RECURSO ESPECIAL: VOCÊ NÃO PASSARÁ!

Uma das cenas mais marcantes da trilogia “Senhor dos Anéis”, seja nos livros seja nos filmes, é a da batalha entre o mago Gandalf com o monstro Balrog, uma criatura das sombras que jorra fogo. Ao tentar escapar do Balrog e atravessar uma ponte dentro das minas, Gandalf grita ao monstro: “você não passará!” (You shall not pass!) e usa seus poderes para derrubar a ponte. Assim, os dois caem batalhando na escuridão, o que permite com que os demais membros da sociedade do anel possam escapar dos perigos da mina e continuar a jornada para destruição do anel.

Mas, o que tem a ver a história do “Senhor dos Anéis” com o Recurso Especial? Certamente que não temos a pretensão de dar spoilers ou contar a história do “Senhor dos Anéis”, mas apenas fazer uma analogia/metáfora com relação ao problema da inclusão do requisito da relevância da matéria nos Recursos Especiais, para facilitar ao leitor a visualização da problemática de tal alteração na Constituição.

Extrai-se da Emenda Constitucional nº 125/2022, que acrescentou ao artigo 105 da Constituição os §§2º e §3º, com a previsão de que, no Recurso Especial, a parte recorrente deverá demonstrar a relevância das questões de direito federal infraconstitucional discutidas no caso, a fim de que o Tribunal decida pela sua admissibilidade.

É certo que o objetivo de tal alteração é a redução de recursos especiais no STJ[1], o que se alinha à uma perspectiva neoliberal[2] da análise econômica do direito[3], além de que se pretende transformar o STJ em uma Corte Suprema[4]. Nesse sentido, é a fala do Min. Presidente do STJ, de que a maioria dos recursos buscam apenas rever o interesse das partes da causa “sem maior impacto na uniformização da jurisprudência”.[5]

Assim, entende-se que a missão constitucional do STJ é “dar a última palavra nas controvérsias jurídicas de grande relevância”[6] e interpretar a legislação infraconstitucional, motivo pelo qual as questões de interesse das partes devem ser resolvidas nos tribunais estaduais e regionais federais.

Entretanto, a Emenda realizada é um cordeiro vestido de lobo que na verdade trará mais problemas que vantagens.

Pode-se extrair da leitura da alteração realizada que nem toda violação de lei é relevante[7], mas, questionamos, a violação de lei por si só já não é relevante? Decidir e aplicar a lei de modo equivocado já não é relevante para reformar uma decisão? Ou será que a relevância irá normalizar ainda mais as constantes violações vivenciadas nos tribunais pátrios? A Emenda realizada não legitimaria a exceção cotidiana[8] de suspensão da legalidade para aplicação de critérios solipsistas dos magistrados?

Afinal, o que se entende por questão relevante? Trata-se de mais uma noção aberta e indemarcada, de difícil definição, e sem qualquer critério objetivo para seu controle e medição. Ou, como pergunta Lenio Streck, “haverá um ‘relevantômetro’” para definir qual causa é relevante ou não?[9]

No mesmo caminho é a crítica de Pedro Cândido Veríssimo Gil Alcon, ao consignar que a noção de relevância, em realidade, permitirá decisões discricionárias do STJ:

Deste modo, se aprovada a proposta, passarão os ministros do STJ a disporem de inconteste discricionariedade tal como possuem os ministros do STF. Terão liberdade suficiente para bem entenderem e dizerem qual procedimento possui relevância e qual não possui, o que também viola o texto constitucional.[10]

Será que a partir de agora a ação rescisória com base em violação de norma jurídica (art. 966, V, do CPC) não se tornaria uma espécie de sucedâneo recursal para as violações tidas como sem relevância? Com certeza esse impacto e reflexão não foi realizada pelos idealizadores e defensores da arguição de relevância da matéria.

É crucial acrescentar, ainda, o aumento na dificuldade de admissão dos recursos especiais. Já se enfrenta uma tenebrosa e inconstitucional jurisprudência defensiva, para a qual “recurso bom é recurso morto”[11], e a demonstração da relevância da matéria se colocará como mais um obstáculo para que os recursos possam ser admitidos e julgados.

E aqui a crítica que fazemos é de suma importância, pois quanto menos recursos admitidos menos julgamentos ocorrerão, e cada vez mais a jurisprudência e o próprio Direito se tornarão engessados e petrificados, em uma duração ad aeternum, na medida em que o acesso ao STJ se tornará quase impossível.

E alinhada à jurisprudencialização do direito, como fica a distinção e a superação dos entendimentos e a correção dos equívocos do Tribunal Superior?

Vale dizer, não se percebe a ineficiência da inadmissão recursal pela implementação de filtros defensivos, já que outros recursos serão interpostos para destrancamento do REsp, o que cria uma cadeia cada vez maior. Não seria mais fácil analisar o mérito recursal e julgá-lo? É certo que a inadmissão por não preenchimento do critério da relevância piorará tal situação.

A Emenda também desvirtua a própria função constitucional do STJ. Ora, no Brasil não há qualquer autorização constitucional para que os tribunais superiores sejam considerados como cortes supremas cujo objetivo é a criação de teses gerais e abstratas para moldar o ordenamento jurídico. O STJ não é órgão transcendental[12], mas, sim, tribunal recursal[13], que irá julgar as violações e negativas de vigência à legislação infraconstitucional; válido ato de governo local contestado em face de lei federal; e divergência jurisprudencial em relação à interpretação divergente atribuída a outro tribunal.

Ser o responsável pela interpretação da legislação infraconstitucional não é uma autorização de que se possa criar uma tese geral acerca da interpretação da lei e replicar a julgamentos iguais. Ora, as partes não irão interpor seus recursos para uniformizar a legislação, mas para que o direito em discussão seja devidamente aplicado a seu caso.

Nessa esteira, não se pode perder de vista que a Emenda em comento “traz em si uma busca por eficiência meramente quantitativa, que olvida não só a legitimidade democrática das decisões, mas também a real função constitucional de tais tribunais de superposição, a qual não se presta à criação de teses gerais, abstratas e ininterpretáveis à artificial-estéril redução do número de processos”.[14]

Desse modo, vê-se que a justificativa da alteração constitucional cai por terra, no momento em que se olvida que se deve partir da lide em julgamento para a formação de julgados-precedentes e não servir como simples pretexto para criação de teses abstratas que visam reduzir o número de recursos em trâmite.

A tendência de jurisprudencializar a lei já foi criticada por Júlio César Rossi, pois se cria:

[…] uma situação de amplo, irrestrito e perigoso poder à jurisprudência vinculante em detrimento da lei (lato sensu). Essa jurisprudência que se autorreferencia na medida em que as decisões não mais indicam quaisquer dispositivos legal ou constitucional, mas apenas se retroalimentam da própria jurisprudência (normalmente ementas), muitas vezes que sequer conexão ou referência às hipóteses tratadas no caso em discussão.[15]

Por fim, mas não menos importante, os recursos não são a principal causa da morosidade judicial, além de que não é a relevância da matéria que irá solucionar do dia para a noite tal questão. Os defensores de tal alteração não focam no problema das etapas mortas do procedimento, dos prazos impróprios e da própria litigiosidade, razão pela qual a arguição de relevância se torna uma mera medida paliativa, que acabará trazendo reflexos maléficos aos direitos e garantais processuais constitucionalmente assegurados desde o plano instituinte da normatividade.

Demoniza-se a interposição de recursos especiais – como se estes fossem o Balrog e a emenda fosse o salvador e herói Gandalf que grita You shall not pass! –, contudo, não se percebe que essa alteração não se passa de mais uma artimanha para atender os interesses e a conveniência de produção massificada de decisões dos Tribunais Superiores.

Certamente já se tem mais uma inconstitucionalidade na Constituição.

É importante destacar: não somos inimigos do STJ e de seus Ministros, mas críticos às propostas legislativas e às decisões que acabam por ferir de morte a Constituição e a legalidade, que se encontram fora dos parâmetros da construção do Estado Democrático de Direito, a exemplo da Emenda Constitucional nº 125/2022, que de Gandalf não tem nada.

[1] A defesa da redução de recursos foi feita pelo Presidente do STJ, Min. Humberto Martins, conforme notícia veiculada no próprio site do tribunal: “O ministro apontou que a corte vem recebendo cada vez mais recursos que discutem questões jurídicas sem repercussão para a sociedade e sem reflexos importantes na uniformização da jurisprudência nacional. Segundo ele, a PEC da Relevância se soma a outros mecanismos legais – como o sistema dos recursos repetitivos – no objetivo de reduzir o excesso de recursos, dar mais velocidade à prestação jurisdicional, fortalecer a jurisprudência e ampliar a segurança jurídica”. Disponível em: <https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/03112021-Senado-aprova-criacao-de-filtro-de-relevancia-para-admissao-dos-recursos-especiais.aspx>

[2] TORRES, Tiago Henrique. “Crise” e estratégias da influência neoliberal mediante reformas processuais. Contraditor: o debate em primeiro lugar. Disponível em: https://www.contraditor.com/crise-e-estrategias-da-influencia-neoliberal-mediante-reformas-processuais/

[3] MUNDIM, Luís Gustavo Reis. Análise Econômica do Direito e a tirania do bem-estar. Contraditor: o debate em primeiro lugar. Disponível em: https://www.contraditor.com/analise-economica-do-direito-e-a-tirania-do-bem-estar/

[4] Somos críticos a tal defesa. Por todos: MUNDIM, Luís Gustavo Reis. Tribunais superiores não são Cortes Supremas. Contraditor: o debate em primeiro lugar. Disponível em: https://www.contraditor.com/tribunais-superiores-nao-sao-cortes-supremas/

[5] A fala foi veiculada em notícia no site do STJ: https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/04072022-Apos-modificacoes-no-Senado–PEC-da-Relevancia-e-aprovada-em-comissao-da-Camara.aspx#:~:text=A%20PEC%20da%20Relev%C3%A2ncia%2C%20como,Tribunal%20de%20Justi%C3%A7a%20(STJ).&text=Para%20o%20ministro%20Humberto,a%20ess%C3%AAncia%20da%20proposta.%E2%80%8B

[6] https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/04072022-Apos-modificacoes-no-Senado–PEC-da-Relevancia-e-aprovada-em-comissao-da-Camara.aspx#:~:text=A%20PEC%20da%20Relev%C3%A2ncia%2C%20como,Tribunal%20de%20Justi%C3%A7a%20(STJ).&text=Para%20o%20ministro%20Humberto,a%20ess%C3%AAncia%20da%20proposta.%E2%80%8B

[7] Nesse sentido é a crítica de Lenio Streck: STRECK, Lenio Luiz. O que restará do recurso especial se aprovada a PEC da Relevância? Conjur. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2021-out-21/senso-incomum-restara-recurso-especial-aprovada-pec-relevancia.

[8] LEAL, André Cordeiro. THIBAU, Vinicius Lott. A dogmática processual e a exceção cotidiana. Revista Brasileira de Direito Processual – RBDPro, Belo Horizonte, ano 23, n.92, p. 13-29, out./dez.2015.

[9]  Estamos de acordo com os questionamentos críticos realizados por Streck: “Como seria feito isso? O que é relevante? Haverá um “relevantômetro”? Em um país como o nosso, corre-se o risco de se atribuir relevância apenas às causas de grandes dimensões do “andar de cima”; as causas da patuleia, que hoje, é bem verdade, ficam restritos às ilhas das Turmas Recursais, ficam com chance zero de serem discutidas no Tribunal da Cidadania. Ou não tem sido assim na história da República? A respeito, escrevi há alguns dias uma crítica à proposta de alteração da Resolução 75 do CNJ e à consequente inclusão de matérias como pragmatismo, análise econômica do direito e economia comportamental nos concursos de juiz. E aqui é que a porca torce o rabo: Caso tal alteração curricular ocorra em definitivo e a PEC objeto deste texto seja aprovada, teremos, portanto, magistrados consequencialistas a interpretar o conceito de relevância. Alguma dúvida sobre o resultado? Seria a PEC em comento mais uma decorrência da consagração do pragmatismo e do consequencialismo no Direito brasileiro implementada pela LINDB, no sentido em que assim considera o Ministro Luiz Fux”. STRECK, Lenio Luiz. O que restará do recurso especial se aprovada a PEC da Relevância? Conjur. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2021-out-21/senso-incomum-restara-recurso-especial-aprovada-pec-relevancia.

[10] ALCON, Pedro Cândido Veríssimo Gil. Reflexões críticas sobre a proposta de repercussão geral no recurso especial: uma abordagem sobre a tendência de coletivização das demandas individuais. In: CASTRO, João Antônio Lima. (Org.). Direito público e processual: uma conjuntura jurídica. Belo Horizonte: PUC Minas, Instituto de Educação Continuada, 2019.

[11] Sobre o tema: RABELO, Júlia Gomide Antunes; MUNDIM, Luís Gustavo Reis; PAOLIELLO, Pedro Henrique Lacerda. Os perigos da nova jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça. In: ALVES, Lucélia et all. 4 anos de vigência do Código de Processo de 2015. Belo Horizonte: D’Plácido, 2020, p. 341-368.

[12] COSTA, Eduardo José da Fonseca. Os tribunais superiores são órgãos transcendentais? In: COSTA, Eduardo José da Fonseca. Processo e garantia. Londrina: Thoth, 2021, v.01.

[13] MUNDIM, Luís Gustavo Reis. Precedentes: da vinculação à democratização. Belo Horizonte: D’Plácido, 2018, p.191.

[14] ROSSI, Júlio César; MUNDIM, Luís Gustavo Reis. Reclamação e cortes supremas: contrapontos às teses do professor Daniel Mitidiero. Revista Brasileira de Direito Processual – RBDPro, Belo Horizonte, ano 29, n. 113, p. 199-217, jan./mar. 2021, p. 214-215.

[15]ROSSI, Júlio César. Precedente à brasileira: a jurisprudência vinculante no CPC e no novo CPC. São Paulo: Atlas, 2015, p. 338.

Autor

  • Mestre e especialista em Direito Processual pela PUC/MG. Pós-graduando em gestão de negócios pela Fundação Dom Cabral. Membro da ABDPRO, do INPEJ e da ACADEPRO. Advogado e professor



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Comentários

  1. Muito boa a reflexão. Foi de grande valia o Autor ressaltar que seu entendimento não abarque que o Recurso Especial seja admitido apenas ser arguir e corroborar a questão de relevância não engrenará para que a Justiça seja mais ágil e eficiente. A “ suposta “ redução de processos a serem julgados no STJ não será oriunda do novel pressuposto para o Recurso Especial para tanto , compara -se com a restrição de matéria do Recurso de Revista no TST não desencadeou diminuição de volume de apelos a serem julgados

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