Coordenação: Miguel Kfouri Neto e Rafaella Nogaroli
Dentre todos os temas atualmente em construção no Direito da Saúde, existem poucos tão polêmicos, dinâmicos, que envolvem tantos ramos do Direito ao mesmo tempo, e com implicações tão diretas e profundas na vida do cidadão comum quanto a reprodução humana assistida.
A pluralidade de pessoas e a diversidade de conformações familiares acometidas pela incapacidade de procriar colocam por terra o mito de que todos os pacientes na reprodução assistida são iguais. As pessoas que buscam dar a volta à infertilidade surgem com diversas singularidades como gênero, orientação sexual, estado civil e necessidade de recorrer a terceiros. A única coisa que todo e qualquer paciente que busca a procriação medicamente assistida possui em comum com os outros é o desejo humano de ter um filho e tornar-se mãe ou pai.
A procriação medicamente assistida é um desenvolvimento científico que invoca uma infinidade de considerações éticas e legais, com várias nuances sociais, religiosas e políticas. Várias décadas após o nascimento da primeira criança fruto da PMA, poucos lugares do mundo possuem leis abrangentes e claras sobre o estabelecimento da filiação das crianças originadas por essas técnicas.
O Brasil, apesar de tratar da matéria no Código Civil, o fez de forma insuficiente e superficial, fato que encontra justificativa na compreensão social de família e nas tecnologias existentes à época de elaboração do projeto do Código, na década de 1970, quando sequer Louise Brown, o primeiro “bebê de proveta” do mundo tinha nascido.
O Brasil, entretanto, vem deixando a regulação da matéria da procriação medicamente assistida a cargo da deontologia médica. Aliás, as Resoluções 1.957/2010, 2.013/2013 e 2.121/2015, 2.168/2017 e 2.294/21 do Conselho Federal de Medicina, em suas exposições de motivos indicam – expressamente – a necessidade de edição de uma legislação específica e lembram a letargia do Legislativo no cumprimento dessa obrigação. Portanto, é preciso que o Brasil avance e legisle nesse âmbito.
Necessário lembrar que as implicações trazidas pelas tecnologias disponíveis para a reprodução humana assistida perpassam os limites da bioética ou do direito da saúde. A possibilidade de cessão temporária de útero, ou mesmo da reprodução post mortem, por exemplo, traz implicações claras para o direito de família e o direito de sucessões, e necessitam de iniciativas legislativas para devolver segurança a um terreno ainda por explorar no campo científico.
A profusão de Resoluções do Conselho Federal de Medicina – em intervalos de tempo cada vez menores – demonstra a evolução da ciência médica, a rapidez com que novos tratamentos são disponibilizados, e a urgência em estabelecer parâmetros e balizas éticas (proibindo a clonagem de seres humanos, e mesmo edições genéticas de seres humanos para prevenir a eugenia, ou “melhoramentos” de caráter estético na prole a ser gerada). São temas que perturbam, polêmicos, que apresentam questionamentos à sociedade em diversos campos – inclusive nos perigosos terrenos da religião e da política – mas que não podem ser ignorados pelo Poder Legislativo. De todos os cenários, imaginava-se, a insegurança jurídica era o pior.
Como dito no parágrafo anterior, imaginava-se. Nada é tão ruim que não possa ser piorado, diz uma das máximas atribuídas ao conjunto de frases espirituosas conhecido como Lei de Murphy. Recentemente veio à tona o desdobramento de uma iniciativa legislativa que impulsionou o andamento de um projeto de lei (o PL 1.184/03), que recebeu parecer favorável para avançar em sua análise, com vistas a “estabelecer regras para o que chama de Reprodução Assistida”, definindo o que é embrião humano para os fins da reprodução artificial”.
Sim. Um projeto do distante ano de 2003. Dezoito anos. Em termos de evolução das ciências médicas no campo da reprodução humana, 2003 se localiza há cinco resoluções de distância do Conselho Federal de Medicina. Pessoas nascidas em 2003 hoje já são adultas. O projeto é, para usar um eufemismo, desprovido de contemporaneidade.
Para dar uma ideia do tamanho da colcha de retalhos que ele representa, necessário dizer que foram apensados a esta peça de arqueologia legislativa os seguintes projetos de lei: PL nº 2.855/1997, PL nº 4.664/2001, PL nº 4.665/2001, PL nº 6.296/2002, PL nº 1.135/2003, PL nº 120/2003, PL nº 2.061/2003, PL nº 4.686/2004, PL nº 4.889/2005, PL nº 5.624/2005, PL nº 3.067/2008, PL nº 7.701/2010, PL nº 3.977/2012, PL nº 4.892/2012, PL nº 115/2015, PL nº 7.591/2017, PL nº 9.403/2017, PL nº 5.768/2019, PL nº 1.218/2020, PL nº 4.178/2020 e PL nº 299/2021.
1) O Projeto de Lei nº 2.855, de 1997, que “dispõe sobre a utilização de técnicas de reprodução humana assistida e dá outras providências”. Regulamenta essas técnicas e as condutas éticas sobre tal questão.
2) Os Projetos de Lei nº 4.664 e no 4.665, de 2001, são de autoria do Deputado Lamartine Posella. O primeiro dispõe sobre a proibição ao descarte de embriões humanos fertilizados in vitro, determina a responsabilidade sobre os mesmos e dá outras providências. Já o segundo dispõe sobre a autorização da fertilização humana in vitro para os casais comprovadamente incapazes de gerar filhos pelo processo natural de fertilização somente em clínicas autorizadas pelo Ministério da Saúde.
3) O Projeto de Lei nº 6.296, de 2002, proíbe a fertilização de óvulos humanos com material genético proveniente de células de doador do sexo feminino.
4) O Projeto de Lei nº 120, de 2003, que “dispõe sobre a investigação de paternidade de pessoas nascidas de técnicas de reprodução assistida”, intenta modificar a Lei no 8.560, de 29 de dezembro de 1992, que “regula a investigação de paternidade dos filhos havidos fora do casamento, e dá outras providências”. Propõe, para tanto, que os nascidos de técnicas de reprodução assistida tenham o direito de saber a identidade de seus pais biológicos, mas sem que isso lhes dê direitos sucessórios.
5) O Projeto de Lei nº 1.135, de 2003, dispõe sobre a reprodução humana assistida, que tem a função de auxiliar na resolução dos problemas de infertilidade, facilitando o processo de procriação quando outras terapêuticas tenham sido ineficazes ou ineficientes.
6) O Projeto de Lei nº 2.061, de 2003, disciplina o uso de técnicas de Reprodução Humana Assistida como um dos componentes auxiliares no processo de procriação em serviços de saúde, bem como estabelece penalidades.
7) O Projeto de Lei nº 4.686, de 2004, introduz art. 1597-A à Lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002 – Código Civil, assegurando o direito ao conhecimento da origem genética ao ser gerado a partir da reprodução assistida, define o direito sucessório e o vínculo parental.
8) O Projeto de Lei nº 4.889, de 2005, pretende estabelecer critérios para funcionamento de clínicas de reprodução humana. Pelo disposto, as técnicas de reprodução humana assistida têm a função de auxiliar na resolução dos problemas de infertilidade, facilitando o processo de procriação quando outras terapêuticas tenham sido ineficazes ou ineficientes.
9) O Projeto de Lei nº 5.624, de 2005, institui em todo território nacional, Programa de Reprodução Assistida no Sistema Único de Saúde, a ser desenvolvido pelos estabelecimentos e conveniados ao Ministério da Saúde; cria programa de reprodução assistida no Sistema Único de Saúde e dá outras providências.
10) O Projeto de Lei nº 3.067, de 2008, quer modificar a Lei nº 11.105/05, para que as pesquisas com células-tronco possam ser feitas somente por instituições especificamente habilitadas por autorização especial e que essa autorização seja concedida pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa – CONEP; para que as clínicas de reprodução assistida cumpram certas obrigações, como absterem-se de comercializar embriões (sob pena de enquadrarem-se no § 3º do art. 5º da Lei 11.105/05), não remeterem embriões ao exterior e o resultado de pesquisas. Proíbe a comercialização dos resultados de pesquisa sobre células-tronco e seu registro – como patentes, registro sanitário ou outro que cerceie sua aplicação universal. Diz que é da competência das autoridades do Sistema Nacional de Vigilância Sanitária a verificação do seu cumprimento, além de estabelecer normas de conduta para aquelas.
11) O Projeto de Lei nº 7.701, de 2010, dispõe sobre a utilização post mortem do sêmen do marido ou companheiro.
12) O Projeto de Lei nº 3.977, de 2012, dispõe sobre o acesso às técnicas de preservação de gametas e reprodução assistida aos pacientes em idade reprodutiva submetidos a tratamento de câncer.
13) O Projeto de Lei nº 4.892, de 2012, que institui o Estatuto da Reprodução Assistida, visando regular a aplicação e utilização das técnicas de reprodução humana assistida e seus efeitos no âmbito das relações civis sociais, considerando Reprodução Humana Assistida aquela que decorre do emprego de técnicas médicas cientificamente aceitas de modo a interferir diretamente no ato reprodutivo, viabilizando a fecundação e a gravidez.
14) O Projeto de Lei nº 115, de 2015, da mesma forma que o PL nº 4.892, de 2012, também institui o Estatuto da Reprodução Assistida, para regular a aplicação e utilização das técnicas de reprodução humana assistida e seus efeitos no âmbito das relações civis sociais.
15) O Projeto de Lei nº 7.591, de 2017, acrescenta parágrafo único ao art. 1.798 da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil), para conferir capacidade para suceder aos concebidos com o auxílio de técnica de reprodução assistida após a abertura da sucessão.
16) O Projeto de Lei nº 9.403, de 2017, estabelece o direito à sucessão de filho gerado por meio de inseminação artificial após a morte do autor da herança.
17) O Projeto de Lei nº 5.768, de 2019, acrescenta dispositivos à Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil) para estabelecer as hipóteses de presunção de maternidade pela gestação na utilização de técnicas de reprodução assistida e autoriza a gestação de substituição.
18) O Projeto de Lei nº 1.218, de 2020, também altera o Código Civil para regular a sucessão no caso de inseminação artificial ou de gestação em útero diverso a um dos cônjuges.
19) O Projeto de Lei nº 4.178, de 2020, traz termos semelhantes ao PL 1218/2020.
20) O Projeto de Lei nº 299, de 2021, dá nova redação ao artigo 5º da Lei no 11.105, de 24 de março de 2005, a fim de proibir qualquer forma de manipulação experimental, comercialização e descarte de embriões humanos.
Eis, entretanto, o busílis: dentre outras aberrações anacrônicas, o projeto de lei em tramitação prevê algumas situações que representam graves retrocessos. São elas:
A formação máxima de 2 embriões, sem criopreservação, com transferência à fresco obrigatória;
A proibição de biopsia embrionária, quando necessária;
A proibição da criopreservação de embriões;
A proibição do uso das técnicas de cessão temporária de útero;
A proibição da ovodoação;
E a quebra do sigilo das doadoras de óvulos, para aquelas que já o fizeram.
O PL – por desconectado do seu tempo (e por consequência, da realidade) – se transforma em um verdadeiro retalho, ignorando tudo o que vem sendo construído em mais de duas décadas de avanço rápido da ciência da medicina reprodutiva, criando um cenário distópico para aquelas pessoas que planejam o desenvolvimento de um projeto parental, contrariando o artigo 227, § 6º da Constituição Federal e a própria Lei de Planejamento Familiar (LEI nº 9.263/96).
Em aprovado, as chances de sucesso de quaisquer dos tratamentos restantes seriam não somente substancialmente reduzidas, mas também transformadas em algo essencialmente mais caro, e muito mais penoso para àquelas que viessem a fazer uso das técnicas, por se submeterem a vários ciclos e tratamentos fracionados, aumentando (em última análise) os riscos à saúde.
Pode-se afirmar que, dentre todas as matérias atualmente em desenvolvimento no Direito da Saúde, existem poucas tão polêmicas, dinâmicas, que englobam e atingem tantos ramos do Direito ao mesmo tempo, e com consequências tão diretas e profundas na vida das pessoas como a procriação medicamente assistida. Suas potencialidades científicas, os dilemas éticos gerados a partir do vertiginoso progresso das técnicas utilizadas na medicina reprodutiva, e a ausência de parâmetros jurídicos prévios para solucionar controvérsias são alguns dos elementos que, agregados às transformações na conduta e no modo de pensar da sociedade, estão a instituir um cenário novo, de possibilidades, alternativas e veredas.
Até onde pode-se, ou deve-se ir? Quais são as fronteiras da engenharia genética que não devem ser ultrapassadas, sob pena de colocarmos em risco aquilo que nos faz ser humanos?
Regulamentos e legislações relativas à procriação são susceptíveis de ter implicações constitucionais significativas, de modo que os esforços para regulamentação devem lidar com a natureza do direito em jogo. A Constituição do Brasil indica que o planejamento familiar deverá basear-se na dignidade da pessoa humana e na parentalidade responsável, sendo vedado ao Estado qualquer tipo de controle ou interferência no exercício desse direito. A dignidade da pessoa humana é mais do que um direito, é “a fonte de todos os direitos”. Daí se pode extrair o entendimento de um direito fundamental à reprodução e consequente constituição de família, não se podendo obrigar uma pessoa a reproduzir nem tampouco sendo legítimo obstruir a sua capacidade para procriar. Assim, esse direito existe em sentido positivo e em sentido negativo.
Não faz sentido que, após décadas de inércia, se dê seguimento a iniciativas legislativas que piorem o quadro atual. A existência de um enquadramento legal é sim necessária, para fins de estabelecer segurança jurídica às relações advindas do uso de tais técnicas. Mas fazê-lo de forma desconexa e desconectada da realidade é de uma irresponsabilidade criminosa. Uma iniciativa que precisa ser urgentemente revista, repensada (e para usar um termo afeto à área, abortada), para que se possa construir um novo projeto voltado para a sociedade, ouvindo especialistas, ouvindo as sociedades médicas, compreendendo a amplitude das possibilidades científicas, para que se construa algo efetivamente útil.
É pedir demais? O tempo dirá.
Acompanhe a coluna Direito da Saúde no Contraditor.com.
Li e reli seu texto, “ absurdamente “ lúcido e coerente em termos da realidade à qual as pessoas que aspiram por uma oportunidade de gestação enfrentam. Seja a própria doença que é a infertilidade, a dificuldade de acesso aos tratamentos apesar de garantidos pela constituição e desconsiderados por juízes inclusive pelo Conselho Nacional de Justiça e agora vieses impostos por quem defende dogmas que são absolutamente duscutíveis e as leis não podem ser estabelecidas desta forma o que é bem pior, confundindo igreja com Estado não prevalecendo a laicidade.