ainda profundamente patriarcal e desprovido das modernas tecnologias de comunicação remota, na prática passaram a funcionar como uma espécie de extensão (longa manus) do chefe de família. Mas a posição jurídica do escravo diferenciava-se da do filho porque o servo era equiparado, no plano do direito privado, a uma coisa (res) desprovida de personalidade jurídica[8], o que não ocorria com os demais integrantes da família romana. O filho tinha capacidade de fato para se obrigar, mas eventual execução somente podia ser processada após a extinção da pátria potestade ou, se fosse processada antes, recaía exclusivamente sobre eventual pecúlio[9].
É neste ponto que alguns enxergam uma forte analogia entre o estatuto romano da pessoa escrava e o regime jurídico da inteligência artificial: robôs, máquinas, aplicativos e programas são coisas, tal como o antigo escravo romano. Não só: a relação de imputação jurídica entre dono e aplicativo pode (e deve, chega-se a dizer) ser calcada na antiga relação de imputação entre o dominus e seu servus.
Previsivelmente, a responsabilidade delitual é o tema que mais desperta interesse em explorar essa analogia, em especial a repercussão do ato ilícito do escravo na esfera do seu dono. Em tempos mais remotos, a responsabilidade pela prática de atos ilícitos era regulada pelo direito de vingança. Sendo o escravo membro da família, fazia jus à proteção do pater, que podia satisfazer a pretensão da vítima (leia-se: do pater vitimado) de uma de duas maneiras: pagava uma indenização ou entregava o escravo infrator à vítima. Era a antiquíssima responsabilidade noxal, que autorizava o pater a abandonar (noxae deditio) seu filho ou escravo à vingança do clã da vítima[10].
Com o tempo, o direito de vingança foi sendo substituído pelo dever de indenizar. A celebérrima lex Aquilia (286 a.C. aprox.) é a legislação que mais bem revela essa transformação. Porém, a antiga opção dada ao pater de entregar o infrator à vítima (noxae deditio) foi mantida nas ações delituais, que se regiam pelo princípio de que o dano acompanha o infrator (noxa caput sequitur)[11]. De fato, Gaio explica que as ações noxais haviam sido criadas para que o chefe de família pudesse (ainda) escolher entre pagar uma indenização e entregar à vítima o escravo infrator[12]. Afinal, era o pater quem respondia pelo dano. Como o escravo não tinha personalidade jurídica, não faria sentido condená-lo civilmente a pagar uma indenização. Na prática, era uma regra favorável ao chefe de família, que podia escolher de acordo com a sua conveniência. Outras regras decorrentes do princípio noxa caput sequitur também limitavam a responsabilidade do pater. Assim, a alienação do escravo transferia a responsabilidade ao adquirente e a manumissão transferia a responsabilidade ao próprio liberto. Pelo mesmo princípio, a morte do escravo extinguia a responsabilidade[13].
Franchini[14], acompanhando uma parte da doutrina especializada na matéria[15], entende que o direito romano pode servir de inspiração para estruturar o regime da responsabilidade civil em caso de dano causado por um dispositivo controlado por inteligência artificial. E, nesse sentido, sustenta que a responsabilidade do proprietário do robô não deve ultrapassar o “valor intrínseco” do próprio robô, desde que estivesse exercendo normalmente a função para a qual fora projetado no momento do evento danoso. Assim, por exemplo, ocorrendo um acidente automobilístico provocado por um veículo autônomo, o proprietário, independentemente da eventual responsabilidade da montadora, programador etc., responderia civilmente, no máximo, até o valor do automóvel. Em outras palavras: o proprietário deveria gozar das mesmas limitações à sua responsabilidade patrimonial que o direito romano dispensava ao dominus.
Outro tema bastante explorado por essa literatura especializada é a possibilidade de atribuir personalidade jurídica, ou melhor, “personalidade digital”, à inteligência artificial. A ideia não é nova. Lawrence Solum já havia levantado a tese em 1992, chegando, inclusive, a investigar a possibilidade de uma inteligência artificial ser designada administradora de fundos (trustee)[16]. Na época, a ideia parecia um tanto impraticável. Na atualidade, a inteligência artificial é empregada rotineiramente para otimizar carteiras, antecipar tendências nos preços de ativos financeiros e analisar opiniões veiculadas na mídia ou comentários divulgados nas redes sociais acerca de ativos financeiros e empresas[17]. Em muitas áreas do mundo das finanças, o ser humano pensante já foi substituído.
Entre os que defendem a atribuição de personalidade jurídica à inteligência artificial destaca-se Ugo Ruffalo, para quem a transição dos novos “escravos mecatrônicos” da categoria de res a persona deve se espelhar na lenta evolução do regime jurídico da escravidão romana, que criou regras para a proteção dos escravos, muito embora não chegasse a lhes reconhecer a personalidade jurídica[18].
Mas por que atribuir personalidade jurídica à inteligência artificial? Resposta: responsabilidade. Qualificar um robô controlado por inteligência artificial como pessoa altera os fatores da equação indenizatória. A responsabilidade pelo dano causado se deslocaria do proprietário, fornecedor ou programador ao próprio robô, agora provido de personalidade e, portanto, também de patrimônio. Solução inquietantemente conveniente para proprietários, fornecedores e programadores de robôs, mas potencialmente desastrosa para a vítima. Não é preciso pensar muito para perceber o problema: o próprio robô teria que ser proprietário de bens suficientes para ressarcir o dano, já que seria o único responsável pela indenização. O montante da indenização ficaria limitado ao patrimônio do “robô infrator”.
Nessa ordem de ideias, alguns consideram que o pecúlio romano (peculium) fornece um modelo que, como diz Pier Francesco Zari, viabilizaria o reconhecimento, se não de uma verdadeira “personalidade digital”, ao menos de uma “capacidade jurídica limitada à gestão de um patrimônio”[19]. O peculium romano era uma espécie de “patrimônio de afetação” (para usar a terminologia moderna) que permitia a flexibilização da regra nihil suum potest habere. Compreendia uma universalidade de bens de qualquer espécie[20] que o pater destacava do seu patrimônio[21] e entregava, mediante tradição (traditio)[22], a um filho ou escravo, que a administrava como se seus fossem. Os bens, entretanto, pertenciam ao pater, que podia reavê-los a qualquer tempo. Igualmente, os bens do pecúlio revertiam ao pater se o filho ou escravo morresse. A grande vantagem, nesse contexto, era que a responsabilidade do pater por dívidas do pecúlio ficava limitada aos bens do pecúlio, salvo quando o próprio pater tivesse enriquecido com o negócio, situação em que respondia com todo o seu patrimônio[23].
Ugo Pagallo propõe que robôs movidos a inteligência artificial tenham pecúlios reservados especificamente para indenizar possíveis vítimas de dano[24], o que excluiria a responsabilidade civil de proprietários, fornecedores e programadores. Porém, esse mecanismo teria uma aplicação essencialmente restrita a contextos de interação padronizada entre o robô e seres humanos individuais[25]. Matthew Scherer, por sua vez, faz uma proposta mais abrangente. Para ele, a solução ser elaborar um Estatuto do Desenvolvimento da Inteligência Artificial (Artificial Intelligence Development Act – AIDA), o qual criaria uma agência incumbida de certificar a segurança dos sistemas controlados por inteligência artificial. Essa mesma agência administraria um fundo destinado ao ressarcimento de eventuais pretensões indenizatórias. A responsabilidade civil dos projetistas, fabricantes e fornecedores seria subjetiva e individual se o sistema for certificado, objetiva e solidária em caso contrário. Trata-se, de certa forma, de um pecúlio coletivo.
Seja como for, a “descoisificação” da inteligência artificial parece inevitável. A verdadeira questão pode ser resumida no adágio latino: qui bono? Atribuir personalidade jurídica a uma entidade apenas para burlar a incidência das normas de responsabilidade civil seria uma artificialidade (com o perdão do pleonasmo) e, pior, uma injustiça. Neminem laedere é um dos preceitos mais antigos do nosso direito. Seria verdadeiramente paradoxal que o avanço da tecnologia provocasse tamanho retrocesso no direito. Por outro lado, a atribuição a cada forma de inteligência artificial de um status jurídico compatível com a sua evolução ontológica, sem desproteger terceiros, pode ser um caminho interessante a ser trilhado.
E o direito romano, mais uma vez, revela ser uma perpétua fonte de inspiração que se reinventa a cada geração. Ele é irredutível a um mero conjunto de regras e instituições do passado. Para a mente arguta, é o maior repositório documentado da experiência jurídica humana. E é por isso que seu estudo é indispensável.
* Esta coluna é produzida pelos professores Bernardo Moraes e Tomás Olcese e por estudiosos convidados, todos interessados no Direito Romano e suas conexões com o Direito Contemporâneo.
[1] L. Franchini, Disciplina romana della schiavitù ed intelligenza artificiale odierna. Spunti di comparazione, in Diritto Mercato Tecnologia, 08-07-2020, disponível in https://www.dimt.it/la-rivista/articoli/disciplina-romana-della-schiavitu-ed-intelligenza-artificiale-odierna-spunti-di-comparazione/ [27-10-2021].
[2] Gai. 1, 48: “(…) Nam quaedam personae sui iuris sunt, quaedam alieno iuri sunt subiectae”.
[3] O termo “liberi, –orum” (pluralia tantum) englobava todos os descendentes, inclusive netos e bisnetos, cf. Mod. 2 escus., D. 50, 16, 104. Acerca do tema, cf. também Inst. 1, 9, 3 e B. B. Queiroz de Moraes, Manual de Introdução ao Digesto, São Paulo, YK, 2017, p. 478 e B. B. Queiroz de Moraes, Institutas de Justiniano – Primeiros fundamentos de direito romano justinianeu, São Paulo, YK, p. 78, nt. 165.
[4] Gai. 1, 49.
[5] Gai. 2, 87.
[6] J. C. Moreira Alves, Direito Romano, 6ª ed., Rio de Janeiro, Forense, 1997, vol. II, p. 270.
[7] M. Kaser, Römisches Privatrecht, trad. ing. de Dannenbring, Rolf, Roman Private Law, 4ª ed., Pretoria, University of South Africa, 1984, p. 246.
[8] M. Talamanca, Istituzioni di diritto romano, Milano, Giuffrè, 1990, pp. 80-81.
[9] M. Kaser, Römisches Privatrecht, cit. (nota 7 supra), p. 245-246.
[10] M. Kaser, Römisches Privatrecht, cit. (nota 7 supra), p. 251.
[11] M. Marrone, Istituzioni di diritto romano, 3ª ed., Palermo, Palumbo, 2006, p. 99.
[12] Gai. 4, 75.
[13] M. Kaser, Römisches Privatrecht, cit. (nota 7 supra), p. 251.
[14] L. Franchini, Disciplina romana della schiavitù, cit. (nota 1 supra), p. 15-16.
[15] Entre os autores citados por L. Franchini, vide, em especial U. Ruffolo, La “personalità elettronica”, in U. Ruffolo (coord.), Intelligenza artificiale. Il diritto, i diritti, l’etica, Milano, Giuffrè Francis Lefebvre, 2020, pp. 213 e ss.
[16] L. B. Solum, Legal Personhood for Artificial Intelligences, in North Carolina Law Review, 70 (1992), pp. 1231-1287.
[17] Para uma análise da literatura pertinente, cf. F. G. D. C. Ferreira – A. H. Gandomi – R. T. N. Cardoso, Artificial Intelligence Applied to Stock Market Trading – A review, in IEEE Access, 9 (2021), pp. 30898-30917.
[18] U. Ruffolo, Il problema della “personalità elettronica”, in Journal of Ethics and Legal Technologies, 2(1) (2020), pp. 76-77.
[19] P. F. Zari, Intelligenza artificiale ed entropia legislativa Profili, diagnosi e rimedi giuridici del mondo dei robot, in CyberLaws, 07-11-2018, disponível in https://www.cyberlaws.it/en/2018/intelligenza-artificiale-ed-entropia-legislativa/#_ftnref113 [27-10-2021].
[20] Ulp. 29 ad ed., D. 15, 1, 7, 4.
[21] Pomp. 7 ad Sab., D. 15, 1, 4 pr.
[22] Paul. 4 ad Sab., D. 15, 1, 8.
[23] Gai. 4, 75.
[24] U. Pagallo, The Laws of Robots – Crimes, contracts, and torts, Dordrecht, Springer, 2013, pp. 103 e ss.
[25] U. Pagallo, The Laws of Robots, cit. (nota 24 supra), pp. 113.