INTRODUÇÃO
Reconhecidamente, a Lei nº 13.467/2017 trouxe incontáveis alterações no universo do direito material e processual do trabalho, dentre elas, referentes aos honorários advocatícios. Assim, esse novo diploma legal ensejou o pagamento dessa parcela na quase totalidade dos processos, diferentemente do que ocorria no regime anterior, em que essa parcela era condicionada à assistência sindical e a outras hipóteses excepcionais. Como se poderia prever, essa inovação suscitou questionamentos de diversas ordens, inclusive, quanto à sua aplicação no tempo, a saber: incide tal previsão aos processos em tramitação ou, ao contrário, apenas àquelas demandas ajuizadas após o início de sua vigência.
Em 01/10 foi publicado o acórdão do incidente de recurso repetitivo (IRR) nº 341-06.2013.5.04.0011, cujo julgamento ocorreu em 23/08/21, no qual o Pleno do TST definiu diversas teses relativas a honorários advocatícios, dentre as quais, a aplicação no tempo da Lei nº 13.467/2017.
Embora muito já tenha sido escrito sobre o tema, o presente texto pretende, a partir da decisão, ir além, na busca de um critério que possa orientar a aplicação no tempo das normas relativas ao regime financeiro do processo do trabalho.
1 O POSICIONAMENTO DIVERGENTE DOS TRIBUNAIS SUPERIORES
A Lei nº 13.467/2017 olvidou a oportuna advertência feita pelo italiano Ugo Rocco na metade do século XX, no sentido de que o legislador deveria antecipar-se aos debates sobre o regime temporal de um novo diploma normativo, ambiente propício a intensas discussões no plano teórico e, especialmente, na vida real, da concretização jurisprudencial[1]. Em suas palavras, “Existem, no entanto, algumas áreas cinzentas, nas quais a dúvida consistiria quanto ao critério de aplicação da lei processual antiga ou nova, mas, como dissemos, esses pontos não podem escapar do escrutínio cuidadoso de um legislador que mereça esse nome, pois, normalmente, os casos duvidosos são resolvidos precisamente pelas disposições transitórias”[2].
Tendo em vista a omissão legislativa, e os consequentes questionamentos processuais, o TST foi chamado a assentar o tema. Assim, restou definido que “A condenação em honorários advocatícios sucumbenciais prevista no artigo 791-A, caput e parágrafos, da CLT será aplicável apenas às ações propostas na Justiça do Trabalho a partir de 11 de novembro de 2017, data do início da vigência da Lei nº 13.467/2017”.
Na realidade, essa orientação constava da Instrução Normativa nº 41 – malgrado sua inconstitucionalidade, por arvorar-se em norma primária – e, ademais, já era adotada em inúmeros julgamentos. Ao consolidar esse posicionamento em sede de IRR, o TST confere-lhe o status de precedente que vincula a jurisprudência trabalhista, como estabelecem os artigos 896-C, § 11, da CLT, e. 927, III, do CPC[3].
Assim, as demandas ajuizadas antes da entrada em vigor da Lei nº 13.467/2017 seguem, para efeito de honorários advocatícios, os critérios consolidados no Enunciado 219 da Súmula do TST, assentando-se, portanto, que prevalecem os critérios normativos existentes na data do exercício do direito de ação.
Por outro lado, prevalece no STJ entendimento em sentido inverso[4]. Apesar de identificar uma natureza híbrida dos honorários advocatícios, material e processual, o STJ atribui primazia a esta última. Daí, a partir de prevalência de uma natureza processual, sustenta-se que a sentença é o ato processual que orienta a fixação das despesas processuais. Aplica-se a teoria do isolamento dos atos processuais para entender-se que antes desse ato judicial existiria apenas uma expectativa quanto ao conteúdo decisório. Segundo essa compreensão, a sentença constitui o direito aos honorários, identificado pelo critério da sucumbência. Nesse sentido, como exemplo da doutrina majoritária no âmbito do processo civil, Clayton Maranhão afirma que, por não se destinarem à parte vencedora, mas sim ao seu advogado, os honorários advocatícios não correspondem ao direito material objeto do litígio. Não obstante, apesar de defender a natureza processual dos honorários advocatícios, o professor da UFPR admite, também, a necessidade de observância do princípio da segurança jurídica – o que pode levar a outras respostas, como será visto mais adiante[5].
2 A NATUREZA JURÍDICA DAS NORMAS RELATIVAS AO REGIME FINANCEIRO
Indaga-se o critério adotado pela alta Corte Trabalhista pode ser estendido também às demais normas relativas ao regime financeiro processual.
Diz respeito, essa nomenclatura, ao conjunto de normas que orientam o tratamento relativo aos custos que envolvem o exercício de uma demanda. Não estão incluídos nesse conceito, portanto, gastos relativos a outros aspectos, por exemplo, com deslocamento da parte a seu advogado etc. Por outro lado, são abarcados nesse regime os gastos que, de uma forma ou de outra, estejam imediatamente vinculados ao exercício do direito de ação ou de faculdades e ônus processuais.
Para responder a essa indagação, é necessário assentar a natureza jurídica das normas que disciplinam esse regime. Por meio desse raciocínio lógico, extraem-se consequências a partir da classificação de determinado instituto, pois, como registra Carlos Santiago Nino, por “trás da busca da natureza das instituições jurídicas está, na maioria dos casos, o propósito de situar certo caso dentro de um determinado marco normativo proposto originalmente para outras situações”[6].
Como acima realçado, há distinção entre normas materiais e normas processuais. Essas dizem respeito ao desenvolvimento da relação processual, ao passo que aquelas disciplinam a conduta humana em sua convivência social, regulando os interesses respectivos e apresentando critérios e conteúdo para a adjudicação dos conflitos que eventualmente surgem. Por isso, afirma-se que o direito processual retrata um interesse secundário à relação jurídica, como esclarece Arruda Alvim[7]. Pouco importam os locais da previsão legislativa da despesa (um diploma processual), ou o local de seu surgimento – no caso, em um processo. Esses fatores topográficos são importantes, mas, conquanto sedutores, insuficientes, face à existência das chamadas normas heterotópicas, situadas topograficamente em diploma normativo de determinada natureza, mas que regem situações de outra natureza. Assim, é possível que em um diploma de direito material haja regras de direito processual, e também o inverso. Essa afirmação decorre da simples, mas reveladora, constatação de que a distinção entre direito processual e direito material não significa que “um e outro se encontrem confinados em compartimentos estanques” (DINAMARCO)[8].
3 A SEGURANÇA JURÍDICA COMO VETOR NORMATIVO E HERMENÊUTICO
Assim, sobressai a importância da segurança jurídica, um dos argumentos utilizados pelo relator no IRR acima mencionado[9]. De fato, enquanto princípio com sede constitucional, a segurança jurídica deve ser um dos vetores da interpretação e aplicação normativa, e exige, dentre as diversas formas de sua manifestação, um olhar para o futuro, sob a perspectiva da calculabilidade, a “antecipação de alternativas interpretativas bem como efeitos normativos das normas jurídicas” (DUARTE[10]), ou, na lição de Humberto Ávila, a “capacidade de o cidadão prever, em grande medida, os limites da intervenção do Poder Público sobre os atos que pratica” (2016, p. 144). Trata-se, como pode se identificar, do que se tem chamado de segurança de orientação. Nessa esteira, Gianmarco Gometz[11] afirma que há necessidade de que o direito ofereça elementos e critérios para predições e controle de avaliações, de forma que a pessoa possa fazer um planejamento de sua conduta levando em consideração as consequências que decorram dessa opção. Efetivamente, há uma contribuição da segurança jurídica à autonomia da pessoa, proporcionando-lhe a capacidade de elaborar planos de longo prazo a partir de uma determinada realidade fática e normativa. Como logo se identifica, essa perspectiva revela o elo entre segurança jurídica e a dignidade da pessoa.
Note-se que a segurança jurídica manifesta-se, ainda, em sua perspectiva subjetiva, conhecida como proteção da confiança.
De fato, os custos no processo consistem em um fator de influência de definição para o exercício de demandas ou de faculdades. Ao formular uma pretensão, ou ao apresentar uma defesa, a pessoa avalia a relação de custo-benefício com a demanda bem como aquilatar as vantagens desvantagens e riscos do exercício do direito de ação. Assim, ao decidir atuar processualmente, a parte toma em conta os custos contemporâneos a essa análise, isto é, quais os valores que deve ou poderá dispender em razão da demanda. Como disse Marcelo Barbi Gonçalves, “o custo ex ante de se utilizar um método de resolução de conflitos é um primado ínsito a um bom sistema jurisdicional, de forma que apenas em sociedades de subterrâneo capital institucional os cidadãos socorrem-se do aparelho estatal para compor litígios sem poder antever as consequências possíveis de seu comportamento”[12].
CONCLUSÃO
Após essas – longas – premissas, a partir da identificação de que os custos financeiros integram o chamado direito material processual, é possível identificar a aplicação da mesma ratio do IRR 341-06.2013.5.04.0011 a outras hipóteses que formam o regime financeiro processual.
Assim, o exercício de uma faculdade (ou de um ônus) processual sob determinada regência normativa deve estar informado pelas regras vigentes no momento desse ato processual, sujeitando-se aos critérios, condições e consequências contemporâneos à mencionada prática. Isto significa que as mudanças realizadas no plano normativo (legislação, jurisprudência etc.) não devem provocar reflexos no exercício de uma faculdade ou de um ônus.
[1] É bem verdade que o legislador nem sempre observa os critérios técnicos que orientam determinada previsão normativa. As opções ideológicas constantes no projeto que converteu-se na Lei nº 13.467 e as múltiplas atecnias nelas presentes levam à identificação de que a omissão do legislador não foi tão catastrófica.
Ademais disso, tal concepção pode estar vinculada a uma concepção estatalista de processo.
[2] Tradução nossa do seguinte trecho: “Vi sono, tuttavia, alcune zone grigie, in cui dubbio potrebbe essere il critério di applicazione dell’ antica o della nuova legge processuale, ma, come abbiamo detto, tali punti non possono sfuggire all’ atento vaglio di un legislatore che meriti questo nome, onde normalmente i casi dubbi sono risoluti appunto dalle disposizione transitorie”. (ROCCO, Ugo, Corso di Teoria e Pratica del processo Civile. Vol. 1. Parte Generale. Napoli: Ed. Libreria Scientifica, 1951. p. 176, apud GONÇALVES. Marcelo Barbi, 2017, p. 167-168.
[3] Sobre o tema, cf. MIESSA; CARDOSO, 2020, p. RB-29.
[4] EAREsp nº 1.255.986/PR. Corte Especial. Rel. Min. Luis Felipe Salomão. Dt. Julg.: 20/03/19).
[5] 2016, s.l.
[6] 2015, p. 396.
[7] 2021, RB-6.3.
[8] 2002, p. 43.
[9] “Por isso mesmo são essas normas pretéritas, mas contemporâneas ao ajuizamento da ação, que devem ser aplicadas a todos os processos que tiveram início antes dessa substancial e profunda alteração legal em exame, a fim de se assegurar a efetividade aos princípios da segurança jurídica, da confiança legítima, da boa-fé e, principalmente, da causalidade que permeiam nosso sistema jurídico, para não falar até mesmo do princípio da vedação da decisão surpresa, previsto expressamente no artigo 10 do CPC/2015” (voto, p. 99).
[10] 2021, p. 43.
[11] 2005, p. 251.
[12] 2017, p. 174.