- Considerações iniciais
O discurso dos precedentes ganhou força entre nós a partir da EC 45/2004, com a positivação da súmula vinculante do STF e da repercussão geral no recurso extraordinário. Desde então, multiplicaram-se os instrumentos de vinculação das decisões jurisdicionais, e não só dos tribunais de cúpula, como os recursos especial e extraordinário repetitivos, o incidente de resolução de demandas repetitivas e o incidente de assunção de competência. Não bastasse, ainda temos invenções doutrinário-jurisprudenciais, como a objetivação do controle difuso de constitucionalidade, sobre a qual o STF teima em vacilar.
Os fundamentos em prol dos precedentes são conhecidos e intuitivos. No essencial, conferir maior cognoscibilidade ao direito (segurança jurídica), tratar casos iguais de maneira igual (isonomia) e reduzir o tempo global de debate sobre o direito a partir do instante em que o seu sentido é definido pelo órgão superior (duração razoável do processo).
A consagração (e mesmo a invenção) de tais institutos, por si só, não é garantia de que experimentaremos incremento de segurança jurídica, isonomia e duração razoável do processo. Se a lei, por si só, não o faz, igualmente os precedentes não o farão. Muito mais decisivo é o nosso compromisso e destreza para lidar com tais institutos. Demonstrarei neste texto que a lassidão metodológica no manejo da repercussão geral pode causas delongas violadoras da garantia da duração razoável do processo.
- Repercussão geral e decisão de afetação: do sobrestamento às medidas compensatórias da demora processual
Para a admissão do recurso extraordinário (re) é necessário que o tema nele vertido ostente repercussão geral (rg) (art. 102, § 3º, cf), que ora exige demonstração casuística (art. 1.035, § 1º, cpc), ora é pressuposta (art. 1.035, § 3º, cpc). O reconhecimento da RG se dá na decisão de afetação (art. 1.037, cpc), a qual, no que aqui importa, identificará com precisão a questão a ser submetida a julgamento (art. 1.037, i, cpc) e determinará a suspensão do processamento de todos os processos pendentes, individuais ou coletivos, que verem sobre a questão e tramitem no território nacional (art. 1.037, ii, c/c art. 1.035, § 5º, ambos do cpc (decidindo que a suspensão não é obrigatória: stj, ce, resp 1.202.071/SP). Firmada a tese no tema de rg, ela constituirá provimento vinculante para todos (arts. 1.030 e 1.042, ambos do cpc). (Na doutrina, por todos: LEMOS, Vinícius Silva. Recursos e Processos nos Tribunais. 4 ed. Salvador: JusPodivm, 2020, p. 677. Sustentando que será vinculante quando decidida pelo Plenário do stf, mas não quando dor decidida por Turma: DIDIER JR, Fredie. CUNHA, Leonardo Carneiro da. Curso de Processo Civil. 13 ed. Salvador: JusPodivm, 2016, p. 373).
O sobrestamento do processo para aguardar a definição do tema de RG incrementa o tempo do processo, máxime por não se sujeitar a limite temporal (art. 1.035, § 5º, cpc). O ínterim consumido pelo órgão formador da tese pode ser superior àquele que o juiz desse ou daquele caso sobrestado levaria para atribuir sentido ao direito, de modo que, desse ponto de vista, o sobrestamento torna o processo mais moroso.
Por outro lado, decidindo o stf sobre a existência ou não de rg, incidem soluções de aceleração do procedimento, tais como: o não conhecimento do recurso, pela ausência de rg; o rechaço de formulação de pretensão contrária à tese nele fixada, seja um re (art. 1.030, i, a, cpc, caso em que a decisão será irrecorrível, ex vi do art. 1.042, cpc) ou qualquer outro recurso (art. 932, iii, cpc); o juízo de retratação pelo órgão fracionário de origem para aplicar ao caso o entendimento firmado pelo stf no regime de RG (art. 1.030, i, b, cpc). Nas duas hipóteses, a tese em RG será aplicada ao caso, que terá a solução com ela compatível, sem a necessidade de apreciação do stf.
Esse mecanismo de compensação só terá efetividade no caso concreto se houver similitude (aderência estrita) entre ele e aquele apreciado pelo stf para fins de definição da tese em rg, caso em que esta será útil para o seu desate. Se os casos forem totalmente díspares, faltará razão para o sobrestamento, que se dará com pejo da garantia da duração razoável do processo. A única hipótese de exclusão do sobrestamento contemplada no direito positivo diz respeito ao recurso intempestivo (art. 1.035, § 6º, cpc), não dispondo a parte de meios para requerer o prosseguimento do seu caso em razão de ser distinto daqueles apanhados pela decisão de afetação de rg, o que eleva o risco de manutenção de sobrestamento indevido. Com razão, propõe-se a aplicação, por analogia, dos §§ 8º a 13 do art. 1.037 do cpc (BUENO, Cássio Scarpinella. Curso Sistematizado de Direito Processual Civil. V. 2. p. 706).
Por essas razões, a decisão de sobrestamento deve ser bastante criteriosa, seja para impedir o prosseguimento de casos semelhantes, com o risco de decisões contraditórias, seja para impedir a paralização de casos distintos, aos quais não serão aplicados a tese firmada em rg, cuja paralização representará ofensa à duração razoável do processo.
- O exemplo do re 669.069/mg
Até o ano de 2016, stf teve jurisprudência firme sobre o sentido do art. 37, § 5º, cf: toda pretensão de ressarcimento de danos ao erário é imprescritível (cf. ms 26.210/df).
Naquele ano, chegou ao Tribunal o re 669.069/mg, no qual a União pedia a reforma de acórdão do trf1 que decretara a prescrição da pretensão de ressarcimento de danos decorrentes de acidente automobilístico perseguido em ação ordinária movida em face uma transportadora ferroviária e um motorista a ela vinculado.
No stf, a União pedia a reforma do acórdão argumentando que a pretensão de ressarcimento de danos ao erário é imprescritível, o que deveria ser fixado em tese de repercussão geral, consolidando a interpretação do art. 37, § 5º, cf.
Foi proferida decisão de afetação reconhecendo a rg, tema 666, nestes termos:
ADMINISTRATIVO. PRETENSÃO DE RESSARCIMENTO AO ERÁRIO. PRESCRIÇÃO. INTERPRETAÇÃO DA RESSALVA FINAL PREVISTA NO ARTIGO 37, § 5º, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. EXISTÊNCIA DE REPERCUSSÃO GERAL. Apresenta repercussão geral o recurso extraordinário no qual se discute o alcance da imprescritibilidade da pretensão de ressarcimento ao erário prevista no artigo 37, § 5º, da Constituição Federal. (RE 669069 RG, Relator(a): TEORI ZAVASCKI, Tribunal Pleno, julgado em 02/08/2013, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-166 DIVULG 23-08-2013 PUBLIC 26-08-2013)
Apesar da estreiteza do caso (ação ressarcitória de danos decorrentes de acidente automobilístico), a RG foi reconhecida em termos bastante mais amplos, como se tira destes itens do voto do Relator, Min. Teori Zavascki:
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- Questiona-se, à luz do § 5º do artigo 37, da Constituição Federal, o sentido e o alcance a ser dado à ressalva final do dispositivo, segundo o qual, “a lei estabelecerá os prazos de prescrição para ilícitos praticados por qualquer agente, servidor ou não, que causem prejuízos ao erário, ressalvadas as respectivas ações de ressarcimento”.
- A questão transcende os limites subjetivos da causa, havendo, no plano doutrinário e jurisprudencial, acirrada divergência de entendimentos, fundamentados, basicamente, em três linhas interpretativas: (a) a imprescritibilidade aludida no dispositivo constitucional alcança qualquer tipo de ação de ressarcimento ao erário; (b) a imprescritibilidade alcança apenas as ações por danos ao erário decorrentes de ilícito penal ou de improbidade administrativa; (c) o dispositivo não contém norma apta a consagrar imprescritibilidade alguma. É manifesta, assim, a relevância e a transcendência dessa questão constitucional. (Conferir aqui).
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Além do Relator, apenas o Min. Marco Aurélio votou no ensejo do reconhecimento da repercussão geral, no sentido da sua existência. Na oportunidade, não fez ressalvas à amplitude conferida ao tema pelo Min. Teori Zavascki.
Foram, então, sobrestadas todas as ações em trâmite no país nas quais entes públicos perseguiam o ressarcimento de danos ao erário. Ações de improbidade administrativa, ações populares, ações indenizatórias por danos decorrentes de crimes etc., todas deveriam aguardar a tese a ser definida no tema 666 (art. 543-b, § 1º, cpc/73, vigente à época).
No julgamento (da tese e do caso concreto), o Min. Teori Zavascki, coerentemente com seu voto proferido na decisão de afetação, fixou tese que não limitou à pretensão de ressarcimento de danos ao erário decorrente de acidente automobilístico, a saber: “A imprescritibilidade a que se refere o art. 37, § 5º, da CF diz respeito apenas a ações de ressarcimento de danos ao erário decorrentes de atos praticados por qualquer agente, servidor ou não, tipificados como ilícitos de improbidade administrativa ou como ilícitos penais”.
Na sequência, os Ministros divergiram sobre qual deveria ser a extensão da tese, formando-se três posicionamentos: (i) a tese em repercussão geral deveria ficar estritamente relacionada ao caso concreto (v. g., Mins. Gilmar Mendes e Marco Aurélio); (ii) o stf pode utilizar o caso como pretexto para definir teses mais amplas, não confinadas aos estritos limites do caso concreto (v.g., Min. Luiz Fux); (iii) o posicionamento (ii) é plausível em tese, mas, naquele caso, deveria ser adotada a posição (i), pois não houve debate em contraditório acerca da prescritibilidade ou não da pretensão de ressarcimento de danos ao erário decorrente de crime ou de ato de improbidade administrativa, além de os debates revelarem dúvidas dos Ministros, sendo prudente aguardar a oportunidade de definir uma interpretação em oportunidade futura, quando o tema chegasse mais maduro ao Tribunal (v. g., Min. Luís Roberto Barroso).
Foram propostas mais três sugestões de tese, além da do Min. Teori Zavascki. Na linha da prescritibilidade, propôs o Min. Luís Roberto Barroso: “É prescritível a ação de reparação de danos à Fazenda Pública decorrente de ilícito civil”. Também na linha da prescritibilidade, sugeriu o Min. Dias Toffoli: “Não se aplica à ação de reparação por danos causados por acidente de trânsito a imprescritibilidade a que se refere o art. 37, § 5º, da Constituição Federal”. E na linha da imprescritibilidade, assim formulou o Min. Edson Fachin: “A imprescritibilidade da pretensão ao ressarcimento ao erário prevista no art. 37, §5º da Constituição da República, alcança todo e qualquer ilícito, praticado por agente público, ou não, que cause prejuízo ao erário”.
Com o avançar dos debates, o Min. Dias Toffoli retirou sua proposta, aderindo à do Min. Luís Roberto Barroso, que acabou vencedora. O Min. Edson Fachin insistiu na tese da prescritibilidade, ficando vencido. Definiu-se a RG tema 666 nestes termos: “É prescritível a ação de reparação de danos à Fazenda Pública decorrente de ilícito civil”. A decisão veio assim ementada:
CONSTITUCIONAL E CIVIL. RESSARCIMENTO AO ERÁRIO. IMPRESCRITIBILIDADE. SENTIDO E ALCANCE DO ART. 37, § 5º, DA CONSTITUIÇÃO. 1. É prescritível a ação de reparação de danos à Fazenda Pública decorrente de ilícito civil. 2. Recurso extraordinário a que se nega provimento. (RE 669069, Rel. Min. Teori Zavascki, Tribunal Pleno, j. em 03/02/2016, DJe 27/04/2016).
Todavia, o trabalho não ficou completo. Faltou definir o regime jurídico da prescrição (lei aplicável, prazo e eventuais causas de interrupção e suspensão). Não é que nenhuma consideração a respeito tenha sido feita. O Min. Teori Zavascki aplicou, explícita e fundamentadamente, o art. 206, § 3º, v, cc (três anos para as pretensões de reparação civil), no que foi seguido pelo Min. Luís Roberto Barroso. O Min. Luiz Fux, contraditoriamente, ora falou na aplicação do cc, ora da Lei 9.494/85, que prevê prazo de cinco anos, dizendo, contraditoriamente, que seguia, integralmente, o voto do Relator. Menção esparsa ao prazo de cinco anos, sem indicação do fundamento legal nem fundamentação detida, também foi feita pelo Min. Marco Aurélio. Os Mins. Dias Toffoli e Rosa Weber não deixam claro como se posicionavam no ponto – talvez porque, como disseram, seguiram o Relator. A Min. Cármen Lúcia negou provimento ao recurso, mas não indicou o prazo prescricional aplicado, não tendo mencionado sequer se seguia o Relator. Diga-se o mesmo dos Mins. Celso de Mello, Gilmar Mendes e Ricardo Lewandowski, embora, na tese, tenham aderido à proposta formulada pelo Min. Luís Roberto Barroso. Em suma, não houve deliberação meticulosa sobre o prazo prescricional, sendo apenas possível – mas não seguro – dizer que o Plenário efetivamente assentou que se aplica o art. 206, § 3º, v, cc.
- A irrelevância da decisão de afetação para o julgamento
Nota-se grande distância entre os contornos da questão fático-jurídica da decisão de afetação e do que acabou sendo decidido pelo Plenário. Como a primeira era muito mais ampla que a última, a consequência óbvia foi o sobrestamento indevido de uma gama expressiva de processos, como aqueles nos quais se exercia pretensão de ressarcimento por danos decorrentes de crime e de ato tipificado na lei de improbidade administrativa.
Apenas o Min. Luiz Fux manifestou preocupação com o fato de que muitos processos teriam ficado sobrestados indevidamente caso fosse aprovada a tese nos termos mais moderados propostos pelo Min. Luís Roberto Barroso.
Ainda assim, o cerne da inquietação não era a diferença de extensão da decisão de afetação e o julgamento, mas, fundamentalmente, no modo como se compreende que o stf deve atuar no âmbito de um sistema de precedentes: utilizando ou não os casos concretos como pretextos para a formação de teses.
Tanto assim que o Min. Luiz Fux não interagiu com os argumentos do Min. Luís Roberto Barroso, no sentido de que, naquele caso concreto, a definição de uma tese mais ampla representaria ofensa ao contraditório, pois o tema não havia sido debatido entre as partes.
Esse ponto também foi objeto de divergência entre os julgadores. Para o Min. Teori Zavascki, era possível formular uma tese mais ampla, entre outros motivos, porque tais temas teriam, sim, sido debatido na origem.
Para a maioria, porém, notadamente os Mins. Luís Roberto Barroso, Gilmar Mendes e Dias Toffoli, as decisões anteriores do caso concreto tocaram os temas apenas de passagem, constituindo obter dicta. O Min. Marco Aurélio registrou que a elaboração de tese mais ampla fugiria às balizas da causa, tornando o stf num órgão consultivo.
Em termos gerais, não recebeu maior importância a questão da eficácia vinculante ou não da decisão de afetação sobre a fase de julgamento.
Para não dizer que o ponto foi totalmente negligenciado, em inúmeras passagens o Min. Teori Zavascki sustentou a possibilidade de firmar a tese nos termos por ele propostos exatamente em razão da latitude da decisão de afetação proferida no caso concreto, ponto também realçado pelo Min. Ricardo Lewandowski.
Todavia, o Min. Marco Aurélio objetou, argumentando – e lembrando a existência de precedentes neste sentido – que o Plenário físico não fica vinculado a possível equívoco na deliberação no Plenário virtual. Em outras palavras, a decisão de afetação não bitola a fase posterior de definição da tese.
- Considerações finais
Este texto não é uma lamúria da deturpação pragmática de algo idealmente satisfatório. Na verdade, aquilo que chamam de sistema brasileiro de precedentes não pode ser adequadamente avaliado ignorando o seu funcionamento prático. E isso não significa baralhar os planos do ser e do dever ser. Inúmeros corolários do sedizente sistema são fundamentalmente dependentes do modo como são aplicados pelos Tribunais. No caso da RG, lei e doutrina informam muito pouco sobre o seu sentido e alcance, possuindo o stf uma grande margem de discricionariedade na sua concretização. De modo que boa parte do dever ser da RG é arrancado da observação da sua pragmática – o que é comum a todos os conceitos jurídicos indeterminados e cláusulas gerais pendentes de consolidação dogmática. (Explorando a RG com viés crítico, ver: MARTINS, Leonardo. Questões constitucionais na ordem processual: entre a repercussão geral e a tutela de direitos fundamentais individuais, aqui).
Isso não significa ausência de exigências mínimas de dever ser sobre a rg. Como disse, ela serve simultaneamente ao stf (otimizando sua atividade decisória – o que, em verdade, se estende a todos os órgãos que haverão de aplicá-la) e aos jurisdicionados (promovendo isonomia, segurança jurídica e duração razoável aos processos), mas essa dupla serventia só pode ser equilibrada se o instituto for manejado racionalmente. Para tanto, os Ministros do stf devem debater prévia e seriamente sobre o seu objeto e extensão já na decisão de afetação, o que produzirá dois efeitos salutares: restringirá o sobrestamento aos processos que se aproveitarão da tese a ser firmada e permitirá que, a seu tempo, a tese seja aplicada sem maiores desacordos interpretativos.
No que concerne particularmente ao sobrestamento, o re 636.069/mg (Tema 666) fornece indício de que algo não funciona bem. Como a decisão de afetação era significativamente mais ampla do que a tese firmada, muitos processos ficaram paralisados sem motivo. Provavelmente isso não teria acontecido se a decisão de afetação tivesse resultado de uma deliberação cuidadosa sobre o objeto e a extensão da rg. O caso é sinal de que o stf deve conferir maior importância à decisão de afetação (lembre-se que apenas os Mins. Teori Zavascki e Marco Aurélio votaram na decisão de afetação, e mantiveram, na fase de julgamento, a proposta de fixação da tese mais ampla, ao final vencida).
Não estou dizendo que a decisão de afetação cristaliza, inflexivelmente, a fase posterior do julgamento. Dados relevantes imprevistos devem ser considerados no julgamento do caso e na formulação da tese. Critico a postura do stf de não se engajar em uma deliberação acurada na decisão de afetação e fixar a tese a seu talante, como se aquela primeira etapa fosse uma mera formalidade.
Talvez isso seja produto de uma cultura processual autoritária, na qual frequentemente os institutos processuais têm a sua natureza garantística capturada no interesse e na conveniência do poder. Uma pré-compreensão forjada sob os laivos do publicismo processual explica o desdouro com a decisão de afetação, pois revela postura típica de um Tribunal que prestigia o princípio da autoridade e a livre atuação em detrimento do princípio republicano e da autocontenção, que, enfim, olha mais para si do que para o jurisdicionado. (Entre nós, a crítica ao publicismo processual por sua característica autoritária, fundado que está no princípio da autoridade/do fortalecimento dos poderes do juiz, foi vertida já em 1959 por SANTOS, Moacyr Amaral. Contra o publicismo processual, aqui)
Afinal, se a RG é reconhecida por decisão dos Ministros do stf; se a decisão de afetação antecipa o tema que será objeto de tese em rg; se uma consequência da decisão de afetação é o sobrestamento dos casos que podem ser abrangidos pela tese a ser firmada em rg; se tal sobrestamento não é temporalmente limitado; então, à luz do caso ora examinado – que é apenas um exemplo entre tantos – indago: é compatível com a garantia da duração razoável a suspensão de processos com base em decisões de afetação sem uma deliberação meticulosa sobre a tese de RG a firmar, com o risco de ao depois não tirarem qualquer proveito do sobrestamento? A prática decisória que desconsidera esse risco revela maior preocupação do órgão julgador com seus próprios poderes ou com os direitos e garantias do jurisdicionado?
Não testarei aqui a hipótese de se, no fundo, a disfuncionalidade da RG em relação às franquias da cidadania nada mais é do que o próprio funcionamento do publicismo processual. Nesse tipo de embate, é melhor buscar aliados do que apontar o dedo. Até porque eu acredito, sinceramente, que, respeitadas as nossas premissas mais caras e irreconciliáveis, a maioria dos publicistas e dos não publicistas concordamos que a circunstância aqui pinçada constitui um problema e que imaginamos uma maneira semelhante de resolvê-lo: exigir, em coro, que o stf seja mais rigoroso com a decisão de afetação, definindo nela os limites (o objeto e a extensão) da tese a fixar, de modo a evitar que (alguns milhares?) de processos fiquem sobrestados indevidamente.