QUAIS “PRECEDENTES” MERECEM CONSIDERAÇÃO NA DECISÃO?

No julgamento do REsp 1.698.774, a 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, em acórdão relatado pela ministra Nancy Andrighy, entendeu que a regra do CPC/2015, art. 489, § 1º, VI, que impõe o dever de fazer a distinção ou demonstrar a superação do entendimento quando o juiz deixar de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte “somente se aplica às súmulas ou precedentes vinculantes, mas não às súmulas e aos precedentes apenas persuasivos, como, por exemplo, os acórdãos proferidos por Tribunais de 2º grau distintos daquele a que o julgador está vinculado”.

Já se asseverou em outra sede:

O entendimento é equivocado por duas razões. Em primeiro lugar, é necessário pontuar que este dispositivo legal especifica no âmbito da lei infraconstitucional o direito fundamental à decisão fundamentada, que é previsto na CF/1988, art. 93, IX e que está intimamente ligado à garantia fundamental do devido processo legal (CF/1988, art. 5º, LIV). A interpretação dada pela 3ª Turma do STJ no caso foi no sentido de restringir a incidência dessas normas fundamentais no caso concreto, o que se configura um equívoco, pois a interpretação de direitos e garantias fundamentais sempre deve ser no sentido de potencializá-los, ampliando-os e não restringindo sua incidência.

 

Em segundo lugar, vale destacar que o dispositivo legal aqui comentado faz referência à necessidade de que o juiz apresente os motivos da distinção ou da superação do entendimento que esteja insculpido em enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte, não fazendo referência aos provimentos vinculantes apenas. O equívoco da decisão acima referida decorre da não realização de uma interpretação sistemática das normas do CPC/2015 sobre o assunto. Se há uma preocupação do legislador com a uniformização e com a estabilidade da jurisprudência dos tribunais (CPC/2015, art. 926), se houve o estabelecimento de uma série de mecanismos para a construção de provimentos vinculantes, o que se quis foi buscar a promoção da igualdade perante as decisões judiciais e da segurança jurídica. Logo, quando uma parte invoca como paradigma uma decisão (precedente), um conjunto de decisões (jurisprudência) ou um enunciado de súmula (resumo da jurisprudência), é porque ela busca a aplicação daquele paradigma ao seu caso concreto. Então, se o juiz do caso entende que aquele paradigma não se aplica, seja ele vinculante ou persuasivo, deve demonstrar isso na sua fundamentação, seja por meio da técnica da distinção, seja por meio da revelação de que aquele paradigma já foi superado.[1]

E são justamente essas duas razões que serão melhor desenvolvidas no texto desta semana.

Na lição de Barbosa Moreira, o Estado de Direito é caracterizado como “Estado que se justifica”, que demonstra as razões pelas quais promoverá a intromissão na vida dos cidadãos, que “é materialmente justificada, quando para ela existe fundamento; é formalmente justificada, quando se expõe, se declara, se demonstra o fundamento”[2].

Um dos fatores que garantem a legitimidade democrática no exercício do poder jurisdicional é justamente a exigência de fundamentação das decisões, que serve de freio para o autoritarismo, já que impõe a apresentação de uma justificativa racional e adequada ao ordenamento jurídico para a decisão do caso concreto.

Como se vê, o ato de fundamentar uma decisão está intimamente ligado aos pilares de sustentação de um Estado Democrático de Direito. E nisso não há qualquer novidade. Mas é preciso tornar o discurso realidade. No campo dos fatos é que se pode aferir a dimensão da importância que a Jurisdição confere à exigência de fundamentação das decisões.

Fazendo parte do catálogo dos direitos fundamentais e atrelado diretamente à garantia do devido processo legal, o direito à fundamentação das decisões judiciais não admite interpretação restritiva.

Não cabe ao Superior Tribunal de Justiça, a pretexto de interpretar regra estabelecida pelo Código de Processo Civil, olvidar-se da fonte constitucional de onde brota a regra especificada no texto infraconstitucional.

Ao interpretar as disposições do CPC/2015, art. 489, § 1º, o STJ não está tratando de pura e simples norma infraconstitucional. Ali há direito/garantia fundamental em lapidação.

Em sendo assim, cabe interpretação baseada no “cânone hermenêutico-constitucional da máxima efetividade”, que “orienta os aplicadores da lei maior para que interpretem as suas normas em ordem a otimizar-lhes a eficácia, mas sem alterar o seu conteúdo”.[3]

Esse cânone “veicula um apelo aos realizadores da constituição para que em toda situação hermenêutica, sobretudo em sede de direitos fundamentais, procurem densificar tais direitos, cujas normas, naturalmente abertas, são predispostas a interpretações expansivas”[4].

O ato interpretativo do STJ na decisão objeto de análise neste texto, entretanto, operou no modo restritivo do direito/garantia fundamental.

Disciplina o texto legal que é nula a decisão que “deixar de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte, sem demonstrar a existência de distinção no caso em julgamento ou a superação do entendimento” (CPC/2015, art. 489, § 1º, VI).

E, como se sabe, as partes podem invocar, como argumentos em suas petições, enunciados de súmula vinculante ou não, entendimentos jurisprudenciais de quaisquer tribunais ou mesmo precedentes oriundos de qualquer órgão jurisdicional.

O que caracteriza um precedente não é o fato de estar previsto na lei como vinculante e, sim, a qualidade da decisão judicial em que ele foi estabelecido. Então, a rigor, qualquer decisão, de primeira instância, de tribunal local, regional ou superior poderá ser considerada um precedente se contiver os predicados de qualidade necessários para ser usada como paradigmática.

E isso, inclusive, é saudável, pois permite que a construção do direito seja não somente operada pelos tribunais superiores, mas também por todo e qualquer magistrado que logre êxito em produzir decisões tão qualificadas que sejam consideradas paradigmas.

Os argumentos baseados em precedentes, em jurisprudência de outros tribunais ou em enunciados de súmula de natureza persuasiva, por fazerem parte do fenômeno jurídico, merecem resposta do julgador e, a rigor, nem mesmo haveria a necessidade dessa previsão específica do CPC/2015, art. 489, § 1º, VI, pois o inciso IV já impõe manifestação sobre “todos os argumentos deduzidos no processo capazes de, em tese, infirmar a conclusão adotada pelo julgador”.

Apesar dessa desnecessidade, e talvez antevendo as resistências ao dever de fundamentação analítica, o legislador foi insistente e cuidou de especificá-lo ainda mais. Isso dá a dimensão da importância que o legislador infraconstitucional atribuiu à regra da fundamentação das decisões judiciais no CPC.

Compreendeu bem a Constituição, o legislador. Talvez essa compreensão ainda não tenha sido alcançada pelo STJ. É preciso evoluir, então.

Quando o inciso VI faz menção a enunciado de súmula, a jurisprudência e a precedente, ele não indica qualquer teor restritivo. Isso significa então que, seja vinculante ou não, esteja previsto no rol do CPC/2015, art. 927 ou não, se houve invocação do provimento jurisdicional como argumento da parte e sendo ele pertinente ao caso, há dever de sobre ele manifestar-se o julgador, seguindo o paradigma invocado ou demonstrando a distinção ou a superação.

O STJ foi na contramão dessa ideia e asseverou que a regra do inciso VI “somente se aplica às súmulas ou precedentes vinculantes, mas não às súmulas e aos precedentes apenas persuasivos, como, por exemplo, os acórdãos proferidos por Tribunais de 2º grau distintos daquele a que o julgador está vinculado”.

E no próprio exemplo usado pelo tribunal verifica-se um contrassenso gritante.

No caso concreto julgado pelo STJ, a ministra relatora asseverou que o TJ/RS, de onde partiu o acórdão recorrido, não estava obrigado a manifestar-se sobre os julgados do TJ/SP e do TJ/DF que foram invocados pela parte nas suas razões de recurso. E isso é bastante curioso justamente porque uma das hipóteses de cabimento do recurso especial para o STJ é a existência de entendimentos conflitantes entre tribunais diferentes.

A CF/1988, art. 105, III, c estabelece que cabe recurso especial quando a decisão recorrida “der a lei federal interpretação divergente da que lhe haja atribuído outro tribunal”. Ora, a hipótese de cabimento aqui referida não faz menção a interpretação divergente estabelecida em “precedente vinculante”. E nem poderia, já que o modelo constitucional de processo não opera com essa categoria.

Um dos fundamentos de cabimento do REsp 1.698.774, inclusive, foi a alínea c do art. 105, III/CF. Ou seja, a parte recorrente justamente buscou no STJ demonstrar que a decisão recorrida estava em dissonância com interpretação dada à lei federal por outros tribunais.

Mas o contrassenso é ainda maior. Para o recebimento do recurso especial exige-se prequestionamento do tema. Diante disso, imagine o leitor que a parte se depara com acórdão de Tribunal de Justiça que não enfrenta julgados de outros tribunais de mesma estatura em sentido contrário ao seu entendimento. Seu primeiro impulso é o de invocar omissão e nulidade do julgado, até mesmo porque para o recebimento de seu recurso na instância superior há a necessidade de que a questão tenha sido apreciada.

Ou seja, para além da exigência mesma da fundamentação analítica, no caso concreto, havia a exigência de provocação de manifestação para que se perfizesse a hipótese de cabimento do recurso de natureza extraordinária.

E, por fim, cabe destacar que essa resistência específica do STJ de dar a extensão devida ao direito/garantia da fundamentação analítica das decisões judiciais é fruto de uma não compreensão do sistema decisório brasileiro e da construção dos significados no direito.

Ao entender que apenas os “provimentos vinculantes” é que merecem ser apreciados nas decisões judiciais, o STJ impõe uma compreensão autoritária do sistema, como se só tivessem importância e merecessem consideração as decisões produzidas pelos tribunais superiores e alguns outros determinados provimentos dos tribunais locais e regionais.

Isso implica em desprestígio do serviço jurisdicional como um todo, pois embora se considerem importantes os provimentos listados no CPC/2015, art. 927, porque, em essência, referem-se a questões repetitivas, não encerram eles a dimensão da construção jurisprudencial brasileira.

Se o CPC/2015, art. 926 exige que os tribunais atuem no sentido de preservar e promover coerência e integridade no direito, não estão eles autorizados a ignorar entendimentos jurisprudenciais ou precedentes produzidos por outros órgãos jurisdicionais, sob pena de se considerar apenas o aspecto interno do conceito de coerência nas decisões judiciais e olvidar-se o seu aspecto externo.

 

Referências

BARBOSA MOREIRA, José Carlos. A motivação das decisões judiciais como garantia inerente ao Estado de Direito. In: BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Temas de direito processual (segunda série). São Paulo: Saraiva, 1980.

COELHO, Inocêncio Mártires. Métodos – Princípios de interpretação constitucional. Revista De Direito Administrativo, 230, p. 163-186, out-dez 2002. Disponível em: http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rda/article/view/46340. Acessado em 07/08/2021.

HELLMAN, Renê. Comentários ao Código de Processo Civil – SuperCPC/JuruáDocs, art. 489. Disponível em: www.juruadocs.com/legislacao/art/lei_00131052015-489. Acesso em: 07/08/2021.

[1] HELLMAN, Renê. Comentários ao Código de Processo Civil – SuperCPC/JuruáDocs, art. 489. Disponível em: www.juruadocs.com/legislacao/art/lei_00131052015-489. Acesso em: 07/08/2021.

[2] BARBOSA MOREIRA, José Carlos. A motivação das decisões judiciais como garantia inerente ao Estado de Direito. In: BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Temas de direito processual (segunda série). São Paulo: Saraiva, 1980, p. 89.

[3] COELHO, Inocêncio Mártires. Métodos – Princípios de interpretação constitucional. Revista De Direito Administrativo, 230, p. 163-186, out-dez 2002. Disponível em: http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rda/article/view/46340. Acessado em 07/08/2021, p. 183.

[4] COELHO, Inocêncio Mártires. Métodos – Princípios de interpretação constitucional. Revista De Direito Administrativo, 230, p. 163-186, out-dez 2002. Disponível em: http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rda/article/view/46340. Acessado em 07/08/2021, p. 183.

Autor

  • Professor do Departamento de Direito Processual da UEPG; Coordenador do grupo de pesquisa Observatório Processual do STJ na UEPG; Doutorando em Direito pela UFPR; Mestre em Ciência Jurídica pela UENP; Autor dos Comentários ao Código de Processo Civil pela Editora Juruá; Advogado.



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