113. PROCESSO, JUSTIÇA E CALMON DE PASSOS

UMA HOMENAGEM A UM FUGITIVO

Quando se fala num processo justo, num processo équo, numa ordem jurídica justa, por mais bem que eu queria a esses meus ex-amigos  – que hoje estão todos com raiva de mim –, eu considero isso um crime e só não os fuzilo porque não posso. (Calmon de Passos, J. J).

J.J. Calmon de Passos em entrevista disponível no Youtube: https://youtu.be/daJeo7lAW8M

1. Introdução

É muito comum – e talvez inevitável – o emprego do significante “justiça” e seus cognatos na argumentação jurídica, tanto científica quanto prática.

No entanto, o discurso é recepcionado de modo diverso, entre outros motivos, justamente em razão do lugar de fala do emissor. Pensemos, especificamente, no seu emprego por advogados e por doutrinadores.

São conhecidas as troças lançadas contra os advogados que terminam seus arrazoados “clamando pela mais lídima e necessária JUSTIÇA”. A invocação é tomada, no mínimo, como sinal de questionável orientação estética; comunica superficialidade e pieguice. Já quando vem em proposições doutrinárias, a afecção é positiva tanto do ponto de vista do conhecimento quanto de composição estética; comunica profundidade e esmero.

Alguém poderia pretender explicar o fenômeno afirmando que advogados utilizam o significante como muletas retóricas destituídas de condensação conteudística. Exigem justiça, mas não dizem o que ela é, como pode ser descoberta e semanticamente referida. Pedem pelo que não se pode saber se, como e quando conceder. Já doutrinadores o fariam mediante elaborações consistentes sobre o que entendem por “justiça”. Lendo-os, sabe-se, sobre a justiça, o que é, como pode ser descoberta e semanticamente referida.

Não é o que ocorre. De fato, em suas peças os advogados não dizem o que a justiça é, como pode ser descoberta e semanticamente referida. Invocam-na, no mais das vezes, como mero apelo retórico sem ambição prática ou como apelo ao subjetivismo do juiz. Não é diferente do que ocorre com a doutrina dogmática. Conquanto enleada em certa aura de sofisticação, suas proposições igualmente banalizam o termo «justiça».

É o caso da processualística. Malgrado o texto do art. 5º, LIV, CRFB, tem-se afirmado que houve um câmbio do devido processo legal para o processo justo. E não são expressões sinônimas, livremente intercambiáveis. Devido processo legal e processo justo seriam entes de cultura distintos, este superior àquele. Entretanto, o que o justo é, como pode ser descoberto e semanticamente referido, segue sendo algo nebuloso e obscuro, uma espécie de privilégio cognitivo de iniciados que detém o poder simbólico do discurso, ainda que ao custo de um elevado grau de imprevisibilidade e descontrole das práticas levadas a seu efeito.

Calmon de Passos anteviu isso, como fica claro na epígrafe deste texto – insólita, é verdade, mas fruto da insuperável verve oratória do homenageado, para mim a maior dos juristas brasileiros[1]. Nessa breve homenagem quero repisar parte de seus argumentos, compará-lo com o de seus adversários teóricos e, apoiado noutros autores, indicar a minha concordância com o seu ceticismo quanto a esse discurso do justo em direito, particularmente em direito processual – enfim, à ideia de processo justo.

 

2. A Ideia do justo em Calmon de Passos

Em obra póstuma, produto do seu maior estágio de maturação intelectual, Calmon de Passos oferece consideração tão curta quanto esclarecedora sobre o que entende por justiça.

O autor reconhece que “a ideia de justiça é indissociável da condição humana”. Acusa de manipulador e contraditório, porém, tanto quem afirma que o Direito tem compromisso com a Justiça, “compreendida como valor imanente à condição humana, absoluto e ahistórico”, quanto quem afirma que “o Direito é de todo indiferente à Justiça”[2].

Ao mesmo tempo, adverte que “nenhuma teoria da justiça elaborada até hoje foi satisfatória”, e que, à guisa de solução institucional, carecemos “de instrumentos para objetivamente definirmos e determinarmos o justo”. Por isso, “Será sempre a decisão de alguém”[3]. Pragmaticamente, a justiça é produto de uma decisão política.

Bastante peculiar – quiçá algo utilitarista –, sua concepção de justiça está atrelada à satisfação de necessidades e desejos: “Justiça, para mim, tem muito a ver com satisfação de necessidades e desejos. Injustiça e carência são quase irmãs siamesas. O homem que não experimenta carências (materiais e imateriais) não se sente jamais injustiçado”[4].

Pois bem. Considera que a política, “em última instância, é apenas a arte de administrar a insatisfações, de modo a reduzir as tensões que, por excessivas, inviabilizariam a ordem social institucionalizada”[5]. Noutras palavras, o locus de administração e atendimento das insatisfações sociais – de realização da justiça, pois – é a política.

Sustenta que a política administra/neutraliza as insatisfações manifestadas nos focos de resistência mais enérgicos de dois modos: pela reformulação da apropriação do produto do trabalho social e pela dissuasão dos homens de resistirem, lançando mão de processos de justificação e legitimação do status quo.

É o que ele denomina de “poder ideológico, também institucionalizado como poder político e poder econômico”, cuja finalidade é induzir, “pela habitualidade, pela educação e pela doutrinação, certo tipo de comportamento e introjetar certa gama de valores que desmobilizam para a resistência e levam à aceitação”[6].

Para o autor, é precisamente nesse espaço ideológico “que se processa a construção do conceito e se introjeta o sentimento de justiça. Procura-se dissociar a insatisfação (material) da injustiça (valor) buscando-se para a justiça um fundamento menos concreto, pragmático, existencial”[7].

Ele discorda dessa tentativa de cisão entre satisfação e justiça, matéria e valor, como se pudesse haver um ideal estanque atemporal e ahistórico de justiça pairando por sobre a existência e os desígnios dos indivíduos. Considera que a justiça “não é nem pode ser senão uma resultante da correlação entre satisfação e insatisfação, existente num determinando grupamento social e num determinado espaço político”.

Enfatizando seu tom materialista, estabelece a relação entre direito e justiça nos termos da capacidade do sistema jurídico de gerar satisfação: “porque o direito é, não podendo deixar de sê-lo, uma imposição de satisfação de necessidades, com a correspondente e ineliminável insatisfação que acarreta desvantagem atribuída a outro sujeito (destinatário do dever jurídico), ele é inseparável da justiça e busca na sua realização também um fundamento legitimador”[8]. Sempre haverá insatisfação, pois os bens são finitos e o grupo que alcança o poder tende a não abdicar dele e a privilegiar seus próprios interesses.

De modo que a atividade política jamais cessa, sua relevância é perene. Sempre haverá insatisfação a neutralizar, tanto pela reformulação das políticas de apropriação do produto do trabalho social quanto pelo poder ideológico. E o Direito seguirá o pêndulo dos movimentos políticos – lembrando que para ele o Direito é apenas o produto do dizer de quem tem poder para dizê-lo. É nessa tensão concreta, fruto de insatisfações urdidas do conjunto da sociedade e dimensionadas pela atividade política, que se disputará incessantemente por uma noção espaciotemporal de justiça.

Assim, “inexiste ordem jurídica a que não correspondam a realização de alguma justiça, como inexistente ordem jurídica capaz de realizar uma justiça absoluta. O tanto de justiça alcançado por um ordenamento jurídico será sempre resultante do institucionalizado como poder político, institucionalização que, por sua vez, imbrica numa opção econômica, que não se dá de modo arbitrário, externo e superior à sociedade, sim como resultado do que nela ideologicamente se institucionalizou, condicionada, por igual, essa ideologia, a outros fatores que interagem, sem que se possa dizer qual deles é predominante ou decisivo”[9].

Ao correlacionar justiça e satisfação, situando-a nas franjas do complexo e do contingente, Calmon de Passos interdita a possibilidade de alguém avocar para si o lugar de demiurgo da justiça na Terra. Para ele, tais sensibilidade e ilustração constituem violência autoritária à capucha, tanto mais em democracias plurais marcadas por desacordos morais razoáveis resistentes à solução racional[10].

“Daí o meu horror”, concluirá contundentemente, “diria mesmo pavor, dos que se julgam justos e acham que sabem fazer justiça. Feliz ou infelizmente (recordemos que a uniformidade e o consenso absolutos são incompatíveis com o poder de determinação do homem), no nosso mundo poliárquico, multicultural e laico só há um referencial para a justiça com eficácia coletiva – a legal, quando democraticamente formalizada e democraticamente assegurada”[11]. Justiça com eficácia coletiva é o que vai na lei.

A ojeriza de Calmon de Passos ao discurso de que os juízes decidam com «justiça», como algo distinto da lei, assenta no fato de que captura a atividade política que apenas o povo, no exercício do seu autogoverno, através de seus representantes democraticamente eleitos, pode, bem ou mal, exercer. Amesquinhando a separação dos Poderes e ampliando desmesuradamente as competências dos juízes[12], instaura – o termo é meu – uma espécie de tirania judiciocrática carismática.

 

3. A Doutrina do Processo Justo

Calmon de Passos não fazia uma crítica no vazio, exercício de livre inventividade intelectiva. Não era uma objeção sem objeto real. Não se trata da falácia do espantalho. Existe uma doutrina que invoca uma ideia de justiça que não se limita, materialmente, ao que vai em enunciados prescritivos legislativos e que, com isso, provoca ampliação (não raro desmesurada) do poder dos juízes.

Inclusive, essa doutrina é francamente hegemônica no Brasil. É a Doutrina do Processo Justo (doravante, apenas dpj[13]). Ela é composta por adeptos do Instrumentalismo Processual (doravante, apenas ip) e do Formalismo-Valorativo (doravante, apenas fv). Ambos lançam a baldadas o argumento da «justiça» e do «processo justo»[14], nunca como expressão metonímica de «nos termos da lei» e «devido processo legal», respectivamente. Invocam a ideia de justiça para transcender a lei, seja no plano do direito processual (e procedimental), seja no plano do direito material. Embora sumariamente, procurarei descrever os posicionamentos que confirmam o que acabo de dizer.

 

3.1. O Justo no Instrumentalismo Processual (ip)

Adeptos do ip situam-no no contexto da tese das fases metodológicas[15]. Segundo essa visão, o processo nasce na fase concretista ou sincrética, pela fase autonomista ou conceitual e se encontra na fase teleológica ou instrumentalista.

Fala-se que “o sistema processual não é algo destituído de conotações éticas e objetivos a serem cumpridos no plano social, no econômico e no político”. O processo deixa de ser apenas instrumento do direito material, tomando “consciência de seus escopos metajurídicos e de suas responsabilidades perante a sociedade e seus valores”. Superou-se a análise do processo desde um prisma exclusivamente jurídico, adquirindo a face de um “método que privilegia a importância dos resultados da experiência processual na vida dos consumidores do serviço jurisdicional – o que abriu caminho para o realce hoje dado aos escopos sociais e políticos da ordem processual, ao valor do acesso à justiça e, numa palavra, à instrumentalidade do processo”. Eis o atual estágio da ciência processual civil, “nesta fase instrumentalista ou teleológica, em que se tem por essencial definir os objetivos com os quais o Estado exerce a jurisdição, como premissa necessária ao estabelecimento de técnicas adequadas e convenientes”[16].

O processo é um instrumento do qual a jurisdição se vale para realizar três escopos: escopo social – o mais importante, consistente na educação do povo quanto aos seus direitos e na pacificação dos conflitos com justiça; escopo político – diz com a imperatividade estatal para resolver conflitos, concretizar o valor liberdade ao limitar e fazer observar os contornos do poder e assegurar a participação do cidadão nos destinos da nação; e escopo jurídico – impõe a atuação da vontade concreta do direito mediante justa composição dos litígios[17]. A instrumentalidade do processo tem dois sentidos: um sentido positivo – consistente na realização desses três escopos, atuando transformações no plano empírico-social (processo de resultados); e um sentido negativo – consistente na superação do formalismo excessivo (instrumentalidade das formas)[18].

No ip o «valor justiça» tem força normativa, dele derivando competências funcionais (de condução material) e decisórias ao juiz. Quanto às competências funcionais do juiz no procedimento[19], outorga-se o ferramental necessário à satisfação do seu dever de realizar a igualdade material e de decidir conforme a verdade.

Sobre a realização da igualdade, o juiz deve promove-la atento às peculiaridades do caso concreto, independentemente de mediação legislativa prevendo a desigualdade juridicamente relevante e a medida jurídica de igualação. Não se vê aí risco à imparcialidade, pois, no processo de corte social, o juiz “compreende que só se lhe exige imparcialidade no que diz respeito à oferta de iguais oportunidades às partes e recusa a estabelecer distinções em razão das próprias pessoas ou reveladoras de preferências personalíssimas. Não se lhe tolera, porém, a indiferença”[20]. A realização da igualdade material não só não representa risco à imparcialidade como constitui a sua própria razão de ser[21]. Para ser imparcial, bastaria que o juiz assegurasse o contraditório.

Sobre a apuração da verdade, diz-se que a função epistêmica do processo goza de prestígio em razão do fascínio gerado pelo ideal de verdade sobre os homens[22]. As teses que confinam as iniciativas probatórias à ação das partes são tachadas de privatistas e antiquadas, estagnadas na fase concretista ou sincrética. A concessão de poderes instrutórios ao juiz impede que desigualdades econômicas e culturais perpetuem deficiências probatórias e conduzam os processos a resultados distorcidos[23]. Mas há limites: a verdade não pode se transformar num fim e si mesmo, pena de a sua busca gerar extremos indesejáveis[24]. O juiz “não deve exceder-se em iniciativas probatórias ou liberalizar ajuda às partes, sob pena de transmudar-se em defensor e acabar por perder a serenidade”[25].

Quanto aos poderes decisórios, o «processo justo» “é aquele feito segundo legítimos parâmetros legais e constitucionais e que ao fim produza resultados justos”[26]. Inicialmente, fala-se que “não tem” o juiz “poder de alterar os desígnios positivados pelo Estado através da via adequada, ainda que para corrigir situações que lhe pareçam desequilibradas”[27]. De ordinário, portanto, deve ater-se à lei. Mas tanto como o legislador o juiz é agente estatal portador da missão de decidir segundo as escolhas da sociedade e também se submete aos valores que o clima axiológico da comunidade projeta in casu. Assim, conquanto a livre invenção jurídica seja reprovável, “em casos de formar-se um valo profundo e insuperável entre o texto legal e os sentimentos da nação, perde legitimidade a lei e isso cria clima para a legitimação das sentenças que se afastem do que ela em sua criação veio a ditar”[28].

Em seu mister de fazer justiça o juiz moderno não se limita a aplicar a lei. Ele deve “intuir o correto enquadramento jurídico e interpretar de modo correto os textos legais à luz dos grandes princípios e das exigências sociais do tempo – eis a grande tarefa do juiz, ao sentenciar”. Entram aí “as convicções sócio-políticas do juiz, que hão de refletir as aspirações da própria sociedade; o juiz indiferente às escolhas axiológicas da sociedade e que pretenda apegar-se a um exagerado literalismo exegético tende a ser injusto, porque pelo menos estende generalizações a pontos intoleráveis, tratando os casos peculiares como se não fosse portadores de peculiaridades, na ingênua crença de estar com isso sendo fiel ao direito”. Ele pensa o direito “no caso concreto e cabe-lhe apenas, com sua sensibilidade, buscar no sistema de direito positivo e nas razões que lhe estão à base, a justiça do caso. Tem liberdade para a opção entre duas soluções igualmente aceitáveis ante o texto legal, cumprindo-lhe encaminhar-se pela que melhor satisfaça seu sentimento de justiça”. Tende a ser injusto o magistrado que se mantém indiferente às escolhas axiológicas da nação. Atualizando o sentido da lei em conformidade com os influxos sociais e corrigindo-a em casos de teratologia, “a jurisprudência representa papel importante na evolução do direito”, aparecendo o juiz “como autêntico canal de comunicação entre a sociedade e o mundo jurídico, cabendo-lhe a positivação do poder mediante decisões endereçadas a casos concretos”[29].

Enfim, a decisão justa pode reivindicar que o juiz lance mão de elementos metajurídicos. Pois a convergência entre lei e justiça é contingente e esta prevalece sobre aquela, servindo à sua atualização e correção, segundo as convicções sócio-política do juiz, que hão de refletir as aspirações da própria sociedade – como apurar essa correspondência por via diversa da do direito positivo, segue sendo um mistério.

O elevado grau de abstração desses argumentos impede a identificação do que, exatamente, se entende por justiça no ip. Afinal, qual é a concepção de verdade adotada e por que ela é superior às demais? Como identificar diretamente os sentimentos da nação que justificam (rectius: impõem) a decisão praeter e até contra legem sem neutralizar a democracia representativa? Tudo segue sem resposta. Mas uma coisa é certa: a justiça deixa de ser produto da atividade político-legislativa para ser produto da atividade aristocrático-jurisdicional – ainda que mediada pela participação dos destinatários (as partes).

 

3.2. O justo no Formalismo-Valorativo (fv)

Seus adeptos reconhecem como “importante contribuição do instrumentalismo”[30] a compreensão do processo civil a partir de um ponto de vista mais amplo que não o meramente interno ao próprio processo. Superar o formalismo característico da fase autonomista ou conceitual para realizar a justiça no processo é pretensão comum ao ip e ao fv[31]. Para ambas o processo deve ser justo e realizar justiça material[32].

Também no fv o “valor justiça” consagra competências funcionais (de condução material) e decisório-interpretativas ao juiz. Quanto às competências de condução material, defende-se – até com maior ênfase – a função epistêmica do processo e a concessão de poderes instrutórios ao juiz[33]. Também se faz presente a relação entre participação mais ativa do juiz na revelação dos fatos e a preservação da igualdade entre as partes, estimando-se que “parcial é o juiz que, sabendo que uma prova é fundamental para a elucidação da matéria fática, se queda inerte”[34].

Busca-se combater o formalismo excessivo, já antevista pelo IP à guisa de sentido negativo da instrumentalidade[35]. Além disso, e embora ressaltando que em regimes rígidos “o juiz não pode abrir o sistema jurídico à força”, ainda mais no Estado de cunho democrático, nos quais o arbítrio estatal tende a ceder “especialmente diante do império do sistema normativo”, a tradução das aspirações de “justiça” para o formalismo é tarefa precípua do legislador, mas toca “secundariamente aos juízes”[36]. Pois o formalismo processual em sentido estrito é “temperado pelas necessidades da vida, agudizando-se o conflito entre o aspecto unívoco das características externas e a racionalização material que deve levar a cabo o órgão judicial, entremeada de imperativos éticos, regras utilitárias e de conveniência ou postulados políticos, que rompem com a abstração e generalidade”[37], dada a ênfase conferida à igualdade “não só formal, mas principalmente material”[38]. Abre-se ensejo à flexibilização do procedimento pelo juiz[39].

Quanto às competências decisório-interpretativas, “o formalismo reveste-se de poder ordenador e organizador, que restringe o arbítrio judicial, promove a igualação das partes e empresta maior eficiência ao processo, tudo com vistas a incentivar a justiça do provimento judicial”. O processo só é justo se “se transcorreu conforme os seus princípios fundamentais e resulta em consonância com os ditames do sistema, tanto no plano constitucional quanto no plano infraconstitucional”[40]. Mas não se cuida de aderência estrita ao direito positivo. O processo deve realizar os valores[41] e servir à justiça[42], o que exige a compreensão da convergência entre legalidade e equidade, sobretudo a equidade interpretativa-individualizadora, “recurso normal” que visa à ponderação das particularidades do caso, passando do generalismo ao particularismo; das soluções padronizadas às customizadas[43] – “sai-se, enfim, da legalidade para ingressar no direito”, o que tornaria falsa contraposição entre o formalismo excessivo e o informalismo arbitrário[44].

Fala-se, porém, que é em torno dessa questão que avultam as (supostas) diferenças entre ip e fv. Com remissão à tese das fases metodológicas, fala-se que o fv representaria uma quarta fase[45], que superaria o ip por conta da maneira como articula “as soluções dos problemas atinentes i) às relações entre o direito material e o direito processual, ii) às relações entre o processo civil e a Constituição e iii) a colocação da jurisdição no centro da teoria do processo civil”[46].

Diz-se que ip e fv perseguem seus objetivos comuns por estratégias distintas, divergindo “sobre qual seria o verdadeiro papel da atividade cognitiva desenvolvida pelos intérpretes no campo da aplicação do Direito”[47]. No fv, a jurisdição não cumpre “tão somente uma função declaratória da ordem jurídica preestabelecida pelo legislador (…) o juiz oferece ao mundo sempre algo novo – sempre a reconstrução da ordem jurídica mercê do diálogo judiciário”. Ademais, o juiz não está atado a uma pauta de legalidade diante do direito material e do direito processual, pois o “direito contemporâneo” institui a pauta da “juridicidade, que aponta automaticamente à ideia de justiça, a qual forma o substrato material ao lado da constitucionalidade e dos direitos fundamentais do Estado Constitucional. O juiz tem o dever de interpretar a legislação à luz da Constituição”, pretensamente um novo contorno conferido ao princípio da legalidade pelo art. 1º, CPC[48]. Em tempo: anteriormente, em lugar de dever der interpretar a legislação à luz da Constituição, falava-se que “ao juiz não é dado conformar-se com eventuais soluções injustas ditadas pela legislação infraconstitucional”[49].

Sobre o direito material, retoma-se a distinção entre lei e direito para asserir que a decisão judicial poderia, via equidade corretiva, “revestir características praeter legem e eventualmente até contra legem. Nunca, porém, contrária ao direito”. A solução dada pelo juiz deve “encontrar encaminhamento dentro do discurso jurídico, proferido este com a linguagem que lhe é própria”, mas “o discurso jurídico só obriga até onde conduza a sua força de intrínseca persuasão, força vinculante que há de assentar no sistema jurídico (constitucional e infraconstitucional), nas valorações e princípios dele emanantes, e nas valorações sociais e culturais dominantes no seio da coletividade, enfim, no direito como totalidade”[50]. Em suma, “o processo não se presta tão-somente para a elaboração de uma decisão, nem esta se legitima só por ter sido imposta segundo os cânones do rito, mas também por ter feito justiça”[51], o que teria sido positivado no art. 6º, CPC[52].

Sobre o direito processual, fala-se que a observância “do simples processo legal cede às exigências ligadas à conformação de um processo justo”. A complexidade da vida “impede de acorrentá-lo sempre e aprioristicamente a prévias e abstratas soluções infraconstitucionais”, devendo o direito de ação ser pensado “como direito à tutela jurisdicional adequada, efetiva e tempestiva mediante processo justo”, o que seria imposto pelo art. 6º, CPC[53].

Sobre o relacionamento entre o direito processual civil e o direito constitucional, aquele incorporaria a metodologia deste, destacando-se o incremento teórico propiciado pela nova teoria das normas (como se houvesse apenas uma), notadamente dos princípios (tema altamente disputado) e dos postulados normativos (espécie normativa cuja existência não é pacífica), e da compreensão do processo civil na perspectiva dos direitos fundamentais (como se houvesse apenas uma teoria dos direitos fundamentais) e seu regime eficacial (v. g. aplicabilidade imediata, interpretação conforme e vinculação do Estado e dos particulares)[54].

A inserção da jurisdição no centro da teoria do processo, marca do ip, é considerada “visão um tanto quanto unilateral do fenômeno processual, sobre ignorar a dimensão essencialmente participativa que a democracia logrou alcançar na teoria do direito constitucional hodierno”, o que não nega “o papel fundamental que se atribui à jurisdição”, mas reforça “a condição das partes, igualmente fundamental, para o bom desenlace do processo”. Donde “a divisão de trabalho ideal no processo encerra um justo equilíbrio entre as posições jurídicas das partes e do juiz”[55]. Tornar o processo o eixo metodológico central reflete o “caráter essencialmente problemático assumido pelo direito atual”, correspondendo o câmbio “à passagem da lógica apodítica à lógica dialética; do monólogo judicial ao diálogo judiciário”, o que estaria contemplado no contraditório dinâmico dos arts. 9º e 10, CPC[56].

Resumindo, o fv pretensamente dissocia-se do ip “por se designar como formalismo, quando coloca o processo (e não a jurisdição) ao centro da Teoria do Processo, como técnica adequada a induzir a proteção dos jurisdicionados contra o arbítrio dos julgadores e dos juízes; e por pretender ser valorativo, quando assume que as atividades cognitiva e executiva desenvolvidas no ambiente processual se destinam à reconstrução do direito positivo pelos intérpretes/aplicadores (inclusive mediante a consideração de elementos axiológicos) e por isso identifica o processo como ambiente de ‘criação’ do Direito e como direito fundamental do cidadão. O valor aqui referido diz respeito às normas constitucionais, aos direitos fundamentais compreendidos como ‘normas objetivas supremas do ordenamento jurídico’, como substrato deontológico dos direitos fundamentais e da compreensão do processo como direito fundamental, ou seja, ver na forma (e na ordem) sua capacidade emancipatória e sua vinculação aos valores constitucionais como garantia de liberdade e de igualdade”[57]. O “processo justo constitui antes de tudo processo substancializado em sua estrutura íntima mínima pela existência de direitos fundamentais”[58]. O CPC/15 seria fruto dessas ideias.

Novamente, o elevadíssimo grau de abstração desses argumentos não permite definir o que se entende por «justiça» no FV, sobretudo quando se pensa no poder decisório do juiz. Como assegurar que no emprego da equidade interpretativo-individualizado o juiz se conterá nos limites da juridicidade, é questão que segue em aberto. Uma coisa é certa: também aqui, a justiça deixa de ser produto da atividade político-legislativa para ser produto da atividade aristocrático-jurisdicional – ainda que mediada pela participação dos destinatários (as partes).

4. Análise do justo na dpj

Tirante os maneirismos teóricos, o levantamento acima dá pistas robustas de que, em termos processuais, não há diferenças relevantes entre ip e fv[59]. No essencial, ambos propugnam que os juízes devem atuar com os olhos voltados a princípios e valores para a consecução da justiça, e que para tanto devem ser municiados de amplos poderes de condução formal, material e decisórios. Daí ip e fv formarem o bloco unitário da dpj.

Ocorre que nenhum deles fornece substrato para que se identifique o que entendem por «justiça». De posse dos seus argumentos, não há como saber se quando o juiz maneja princípios e valores para realiza-la ele está atuando dentro do sistema jurídico ou simplesmente dando vazão ao seu subjetivismo, como temia e denunciava Calmon de Passos.

 

4.1. A particular visão de direitos fundamentais e seus problemas

Como visto, é bastante delicado o controle do empoderamento do juiz como condição necessária à realização da “verdade” e da “justiça” em sua correlação com “valor” a “direitos fundamentais compreendidos como normas objetivas”, “processo como direito fundamental”, “capacidade emancipatória”, “liberdade e igualdade”. Tentando compreender o ip e o fv à sua melhor luz, considero que uma hipótese é que essa abertura decorre do modo como elas operam com a teoria dos direitos fundamentais – ainda que não de modo inteiramente teorizado e uniforme.

Constata-se que ip e fv se aproximam da teoria principiológica dos direitos fundamentais[60]. Grosso modo, caracteriza essa teoria – em sua formulação inicial, muito em voga na processualística – a diferença estrutural entre regras e princípios: regras são mandamentos de otimização aplicáveis por subsunção; princípios, mandamentos de otimização aplicáveis por ponderação à luz das circunstâncias fáticas e jurídicas, operação da qual deriva uma regra de direito fundamental atribuída, aplicável por subsunção.

Vem de par com essa teoria principiológica uma teoria da argumentação com o salutar objetivo de dimensionar racionalmente a otimização fática (adequação e necessidade) e a otimização jurídica (proporcionalidade em sentido estrito) dos princípios.

Essas noções – muito resumidas – são importantes porque a teoria principiológica concebe os direitos fundamentais como princípios e, portanto, sempre passíveis de ponderação. Em alguma medida, isso abriria espaço para operar com as amplas noções encontradas no discurso do ip e do fv para derivar normas jurídicas diretamente de lá, sem mediação legislativa.

Sucede que a teoria principiológica dos direitos fundamentais não é a única teoria dos direitos fundamentais. Respeitável, convive e disputa a compreensão dos direitos fundamentais com outras teorias igualmente respeitáveis. E uma das duras críticas que recebe – com acerto, penso eu – é que esvazia os critérios conteudísticos dos direitos fundamentais e opera desde um ponto zero científico[61] e dogmático[62]. Ao planificar os direitos fundamentais, diluindo hierarquias, conceitos e critérios técnicos provenientes de uma dogmática específica e rígida, facilita, sob a invocação circunstancial de noções dúcteis como “verdade”, “justiça”, “valor”, “direitos fundamentais compreendidos como normas objetivas”, “processo como direito fundamental”, “capacidade emancipatória”, “liberdade e igualdade” etc., a criação de direito ex novo pelo juiz – inclusive contra legem, como visto. E quando o processo decisório é destituído de “parâmetros técnicos”[63], mesmos os rigores da teoria da argumentação podem não impedir que tudo se reduza a uma “enganosa encenação”[64].

É verdade que muitos adeptos do dpj acolhem o aporte metodológico de uma teoria dos princípios um tanto diversa[65], mas isso não prejudica as considerações precedentes. Pois embora desfira até mesmo críticas pertinentes à teoria principiológica dos direitos fundamentais, o modo como opera com o método da ponderação – com objeto alargado, abrangendo tanto regras quanto princípios – desafia idênticas objeções[66].

Em suma, o apelo da dpj à justiça ou à equidade interpretativa-individualizadora busca amparo em ferramenta metodológica duvidosamente capaz de impedir decisões arbitrárias[67]. O que parece é que facilita e naturaliza a introdução de elementos exógenos ao sistema jurídico, não redutíveis ao código binário lícito/ilícito, encobrindo o decisionismo e malferindo a garantia da separação dos poderes e o princípio democrático[68].

 

4.2. O débito metaético da dpj

São afirmações fortes: a dpj sonega o que entende por justiça porque confia no Judiciário, e, assim, assume o risco do arbítrio.

De fato, já se denunciou o recurso ao argumento da «justiça» como um sinal de atraso científico no pensamento processualista: “apresentar a justiça como finalidade do processo é indício de um peculiar atraso no pensamento processualista. Se atribuirmos ao termo ‘justiça’ um sentido intra-sistemático (é justo aquilo que estabelece o direito em vigor, logo será justa a decisão que seguir o direito que pode se encontrar na literalidade dos textos normativos ou em outros elementos, tais como os princípios implícitos ou os precedentes jurisprudenciais), temos uma afirmação circular. (…) Se, ao contrário, atribuirmos ao termo ‘justiça’ um significado independente do direito positivo (justiça material; justiça procedimental; combinação de ambas conforme critérios que independem do conteúdo das normas válidas), esbarramos na notória e irredutível discordância das concepções sobre o justo. Séculos de reflexão sobre a desmistificação das ideologias jurídicas e sociais deixaram claro que a justiça, por mais que esteja presente nos debates especializados e nas representações populares como sentimento, sonho ou até mesmo reivindicação antropologicamente arraigada, não pode ser definida de maneira objetiva. Devemos, assim, abandonar a referência à justiça que constitui um complemento ideológico do funcionamento dos mecanismos estatais”[69]. A crítica é especialmente dura – e merecida – para aqueles que invocam «justiça» sem sequer tentar se desincumbir dos ônus argumentativos implicados na estratégia.

E a dpj tem esse débito. Percebendo que na dpj formulações como «justiça» e «processo justo» não têm caráter puramente jurídico-dogmático, mas teórico-filosófico, dado que seu conceito de «processo justo» “não tem a pretensão de ser mera convenção social positivada em lei, mas reivindica adicionalmente um conteúdo de justiça substancial”[70], alvitre confirmado por passagens aqui anteriormente transcritas[71], Rafael Giorgio Dalla Barba desnuda o vazio do discurso da dpj sobre «justiça».

Adverte que conceitos controversos aproximam o Direito de outras áreas do conhecimento, exigindo incursões detidas nesses outros domínios. É o caso da «justiça», conceito central da Ética. Assim, saber o que é o «processo justo» “exige uma investigação específica na área do conhecimento que tem como seu objeto o conceito de ‘justo’”, a Metaética[72].

Ética e Metaética. A Ética avalia ações, pessoas e instituições, dizendo, v. g., se são justas ou injustas. Ela investiga questões de primeira ordem; é essencialmente prática e normativa. A Metaética investiga sobre o que são e como funcionam os conceitos éticos. Ela investiga questões de segunda ordem; é essencialmente teórica e descritiva. Como a dpj emprega o conceito de «processo justo» com a pretensão de gerar efeitos jurídicos, “os questionamentos levantados em Metaética podem ser trazidos para o Direito como forma de esclarecer à comunidade jurídica quais são as implicações e comprometimentos do conceito de justiça”[73]. Isso implica pelo menos três desafios: metafísico, epistemológico e semântico.

O desafio metafísico impõe que algo exista para que, sobre ele, seja possível fazer afirmações verdadeiras/falsas. Disso cuida a Ontologia, subárea da Metafísica. Por sua vez, a ontologia moral verifica a existência de propriedades morais – como «justiça» – e, se sim, qual é exatamente o seu status ontológico. Assim, a DPJ “precisa dar uma explicação sobre a existência dessa propriedade moral para que sua tese possa ser teórica e cientificamente válida. Ela precisa mostrar que propriedades morais existem e do que elas constituem de fato”. Por ora, nada há em seus textos que demonstre essa ontologia moral. Contudo, “sem essa explicação o processo justo simplesmente não existe[74].

O desafio epistemológico exige que, admitida uma ontologia moral apta a explicar a existência da propriedade moral «processo justo», a DPJ precisaria explicar como é possível conhecê-la. E não basta “afirmar que a justiça se refere a ‘ideias gerais’, ao ‘bem comum’ ou a alguma ‘vontade’ ou ‘espírito do direito’”, pois a definição clássica de conhecimento como “crença verdadeira justificada” atualmente é objeto de desacordo entre epistemólogos. Por isso, “a doutrina do processo justo necessita de uma epistemologia compatível com as exigências científicas contemporâneas para podermos nos certificar de que estamos diante de crenças verdadeiras justificadas. Sem uma epistemologia, uma ontologia seria ainda insuficiente para as pretensões da doutrina do processo justo”[75].

O desafio semântico obriga a que o vocabulário ético não obedeça à relação correspondencial (verdade como correspondência), pois conceitos éticos não são referenciais, mas expressivos: “Eles não designariam entidades objetivas no mundo, mas expressariam estados subjetivos daqueles indivíduos ou grupos que os proferem” ou, de modo menos radical, a linguagem moral é tomada como “um fenômeno que ‘torna público’ certas atitudes subjetivas dos interlocutores, de modo que esses conceitos não teriam seu significado determinado nem completamente por entidades objetivas nem por subjetivas, mas pelo uso contextual”. Assim, a dpj “necessita também de uma teoria do significado adequado às suas pretensões. Aparentemente, recorrer à teoria semântica correspondencial não irá ajudá-la em muita coisa”[76].

Conclui, então: “Em geral, para ser levada teórica e cientificamente a sério, a doutrina do processo justo necessita responder adequadamente aos desafios ontológico, epistemológico e semântico. Até hoje nenhum dos três foi enfrentado”[77].

Não vejo como discordar do autor. As transcrições dos itens 3.1 e 3.2, supra, esclarecem que a dpj não se desincumbiu do pesadíssimo ônus imposto pelo desafio ontológico, o que compromete os demais. O descumprimento do desafio semântico pode ser notado pela inexistência de um vocabulário específico expressivo de suas específicas propriedades morais. E quanto ao desafio epistemológico, a dpj revela uma importante contradição interna (que acomete igualmente a teoria principiológica dos direitos fundamentais): ao mesmo tempo em que invoca amplos poderes interpretativo-decisórios para o juiz realizar a justiça material, deserta de fornecer critérios conteudístico-substantivos ao se bastar com exigências argumentativo-formais[78]. Não pode haver método mais inapropriado para pretensões que aspiram à realização da justiça material.

Correto que seja o argumento, isto é, a dpj não nos diz o que é, como encontrar e como referenciar semanticamente a propriedade moral que a sustenta – «a justiça» e seu subproduto do «processo justo», por acreditar que tudo se resolve com propostas metodológicas que apostam no protagonismo do Judiciário –, então teremos boas razões para concordar com Calmon de Passos: quando a referência do jurídico deixa de ser o direito positivo para ser a justiça aplicada diretamente, o Judiciário se substitui ao Legislativo. Ao pretender legitimar esse agigantamento, ela contribui – tanto quanto o neoconstitucionalismo –, para que o Judiciário transcenda seus espaços de dominação – poder é dominação, insiste o mestre baiano – constitucionalmente demarcados e atue dentro de uma zona não regulada, tornando-se ilimitado e incontrolável – “nenhum poder foi jamais exercido em desfavor de quem o detém”, adverte Calmon de Passos[79].

 

4.3. O mito do bom governo dos juízes e seu moralismo mântrico

Nessa ordem de ideias, só não resta dessa fração da dpj o vazio porque há ali uma presença: o mito do bom governo dos juízes, ponto notado e denunciado, v. g., por Georges Abboud e Guilherme Lunelli[80], Leonard Ziesemer Schmitz[81], André Cordeiro Leal[82], Roberta Maia Gresta[83], Lenio Luiz Streck[84], Francisco José Borges Motta[85], Antônio Carvalho Filho[86], Lúcio Delfino[87], Igor Raatz e Natascha Anchieta[88] e William Galle Dietrich[89].

Soa nitidamente na dpj a nota do moralismo jurídico[90]. Essa concepção “faz depender o reconhecimento da validade das normas jurídicas e sua intepretação de elementos vinculados a mandamentos e valores de origem moral”. Nela, “a interpretação jurídica é vista como um pretexto para impor aquilo que o intérprete considera como a melhor solução de um conflito social. Quando se afirma que o decisivo na aplicação do direito é o interesse do ser humano e não o conjunto de normas válidas, esses ‘ser humano’ (o juiz?) poderá decidir conforme preferências e crenças subjetivas”. Sua popularidade arranca de “razões que não se relacionam ao vigor teórico”, pois ela legitima o direito como justo e com isso facilita “a apologia do regime atual” e “aumenta o poder dos aplicadores com base na invocação de imperativos morais e de princípios vagos”. A descrição se adéqua à dpj do início ao fim[91].

Acontece que juízes não são a providência do povo nem são por ela guiados[92]. Nenhuma entidade superior revela-lhes a verdade no recinto privilegiado de suas consciências. Nas complexas sociedades contemporâneas não há espaço para oráculos reveladores de valores homogeneamente compartilhados – conjunto que, de resto, inexiste[93]. Ao reivindicar a libertação do juiz das “fórmulas rígidas da lei” para que faça “justiça” e realize os “valores da sociedade” sem se desincumbir do desafio metaético, a dpj revela que não tem estatuto epistemológico, orientação metodológica nem funções dogmáticas[94].

A «justiça» na dpj assume a função de um mantra. Mantra, “do sânscrito Man, mente e Tra, controle ou proteção, significando ‘instrumento para conduzir a mente’”[95], tem uma finalidade mágica ou o estabelecimento de um estado contemplativo[96]. Segundo seus adeptos, ele possui um poder vibracional capaz de mudar frequências e influenciar toda a energia sutil. Compostos que somos de partículas em movimento, o estado vibracional antecede qualquer coisa, inclusive o pensamento. A vibração abre caminho na mente, ela eleva os pensamentos, traz conexão com potencial ilimitado[97].

Pois é precisamente disto que se trata: pela repetição ad infinitum de termos audíveis dotados de elevada carga emotiva positiva – “justiça”, “valores”, “princípios”, “expectativas sociais”, “verdadeiro juiz”, “emancipação” etc., ainda que de difícil delimitação semântica, mesmo em contextos pragmáticos específicos –, vai se consolidando um estado vibracional de aceitação e predisposição de confiar que os juízes produzirão um Direito melhor. Não só. Eles transformarão a realidade social e emanciparão os membros da comunidade política, finalmente feitos livres, iguais e prósperos por obra e graça do beneplácito judicial. Não pode haver maior pretensão de correção, sem dúvida. Que juízes tenham competência para isso…

 

5. Considerações finais

Utilizado nos termos da dpj, o argumento da «justiça» pode produzir efeitos deletérios. Ele desdenha do formalismo jurídico e seu generalismo, associando-o a (e fazendo dele) uma caricatura tosca do positivismo jurídico[98], em alguns casos associado à vencida tese de que o positivismo jurídico deixou os juristas indefesos em face do horror nazista[99], o que depõe contra a seriedade do argumento[100]. No geral, porém, o expediente é mais sutil. Autoproclamando-se uma seleta vanguarda, a dpj recorre insistentemente a princípios, cláusulas gerais, conceitos jurídicos indeterminados, tipos normativos que abrem a interpretação a elementos extrassistêmicos e facilitam o particularismo[101], o que, segundo certa leitura, exige (para a surpresa de ninguém) a inserção dos precedentes como fontes primárias, ao lado da lei[102], como se tudo fosse corolário irrefreável da constitucionalização do direito – por sinal, tese não muito menos problemática que a anterior[103]. É sobretudo assim que a dpj se mantém – e avança.

Mas que se diga: hegemônica, ela opera em monólogo castrador. Desde os primeiros contatos com o direito processual, os estudantes são apresentados e limitados ao conjunto de autores e ideias da dpj, privados da aquisição do repertório plural necessário para realizarem fusões de horizontes entre contrários e produzirem as necessárias sínteses, pavimentando sua autonomia intelectual. A dpj formou, forma e ainda formará gerações inteiras de processualistas receptivos à ideia de que o juiz que contraria a lei não deve ser de saída suspeito de elitista insubordinado que desdenha dos mandatários do povo, mas presumido um obstinado que faz «justiça»[104].

E assim, reduzindo o fenômeno jurídico-processual às suas proposições, isolando-a do contato estreito com seus críticos, a dpj impõe um mundo que não está posto e se impõe mesmo sem provar a existência, um método de identificação e uma semântica para referir suas categorias morais – «processo justo» e «justiça». Segue na proa mais pela monotonia da repetição do que por sua capacidade de resistir à refutação – é o acerto de Ludwig Wittgenstein: os limites do meu mundo são os limites da minha linguagem.

A ausência de recursos metodológicos impede que se perceba a predominância do fator político da dpj e sua inevitável atuação desde o plano ideal (suprapositivo), condicionante (e, nalguns pontos, deformador) da dogmática que (aparentemente) opera desde o plano do posto. Atuando assim – não com um estrondo, mas com um gemido, diria Theodore Dalrymple –, passa ao largo o câmbio sub-reptício do governo da comunidade política para os juízes (e, claro, aos catedráticos à sua base), sob o discurso do seu preparo, interesse e vocação natural para capturar os valores sociais e efetivar a Constituição independentemente de mediação legislativa[105], e, se necessário, contrariamente a ela[106].

Mas não estamos fadados à dpj. Das valorosas vozes que tencionaram esse domínio – que não se dá sem méritos, frise-se –, avulta a de Calmon de Passos. Ele ofereceu uma reflexão da justiça como satisfação que encerra uma permanente tensão social dimensionada na arena política[107]. Apontou o direito legislado como a medida de satisfação/a justiça que foi possível institucionalizar no tempo e no espaço, a arena política como locus de mobilização das insatisfações/do sentimento de injustiça[108] e cidadãos livres como protagonistas desse processo. Ao Direito cabe estabilizar expectativas, conservar as satisfações/níveis de justiça que na Política se logrou conquistar.

Daí dizer que a “mistificação jurídica [do discurso do processo justo] é um crime contra a democracia”. Pois quando juristas apelam à «justiça» para transcender a lei, desmobilizam e domesticam a atividade política do povo, servindo mais ao poder ideológico de violência simbólica do que à satisfação dos interesses que os cidadãos, enquanto comunidade, são capazes de buscar e pactuar. Daí sugerir, numa de suas metáforas mais espirituosas, que o povo vá às ruas, numa versão contemporânea das “Diretas já!”, lutar para resgatar seu poder político de autogoverno dos usurpadores da vez: os juristas[109].

Ele demarca o espaço do jurista. Enquanto tal, sua atividade dogmática é de lege lata; discute o direito com referência à lei; especula sobre o lícito/ilícito, não sobre o justo/injusto, bom/mau, útil/inútil, moral/imoral etc. Ele pode desejar e perseguir transformações do direito positivo, mas deve reconhecer e aceitar a natureza política e o caráter de lege ferenda desse tipo de argumentação[110]. Não pode travestir de jurídica atividade política, cuja conversão em atos de fala revestidos de autoridade substitui o Legislativo e o legislador pelo Judiciário e o juiz (e pela doutrina e o doutrinador), algo que, a par de desdiferenciar o sistema jurídico e macular a sua autonomia[111], usurpa a atividade política aberta do autogoverno democrático do povo para ampliar o espaço autocrático fechado de dominação de uma aristocracia judiciária (e acadêmica)[112].

Ele desferiu essas objeções foram desferidas contra o ip – extensível ao fv, e, pois, relativa à dpj – em “Instrumentalidade do Processo e Devido Processo Legal”, publicado na Revista de Processo, vol. 102, Abr./2001. Ao seu tempo, foi o único autor do mainstream a fazê-lo de modo tão específico. Lamentavelmente, faleceu em 2008 sem a distinção do debate aberto e franco[113]. Resgatar seu discurso é oxigenar e elevar debate público – não para repeti-lo acriticamente, mas para reverberar reflexivamente suas críticas. Ele traz à tona um gigante que giza a lição nada trivial de atinar para os limites entre o direito e a política, confinando neste a batalha por justiça – sabendo-se que é difícil traçar suas linhas divisórias, mas que essa dificuldade não deve acarretar a deserção dos esforços que exige[114].

Ao fim e ao cabo, ele ofereceu uma rota de fuga, naquele sentido do aforisma de T. S. Eliot: “numa terra de fugitivos, aquele que anda na direção contrária parece estar fugindo”. Pois tendo trafegado na contramão do projeto hegemônico de poder da dpj – não por acaso o subtítulo de sua obra póstuma é “reflexões de um jurista que trafega na contramão” –, Calmon de Passos não foi senão um fugitivo. E é exatamente assim que busco inspiração em sua inteligência aguçada e destemida: como advertência para que resistamos à tentação elitista de sermos tutores da democracia e do povo; que, enfim, fujamos para, fugindo, permanecermos juristas.

[1] Passagem tirada de palestra disponível no YouTube: PASSOS, José Joaquim Calmon de. O que é o justo? Disponível em: https://bit.ly/3jgd3uE, min. 45:25-45:43, acesso em 28.09.2020.

[2] CALMON DE PASSOS, José Joaquim. Revisitando o Direito, o Poder, a Justiça e o Processo. Reflexões de um jurista que trafega na contramão. Salvador: JusPodivm, 2012, p. 49-50.

[3] CALMON DE PASSOS, José Joaquim. Op. cit., p. 50.

[4] Op. cit., p. 50.

[5] Cit., p. 51.

[6] Cit., p. 51.

[7] Cit., p. 51.

[8] Cit., p. 51.

[9] Cit., p. 52.

[10] “A existência desse tipo de desacordo significa que em matérias de suma importância, sobre as quais se pensava que os indivíduos chegariam a um consenso, a razão parece não guiar a um denominador comum, mas, ao contrário, tende a levar a posicionamentos cada vez mais distantes, opostos” (FONTES, Paulo Gustavo Guedes. Neoconstitucionalismo e Verdade. 3 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2020, p. 103).

[11] CALMON DE PASSOS, José Joaquim. Op. cit., p. 51.

[12] Isso explica porque ele tinha reservas com relação aos poderes de condução material do juiz, inclusive os poderes instrutórios – embora não tenha chegado a proscreve-los – e profunda ojeriza pelo neoconstitucionalismo, como se vê, respectivamente, em: CALMON DE PASSOS, José Joaquim. Os poderes do juiz no processo. In: Revisitando o Direito, o Poder, a Justiça e o Processo. Reflexões de um jurista que trafega na contramão. Salvador: JusPodivm, 2012, p. 215 e ss.; CALMON DE PASSOS, José Joaquim. Neoconstitucionalismo. In: In: Revisitando o Direito, o Poder, a Justiça e o Processo. Reflexões de um jurista que trafega na contramão. Salvador: JusPodivm, 2012, p. 171 e ss.

[13] Tomo a oportuna expressão emprestada de: DALLA BARBA, Rafael Giorgio. Desafios metaéticos à doutrina do processo justo. Revista dos Tribunais Online, Revista de Processo, Vol. 308, p. 17-31, Out./2020.

[14] Exemplificativamente, num texto de aproximadamente 25 páginas, há 40 referências ao termo “justiça” e 9 ao termo “justo” no texto: OLIVEIRA, Carlos Alberto Alvaro de. O formalismo-valorativo no confronto com o formalismo excessivo. Revista dos Tribunais Online, Revista de Processo, vol. 137, p. 7, Jul./2006.

[15] Cuja inconsistência foi convincentemente demonstrada por: RAATZ, Igor. ANCHIETA, Natascha. DIETRICH, William Galle. Processualismo científico e “fases metodológicas do processo”: a tática erística do adjetivo científico e das “novas fases metodológicas”. Revista Eletrônica de Direito Processual – REDP. Rio de Janeiro. Ano 14. Vol. 21. N. 3. Setembro a Dezembro de 2020, p. 310. Disponível em: https://bit.ly/2EM9gpU, acesso em 29.09.2020

[16] DINAMARCO, Cândido Rangel. LOPES, Bruno Vasconcelos Carrilho. Teoria Geral do Novo Processo Civil. 3 ed. São Paulo: Malheiros, 2018, p. 18-20.

[17] DINAMARCO, Cândido Rangel. A Instrumentalidade do Processo. 14 ed. São Paulo: Malheiros, 2009, págs. 188 e ss., 198 e ss. e 208 e ss.

[18] Op. cit., p. 316 e ss.

[19] Para a diferença entre processo e procedimento por mim adotada, ver: SOUSA, Diego Crevelin de. PICHIOLI, Marcelo Silveira. Entre alma e corpo: o que diz o garantismo processual sobre as competências legislativas dos arts. 22, I, e 24, IX, CRFB. Empório do Direito, 02 jan. 2019. Coluna Associação Brasileira de Direito Processual. Disponível em: https://bit.ly/3kYO3bG, acesso em 29.09.2020. Complemento necessário em: COSTA, Eduardo José da Fonseca. Ciência processual, ciência procedimental e ciência jurisdicional. Empório do Direito, Florianópolis, 22 nov. 2017. Coluna Associação Brasileira de Direito Processual. Disponível em: https://bit.ly/34alQI5, acesso em 29.09.2020; PEREIRA, Mateus Costa. Processualidade, jurisdicionalidade e procedimentalidade (I). Empório do Direito, Florianópolis, 11 mar. 2019. Coluna Garantismo Processual. Disponível em: https://bit.ly/3n34QMI, acesso em 29.09.2020; PEREIRA, Mateus Costa. Processualidade, jurisdicionalidade e procedimentalidade (II). Empório do Direito, Florianópolis, 07 out. 2019. Coluna Garantismo Processual. Disponível em: https://bit.ly/3mWxJu1, acesso em 29.09.2020.

[20] DINAMARCO, Cândido Rangel. A Instrumentalidade…, p. 231.

[21] DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de Direito Processual Civil. V. III. 6 ed. São Paulo: Malheiros, 2009, págs. 213-214.

[22] DINAMARCO, Cândido Rangel. A Instrumentalidade…, p. 271.

[23] DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições…, p. 53.

[24] DINAMARCO, Cândido Rangel. A Instrumentalidade…, p. 272.

[25] DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições…, págs. 55-56.

[26] DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de Direito Processual Civil. V. I, 6 ed. São Paulo: Malheiros, 2009, p. 215.

[27] DINAMARCO, Cândido Rangel. A Instrumentalidade…, p. 235.

[28] DINAMARCO, Cândido Rangel. Op. Cit., págs. 233-235.

[29] Op. cit., págs. 231-233. Alguns dos exemplos citados: a transformação no trato da concubina, o afrouxamento da exigência legal de ausência de protesto como requisito para a concordata preventiva e a aplicação inovadora da desconsideração da personalidade jurídica.

[30] MITIDIERO, Daniel. Colaboração no Processo Civil. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009, p. 38. A intensidade do reconhecimento variou no tempo. Inicialmente, estimou que essa abertura do processo, para além do escopo jurídico, constitui uma “proposta certeira e atilada do instrumentalismo”. (Op. cit., p. 38). Posteriormente, em tom menos reverente, diminuiu a importância da ênfase, dizendo que “não é possível confundir escopos comuns a toda a atuação estatal com o escopo do processo civil. O processo civil visa a dar tutela aos direitos – e não propriamente pacificar a sociedade ou educá-la”. (MITIDIERO, Daniel. Colaboração no Processo Civil. 2 ed. eletrônica baseada na 3 ed. impressa. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015, Capítulo I, Parte 1).

[31] ZANETI JR., Hermes. MADUREIRA, Cláudio Penedo. Formalismo-Valorativo e o Novo Processo Civil. Revista dos Tribunais Online, Revista de Processo. vol. 272. Out. 2017.

[32] OLIVEIRA, Carlos Alberto Alvaro. Do Formalismo no processo Civil. Proposta de um formalismo-valorativo. 3 ed. São Paulo: Saraiva, 2009, págs. 247-248.

[33] O maior exemplo é: RAMOS, Vitor de Paula. Ônus da Prova no Processo Civil: do ônus ao dever de provar. 2 ed. em e-book baseada na 2ª ed. impressa. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019.

[34] MARINONI, Luiz Guilherme. ARENHART, Sérgio Cruz. MITIDIERO, Daniel. Novo Curso de Processo Civil. V. 1. 2 ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016, p. 451.

[35] OLIVEIRA, Carlos Alberto Alvaro. Do Formalismo… p. 237, 252.

[36] “a eventual autonomia entre justiça e formalismo só pode ser resolvida mediante um projeto de reforma da legislação constitucional e infraconstitucional”. (OLIVEIRA, Carlos Alberto Alvaro. Op. cit., p. 218).

[37] Op. cit., p. 223.

[38] Op. cit., p. 235.

[39] O maior exemplo é de: OLIVEIRA, Paulo Mendes de. Segurança Jurídica e Processo. Da rigidez à flexibilização processual. 1. ed. em e-book baseada na 1. ed. impressa. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2018.

[40] OLIVEIRA, Carlos Alberto Alvaro de. Do Formalismo… p. 215.

[41] OLIVEIRA, Carlos Alberto Alvaro. Op. cit., págs. 235, 241, 247, 248, 256.

[42] Op. cit., págs. 215, 219, 220, 225, 239, 244, 245, 248, 246, 247, 248, 250, 254, 255, 256.

[43] Op. cit., págs. 242-243.

[44] Op. cit., p. 244.

[45] A partir da 3 ed. Daniel Mitidiero substituiu a expressão “Formalismo-Valorativo” por “processo civil do Estado Constitucional”, câmbio controvertido entre adeptos do FV, como se vê em: ZANETI JR., Hermes. MADUREIRA, Cláudio Penedo. Formalismo-Valorativo… Mera mudança de nome, como também percebeu: OLIVEIRA, Bruno Silveira de. A Instrumentalidade do Processo e o Formalismo-Valorativo (a roupa nova do imperador na ciência processual civil brasileira). Revista dos Tribunais Online, Revista de Processo, vol. 293, p. 19-47, Jul./2019, rodapé n. 3.

[46] MITIDIERO, Daniel. Colaboração no Processo Civil. 2 ed…

[47] ZANETI JR., Hermes. MADUREIRA, Cláudio Penedo. Formalismo-Valorativo…

[48] MITIDIERO, Daniel. Op. cit.

[49] MITIDIERO, Daniel. Colaboração no Processo Civil. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009, p. 40. O objetivo deste texto não é explorar a procedência ou não dessas supostas diferenças entre ip e fv, mas considero necessário apontar que esses argumentos são no mínimo questionáveis. Primeiro, no ip o juiz não está atado à estrita legalidade. Como visto no item 3.1., havendo tensão entre a lei e os sentimentos da nação (?), o juiz está liberado para decidir em conformidade com estes. Segundo, é claro que, a seu modo, o ip confere centralidade normativa à Constituição. Terceiro, não está dado que o fv dispõe de maior rigor metodológico contra o esgarçamento do Direito do que o ip. Seria superficial chegar a essa conclusão impressionando-se com a afirmação do ip de que o juiz declara direito e do fv de que o juiz cria direito, bem como de que, em casos-limite (?), o ip apela abertamente a domínios metajurídicos, enquanto na referida formulação o fv opera com uma noção de «juridicidade» como um substrato material (?) composto por (i) justiça, (ii) constitucionalidade e (iii) direitos fundamentais. Sobre a questão da natureza declaratória ou constitutiva da jurisdição, importa dizer o óbvio: mais relevante que o significante empregado (declaração ou constituição) é o significado desenvolvido. E no caso do ip, está assente que, tanto quanto o fv, não reduz a atividade jurisdicional à mera declaração de um direito já pronto e acabado. Sobre o rigor metodológico, o maior cuidado do fv na seleção dos significantes utilizados para veicular suas ideias não é garantia de maior controlabilidade da argumentação jurídica por parte do aplicador que se desgarra do direito positivo. O descolamento da lei em nome da juridicidade composta por (i) justiça, (ii) constitucionalidade e (iii) direitos fundamentais, nos termos do fv, não se reveste de maior consistência jurídica que o descolamento da lei em nome da justiça e dos sentimentos da nação, nos termos do ip. Uma noção de Direito assentada em entes tão disputados torna o raciocínio jurídico hipercomplexo, dificultando sobremodo o controle dos limites da juridicidade da argumentação do juiz que se afasta do direito positivo. Quarto, no interior do próprio fv observa-se que a questão de a atividade do juiz envolver constante adaptação e até criação não integra o estatuto epistemológico da teoria do processo, “pertence à teoria do direito, ingressando no plano filosófico” (OLIVEIRA, Carlos Alberto Alvaro de. Do Formalismo… p. 223, nota de rodapé n. 24), de modo que a natureza reconhecida à atividade decisória (aplicadora ou criadora) não é critério idôneo para diferenciar teorias processuais, mas seus referenciais jusfilosóficos de base.

[50] OLIVEIRA, Carlos Alberto Alvaro de. Op. cit., págs. 255-257.

[51] Op. cit., p. 219.

[52] MITIDIERO, Daniel. Colaboração…

[53] MITIDIERO, Daniel. Op. cit.

[54] Op. cit.

[55] Op. cit.

[56] Op. cit.

[57] ZANETI JR., Hermes. MADUREIRA, Cláudio Penedo. Formalismo-Valorativo…

[58] MITIDIERO, Daniel. Colaboração…

[59] Como já disse, não é objeto deste texto aprofundar no exame das identidades e diferenças entre ip e fv quanto a questões que transcendem o estrito objeto epistêmico da ciência processual. Registro, de modo que modo, que não entrevejo distinções relevantes entre tais correntes, conclusão compartilhada tanto por adeptos do garantismo processual (cf.: CARVALHO, Luciana Benassi Gomes. Medidas Executivas Atípicas. Uma leitura constitucional a partir do debate entre publicistas e garantistas. Belo Horizonte: Letramento / Casa do Direito, 2021, págs. 27 a 104) quanto por adeptos do ip (cf.: OLIVEIRA, Bruno Silveira de. A Instrumentalidade…).

[60] ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. Trad. Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros, 2008, passim. A adesão pelos adeptos do FV, pode ser encontrada em: ZANETI JR, Hermes. A Constitucionalização… Por parte dos adeptos do IP, em: BRASIL JR., Samuel Meira. Justiça, Direito e Processo: a argumentação e o direito processual de resultados justos. São Paulo: Atlas, 2007, passim.

[61] “Quanto todos os fenômenos jurídicos são convertidos em questões de delimitações entre princípios que, colidindo, originam regras, as quais, por sua vez, podem ser novamente reduzidas a princípios em uma nova colisão, não há mais exceção possível à linha de pensamento e à hipótese criada pela teoria dos princípios (…) Ciência de hipóteses irreais ou ideias, não de teses que possam ser confrontadas com fatos reais, a teoria dos princípios alcança aqui o ponto máximo de generalidade e abstração, que corresponde ao menos grau de cientificidade e possibilidade de comprovação. Ponto zero científico”. (LAURENTIIS, Lucas Catib de. A Proporcionalidade… págs. 137 e 140).

[62] “O correspondente dogmático de tal impossibilidade da comprovação das hipóteses criadas pela teoria dos princípios está nas afirmações de que colisões de princípios devem ser racionalmente fundamentadas, que a ponderação deve levar em consideração todos os fatos relevantes ao caso e que normas, sobretudo as que garantem direitos fundamentais, são mandamentos de otimização e, por isso, tendem a colidir. Se é assim, não há mais necessidade de qualquer outro instrumento, técnica ou conceito para a avaliação da constitucionalidade ou inconstitucionalidade de leis ou atos normativos. A teoria dos princípios criou uma regra universal e única para todo e qualquer conflito normativo e toda e qualquer controvérsia jurídica. (…) Mas é justamente nesse ponto, em que direitos e normas são reduzidos a razões e a interesses contrapostos em que toda a argumentação jurídica é resumida à obviedade contida na afirmação de que decisões devem considerar todas as circunstâncias importantes ao julgamento do caso, que as funções de orientação e estabilização de expectativas, que são os princípios objetivos de toda a dogmáticas e os sustentáculos da segurança jurídica, são anuladas. Ponto zero, agora, dogmático”. (LAURENTIIS, Lucas Catib de. Op. cit., págs. 140-141).

[63] Problema particularmente grave no que concerne ao modo como opera com a proporcionalidade em sentido estrito: “Em termos dogmáticos, os problemas da identificação dessa prova com a ponderação de princípios constitucionais estão menos nas inseguranças argumentativas e racionais geradas por tal concepção e mais na instabilidade e nas incertezas de seus parâmetros técnicos. Sobretudo porque as metáforas da ponderação e da colisão de princípios exigem a correção de valores abstratos e concretos, não há parâmetros constitucionais seguros e estáveis que possam guiar a comparação cruzada entre tais valores. Sem poder recorrer a esse elemento de estabilização, a proporcionalidade em sentido estrito se converte em um instrumento voltado a relativizar e flexibilizar normas constitucionais. Com a generalização e a expansão da utilização da ponderação, o dano causado pela proporcionalidade ao trabalho dogmático se intensifica, pois, ao ser concebido como o teste que avalia todas as condições jurídicas e fáticas incidentes no caso, ele substitui as funções de todos os outros parâmetros e técnicas normativas. Fonte de incertezas e uniformizações, não de orientações, a proporcionalidade em sentido estrito, quando identificada com a ponderação de princípios, se torna assim o oposto de todo o esforço dogmático. Enfim, ao ser integrada nessa espiral de relativizações, a prova da proporcionalidade como um todo é deslocada de sua função de defesa e orientação de condutas. Utilizada com fundamento na mera constatação de conflitos de valores e desprovida de parâmetros abstratos e finalidades específicas, ela passa a ser compreendida como a realização de um ideal de justiça, aplicado no caso concreto. Lex situationis”. (Op. cit., págs. 248-249).

[64] “A argumentação se justifica e encontra um lugar privilegiado precisamente naquelas circunstâncias e naqueles círculos problemáticos em que carecemos de critérios por referência aos quais possamos confiadamente afirmar algo com certeza. E é isso o que ocorre no âmbito da juridicidade. Mas costumamos dizer que uma ação ou decisão é conforme ao direito, e não conforme ao discurso. O discurso não é instância de validade, mas apenas uma possível instância de controle da validade dos nossos juízos acerca da juridicidade e de suas prático-normativas exigências concretas. (…) Na medida em que as teorias da argumentação vão se afastando dessas básicas pressuposições e começam a progredir de uma primeira asseveração da problematicidade de qualquer instância de validade material, com a transformação do discurso ou das suas regras em sucedâneo do direito – um juízo é válido ou correto não por sua conformidade ao direito, mas porque resulta de um discurso –, vamo-nos aproximando da transformação da prática jurídica e do confronto argumentativo que a entretece em um completo nonsense. (…) Se não existe uma realidade ou uma instância de validade para além do discurso e para a qual os interlocutores se abrem enquanto argumentam, tudo não passará de uma enganosa encenação” (MACHADO, Fábio Cardoso. A Autonomia do Direito e os Limites da Jurisdição. Tese (doutorado em Direito). 512/f. Universidade de Coimbra, Coimbra, Portugal, 2017, p. 238).

[65] Proposta por: ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios. Da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 17 ed. São Paulo: Malheiros, 2016, passim. Adesão bem marcada, v. g., em: MITIDIERO, Daniel. Colaboração

[66] “Ávila procura garantir a concepção da técnica de ponderação de valores desconectada da teoria dos princípios alexyana. Contudo, a seqüência de seu trabalho, que se constitui em um esforço de estabelecer novas formas de demonstrar a distinção entre as espécies normativas, acabará por implicar em um retorno indireto aos problemas inerentes à teoria da argumentação de Alexy: de um lado, a cisão da ontologia hermenêutica e, de outro, a violação do código binário do Direito. Nesse sentido, para nós, o problema não está se devemos empregar a ponderação de valores para todo o ordenamento jurídico, como preconiza Ávila, ou apenas para os princípios, como entende Alexy. A questão, tal como debatido anteriormente, é que a ponderação de valores ameaça a legitimidade do Direito por supor que a aplicação do mesmo se dê nos mesmos patamares e limites da aplicação da moral convencional, de forma a fundir os discursos de justificação e aplicação em um mesmo amálgama”. (CRUZ, Álvaro Ricardo de Souza. Hermenêutica Jurídica e(m) Debate. O constitucionalismo brasileiro entre a teoria do discurso e a ontologia existencial. Belo Horizonte: Fórum, 2007, págs. 303-304).

[67] O que entendo por decisão arbitrária está em: SOUSA, Diego Crevelin de. ROSSI, Júlio César. DIETRICH, William Galle. Afinal, o que se deve compreender a respeito da relação entre garantismo processual e discricionariedade? Revista Brasileira de Direito Processual-RBDPro, v. 111, p. 319-333, 2020.

[68] Ainda enfocando o problema da proporcionalidade em sentido estrito, Dimitri Dimoulis e Leonardo Martins argumentam que é utilizada como meio de buscar a melhor forma de harmonizar os direitos fundamentais fundada na pressuposição dos conhecimentos e capacidades técnicas do julgador, ignorando que o controle de constitucionalidade não deve se preocupar com as melhores soluções nem com a identificação da mais capacitada ou eficiente autoridade estatal para ponderar os direitos fundamentais, e, sim, apurar se a intervenção estatal (ou omissão) é constitucional. Resulta que ela abre espaço para o subjetivismo e confere ao Judiciário não uma instituição jurídica de controle de constitucionalidade, mas de controle político das escolhas do Legislativo, com pejo da garantia da separação dos Poderes e do princípio democrático. E concluem: “na falta de um critério constitucional para resolver um conflito normativo, o legislador é o único habilitado a concretizar as normas constitucionais, usando o poder discricionário que lhe conferiu a Constituição em virtude do caráter abstrato de suas normas. Objeto da revisão judicial não é a ponderação, mas a verificação de eventual desrespeito de normas constitucional pelo legislador. A proporcionalidade como exame da adequação e necessidade serve para aferir esse desrespeito específico, e não para substituir a decisão política do legislador pela decisão política do órgão jurisdicional constitucional”. (DIMOULIS, Dimitri. MARTINS, Leonardo. Teoria… p. 260 e 269).

[69] DIMOULIS, Dimitri. LUNARDI, Soraya Gasparetto. A verdade como objetivo do devido processo legal. In: Teoria do Processo. Panorama doutrinário mundial. V. 2. Coord. Fredie Didier Jr. Salvador: JusPodivm, 2010, págs. 816-817.

[70] DALLA BARBA, Rafael Giorgio. Desafios…

[71] Dos itens 3.1. e 3.2., recordemos de duas: “ao juiz não é dado conformar-se com eventuais soluções injustas ditadas pela legislação infraconstitucional”. (MITIDIERO, Daniel. Colaboração no Processo Civil. Pressupostos sociais, lógicos e éticos. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009, p. 40); “o Estado social contemporâneo, que repudia a filosofia política dos fins limitados do Estado, pretende chegar ao valor homem através do culto à justiça e sabe que, para isso, é indispensável dar ao conceito de justiça um conteúdo substancial e efetivo”. (DINAMARCO, Cândido Rangel. A Instrumentalidade… p. 34).

[72] DALLA BARBA, Rafael Giorgio. Desafios…

[73] DALLA BARBA, Rafael Giorgio. Op. cit.

[74] Op. cit.

[75] Op. cit. É por isso que alguns consideram irrelevante a discussão sobre a objetividade moral para o debate jurídico: “sabemos que existen desacuerdos morales en la sociedad y que incluso aquellos que creen en la existencia de respuestas correctas a tales controversias son incapaces de alcanzar un acuerdo acerca de cómo podemos conocerlas”. (WALDRON, Jeremy. Derecho y Desacuerdos. Madrid: Marcial Pons, 2005, págs. 195, 215 e 216). Por isso o neozelandês vê o Legislativo como dotado de maior legitimidade democrática para dimensionar os desacordos morais razoáveis. O problema é que “o juiz que está convencido da existência de verdades morais está menos preocupado com a legitimidade democrática da sua autoridade, experimentando menor deferência pela vontade política e legislativa”. (FONTES, Paulo Gustavo Guedes. Neoconstitucionalismo… p. 149).

[76] DALLA BARBA, Rafael Giorgio. Desafios…

[77] DALLA BARBA, Rafael Giorgio. Op. cit.

[78] Gap já foi qualificado como paradoxo de Bulow: “Toda tentativa no sentido de elevar o processo impregnado da herança bülowiana à condição de garantidor de direitos fundamentais falha exatamente em razão do fato de que não poderia ser esse processo, ao mesmo tempo, instrumento do poder (de criação e do dizer o direito pelo juiz) e sua limitação eficaz – eis o paradoxo”. (LEAL, André Cordeiro. Instrumentalidade do Processo em Crise. Belo Horizonte: Mandamentos, 2008, p. 64-65.

[79] PASSOS, José Joaquim Calmon de. Desafios e descaminhos do Direito Alternativo. In: Ensaios e Artigos. V. I. Salvador: JusPodivm, 2014, p. 444.

[80] Em crítica especificamente dirigida ao IP, mas extensível ao FV, denunciam a extrema confiança de que os magistrados extrairão as legítimas expectativas da sociedade, canalizando-as na decisão – “o juiz seria uma espécie de ‘antena’, apta a captar os anseios sociais dominantes”. Opera-se uma simplificação arbitrária – dizem eles: ativista – que “ocorre quando a escolha do juiz é dependente do desejo de acelerar ou travar alguma mudança social. Trata-se de decisão que não se pauta na legalidade vigente, mas na convicção do julgador”. Embora o elemento justiça seja apontada como escopo síntese da atividade jurisdicional, “em nenhum momento, efetivamente esclarece como chegaríamos à concepção de justiça, justo ou injusto”, não se encontrando na obra de Dinamarco “qualquer referência ou opção por uma ‘Teoria da Justiça’ suficientemente capaz de conduzir (ou pelo menos clarificar) o trabalho do julgador na realização dos escopos processuais. Muito pelo contrário, constantemente se fala em justiça (e muita importância lhe é dada), mas pouco se dedica a essa complicada questão”. Assim, “a percepção do valor justiça será fruto de uma apreciação subjetiva do julgador. A aposta, sem dúvidas, é no solipsismo”. Mas como não há consenso sobre o que é justo ou injusto, tudo dependendo das inclinações do juiz de turno, “muitas serão as justiças…” justiça seja apontada como escopo síntese da atividade jurisdicional, “em nenhum momento, efetivamente esclarece como chegaríamos à concepção de justiça, justo ou injusto”, não se encontrando na obra de Dinamarco “qualquer referência ou opção por uma ‘Teoria da Justiça’ suficientemente capaz de conduzir (ou pelo menos clarificar) o trabalho do julgador na realização dos escopos processuais. Muito pelo contrário, constantemente se fala em justiça (e muita importância lhe é dada), mas pouco se dedica a essa complicada questão”. Assim, “a percepção do valor justiça será fruto de uma apreciação subjetiva do julgador. A aposta, sem dúvidas, é no solipsismo”. (ABBOUD, Georges. LUNELLI, Guilherme. Ativismo judicial e instrumentalidade do processo. Diálogos entre discricionariedade e democracia. Revista dos Tribunais Online, Revista de Processo, vol. 242, p. 21-47, Abr./2015).

[81] “grande risco assumido pela teoria da instrumentalidade é que o julgador/intérprete seja ainda aquele Sujeito individualista que, mesmo na intenção de respeitar valores sociais, acaba atribuindo como tais o seu próprio senso de justiça e de equidade. A jurisdição assume funções criativas (…). Dinamarco inclusive aponta a possibilidade de desviar-se do que diz a lei, para atender a essa finalidade maior de justiça”. (SCHMITZ, Leonard Ziesemer. Fundamentação das Decisões Judiciais. A crise na construção de respostas no processo civil. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015, p. 187).

[82] Para ele, Dinamarco (IP) e Marinoni (FV) “propõem exatamente que a jurisdição faça valer uma vontade concreta, só se alternando a fonte dessa concretude: antes, a vontade da lei ou do legislador; agora, os valores vigentes na sociedade só acessíveis a um julgador magnânimo e preparado. O que se tem é que a concretude da vontade se desloca, na Escola Instrumentalista do Processo, do texto legal para uma realidade social em si mesma – um enforque que, antes de axiológico, é axiologizante” (LEAL, André Cordeiro. Instrumentalidade… p. 137).

[83] , falando sobre o IP – extensível ao FV –, denuncia que a “proposta de independência do juiz (em relação à lei) justificada pela obediência a uma ordem superior (de valores)”, com vistas à concreção “de objetivos éticos, morais, sociais, políticos ou culturais”, torna a condução instrumental do processo “compatível com o subjetivismo na construção da decisão”. O discurso constitui uma estratégia dissimulatória para legitimar o solipsismo judicial e o recurso a elementos extrassistêmicos”. (GRESTA, Roberta Maia. Introdução aos Fundamentos da Processualidade Democrática. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014, págs. 127, 144 e 145). Igual: LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria Geral do Processo. Primeiros estudos. 14 ed. Belo Horizonte: Fórum, 2018, p. 109; LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria Processual da Decisão Jurídica. 3 ed. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2017, págs. 132/134-135.

[84] Ele insere o IP na tendência de acreditar ser a jurisdição responsável pela incorporação dos “verdadeiros valores” que definem o Direito justo, o que reputa o maior “equívoco de quem quer transformar o Direito em um valor ou em valores. Fazer isso é a forma mais sofisticada de negá-lo”. (STRECK, Lenio Luiz. Dicionário de Hermenêutica. Quarenta temas fundamentais da Teoria do Direito à luz da Crítica Hermenêutica do Direito. Belo Horizonte: Letramento/Casa do Direito, 2017, p. 146). Escrevendo com Francisco José Borges Motta, afirma que no FV, “quer se queira, quer não se queira, é o protagonismo judicial – próprio do instrumentalismo processual tão criticado por Mitidiero e por Alvaro – o lócus da solução do problema. Um bom juiz solucionou a controvérsia, a saber: um juiz que soube fazer o arbitramento”. De modo que “acabam endossando a subjetividade assujeitadora que conforma a discricionariedade judicial”. (STRECK, Lenio Luiz. MOTTA, Francisco José Borges. Um debate com (e sobre) o formalismo-valorativo de Daniel Mitidiero, ou “colaboração no processo civil” é um princípio? Revista dos Tribunais Online, Revista de Processo, vol. 213, p. 13, Nov./2012.).

[85] Que critica o FV – extensível ao IP – apontando uma contradição: ao mesmo tempo em que se diz inconveniente atribuir ampla liberdade ao órgão judicial invoca-se a equidade para que o juiz promova a justiça do caso concreto, sob a consideração de que o “sentimento de justiça” é o “apanágio do verdadeiro juiz”, qual seja, “aquele que esteja imbuído de um ‘sentimento de justiça’, determinado a realiza a ‘justiça do caso concreto’”. (MOTTA, Francisco José Borges. Levanto o Direito a Sério: uma crítica hermenêutica ao protagonismo judicial. Florianópolis: Conceito Editorial, 2010, págs. 188-190). Criticando a equidade: DIAS, Ronaldo Brêtas de Carvalho. Projeto do novo Código de Processo Civil aprovado pelo Senado – exame técnico e constitucional. In: O Futuro do Processo Civil – uma análise crítica ao Projeto do novo CPC. Orgs.: ROSSI, Fernando; RAMOS, Glauco Gumerato; GUEDES, Jefferson Carús; DELFINO, Lúcio; RIBEIRO MOURÃO, Luiz Eduardo. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2011. p. 558. Associando a equidade à canibalização do direito: STRECK, Lenio Luiz. DELFINO, Lúcio. Novo CPC e decisão por equidade: a canibalização do direito. Consultor Jurídico, São Paulo, 29 dez. 2015. Disponível em: https://bit.ly/2GRfF3O, acesso em 29.09.2020. Defendendo que as previsões legais que remetem à equidade instituem técnicas interpretativas, não como autorização para julgamentos contra legem: ABBOUD, Georges. Processo Constitucional Brasileiro. 4 ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2020, p. 1234.

[86] Afirma que a expressão processo justo representa “um exemplo típico de ‘novilíngua’, um idioma fictício, criado com o objetivo de restringir o escopo do pensamento através do controle da linguagem”, bem como “um ‘duplipensar’ em si, ou seja, um pensamento duplo antagônico e coordenado, um paradoxo apenas possível na imersão dessa ficção, representa um ‘saber-se que está errado’ e um ‘convencer-se que está certo’”, pois aí “o processo é uma garantia que nada garante à parte, garante apenas a força do Estado, a potência ilimitada do Poder sob a imagem de uma inalcançável justiça material, satisfaz o julgo do magistrado bem intencionado sob a astúcia da parte”. E no que interessa aqui, conclui: “a expressão ‘processo justo’ representa um fosso de vaguidão hermenêutica, dentro dele tudo é possível, já que não existem limites para a sua caracterização”. (CARVALHO FILHO, Antonio. Desmistificando o processo justo: pela reconstrução do devido processo legal. Empório do Direito, Florianópolis, 12 ago. 2019. Coluna Garantismo Processual. Disponível em: https://bit.ly/2IjcWB1, acesso em 29.09.2020). Sim, pois, a um, “é simplesmente impossível que alguém consiga reunir em si essa condição de síntese dos influxos de justiça a partir de uma sociedade tão plural quanto a nossa”, e, a dois, “o juiz-antena tem um problema grave com a ordem normativa. (…) É dizer, estando o direito em confronto com a justiça (=aquilo que o juiz pensa que seja justiça), que tombe o direito e seja realizada a justiça”. CARVALHO FILHO, Antonio. Precisamos falar sobre o Instrumentalismo Processual. Empório do Direito, Florianópolis, 11 out. 2017. Coluna Associação Brasileira de Direito Processual. Disponível em: https://bit.ly/3lCF5RZ, acesso em 29.09.2020). Assim, o slogan “não passa de um mero recurso linguístico para autorizar o despertar do vírus autoritário do juiz, sem descrever o seu conteúdo diante da inexistência de normatividade”. (CARVALHO FILHO, Antonio. Pequeno manual prático para o debate instrumentalistas (e afins) vs garantistas processuais. Empório do Direito, Florianópolis, 08 abr. 2019. Coluna Garantismo Processual. Disponível em: https://bit.ly/3lzAM9M, acesso em 29.09.2020).

[87] Anota que “o juiz instrumentalista é sobre-humano” e que “a busca pela justiça é estratégia para o empoderamento dos juízes e, por consequência, da própria jurisdição”, crítica dirigida ao IP e ao FV (DELFINO, Lúcio. O processo é um instrumento de justiça? (desvelando o projeto instrumentalista de poder). Empório do Direito, 28 abr. 2019. Coluna Garantismo Processual. Disponível em: https://bit.ly/2FhCgWL, acesso em 29.09.2020), insistindo no caráter autoritário do segundo, forte que é na tendência de “ampliação dos poderes da autoridade judicial” e de captura de garantias processuais, notadamente do contraditório. (DELFINO, Lúcio. Cooperativismo processual e o germe do autoritarismo. Empório do Direito, Florianópolis, 30 mar. 2020. Coluna Garantismo Processual. Disponível em: https://bit.ly/33KYnOI, acesso em 29.09.2020). Conferir, ainda: DELFINO, Lúcio. Cooperação processual: inconstitucionalidades e excessos argumentativos – trafegando na contramão da doutrina. Revista Brasileira de Direito Processual – RBDPro, Belo Horizonte, ano 24, n. 93, p. 149-168, jan./mar. 2016. O exemplo mais agudo está em Antonio do Passo Cabral, que transforma o contraditório também em direito do juiz e dever das partes: CABRAL, Antonio do Passo. Nulidades no Processo Moderno. Contraditório, proteção da confiança e validade prima facie dos atos processuais. 2 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2010, p. 214. Sem muito esforço se percebe que o contraditório é desconfigurado, perde o caráter de garantia, quando deixa de ser apenas direito das partes e dever do juiz.

[88] Sustentam que o discurso da “justiça” no IP e o FV serve para o “abrandamento da legalidade sempre que a aplicação da lei resultar uma solução injusta ao litígio”, segundo a avaliação arbitrária do juiz de turno. (RAATZ, Igor. ACHIETA, Natascha. O juiz defensor da moral, o juiz defensor da verdade e o juiz defensor da lei: instrumentalismo, cooperativismo e garantismo processual. Empório do Direito, Florianópolis, 01 abr. 2019. Coluna Garantismo Processual. Disponível em: https://bit.ly/3dfm6tw, acesso em 29.09.2020).

[89] Tacha a invocação da “justiça” na dpj de arrogante e irresponsável. Arrogante, porque “filósofos disputaram por mais de 2.000 anos conceitos como a justiça e não conseguiram argumentos cabais para um ou para outro lado. Contudo, não é incomum observar um juiz achando que pode (e sabe) fazer justiça nos casos que julga e, assim, atropelando uma garantia de quase dez séculos do indivíduo, como o devido processo legal. Na verdade, parcela considerável da dogmática não sabe o que o Processo é (garantia/contrapoder), mas acha que domina uma questão infinitamente mais complexa, como a justiça”. Irresponsável, porque “seria imperioso que os autores explicassem todos os problemas envolvendo o tema ‘justiça’, os seus mais de 2.000 anos de discussão e, por fim, o que entendem por ‘justiça’”, o que, como já visto, não fazem. Por isso, conclui: “à medida em que o processo definha, o arbítrio – e não a justiça – aumenta. O processo não é inimigo da justiça; é inimigo do arbítrio”. (DIETRICH, William Galle. O processo: a história natural do seu sufocamento. Empório do Direito, Florianópolis, 08 mai. 2019. Coluna Associação Brasileira de Direito Processual. Disponível em: https://bit.ly/35I1U1x, acesso em 29.09.2020).

[90] Nos termos em que definidos por: DIMOULIS, Dimitri. Positivismo Jurídico. Uma teoria da validade e da interpretação do direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2018, págs. 191 e 194-195.

[91] Como fica claro nessa passagem lapidar: “os defensores dessa posição, partindo da premissa de que o processo é um instrumento a serviço da jurisdição (do Estado-juiz e, portanto, do poder), quer seja instrumento dotado de escopos políticos, sociais e jurídicos, quer seja instrumento ético (com os formalistas-valorativos e cooperativistas), aderem à ideia de um direito fundamental ao processo justo. O processo justo, por sua vez, tem como um de seus elementos de conformação a tutela adequada, efetiva e tempestiva, o que leva à necessidade de desenvolvimento de técnicas dos casos concretos que os envolvem. A partir daí, passa-se a admitir a ampliação dos poderes do juiz mediante cláusulas gerais processuais ou normas processuais abertas, insculpidas pelo legislador infraconstitucional, com o poder, inclusive, de alterar o próprio ‘modelo’ de processo, como se vê da leitura cooperativista” (CARVALHO, Luciana Benassi Gomes. Medidas…, p. 104).

[92] Ao contrário do que supõe DINAMARCO, Cândido Rangel. A Instrumentalidade…, págs. 103-104.

[93] COSTA, Eduardo José da Fonseca. Processo e Razões de Estado. Empório do Direito, Florianópolis, 28 out. 2019. Coluna Garantismo Processual. Disponível em: https://bit.ly/2Y1H1e3. Acesso em 22.02.2020.

[94] A propósito, conferir as valiosas contribuições de William Galle Dietrich: Ciência jurídica e garantismo processual. 1ª Parte. Empório do Direito, Florianópolis, 16 mar. 2020. Coluna Garantismo Processual. Disponível em: https://bit.ly/2EpzyOE, acesso em 21.09.2020; Ciência jurídica e garantismo processual. 2ª Parte. Empório do Direito, Florianópolis, 18 mai. 2020. Coluna Garantismo Processual. Disponível em: https://bit.ly/2ZZvE6u, acesso em 21.09.2020; e Ciência jurídica e garantismo processual. 3ª Parte. Empório do Direito, Florianópolis, 27 jul. 2020. Coluna Garantismo Processual. Disponível em: https://bit.ly/33LqhsM, acesso em 21.09.2020.

[95] Verbete lançando na Wikipédia: Disponível em: https://bit.ly/3ddmxEF, acesso em 29.09.2020. E com isso parafraseio o que, certa feita, Eduardo José da Fonseca Costa disse sobre a cooperação, em mensagem lançada no grupo da Associação Brasileira de Direito Processual no Telegram.

[96] Verbete lançado na seção de pesquisa do Google: https://bit.ly/36PW9Qi, acesso em 29.09.2020.

[97] SOCCAL, Raissa. Removendo obstáculos com o poder vibracional do mantra. Disponível em: https://bit.ly/3nBCzgn, acesso em 29.09.2020.

[98] Entre seus adeptos há quem sustente que o positivismo jurídico reduziu (i) o direito à lei, (ii) a fonte ejetora do direito ao Legislativo e (iii) a atividade do jurista à descrição da lei e à busca da vontade do legislador mediante raciocínios lógicos que revelam um resultado correto ou falso. (MARINONI, Luiz Guilherme. ARENHART, Sérgio Cruz. MITIDIERO, Daniel. Novo… p. 33-34). Teses por demais superadas. Quanto a (i), basta ver: KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2012, passim. Quanto a (iii), ver tanto positivistas excludentes quanto positivistas includentes: RAZ, Joseph. La Autoridad del Derecho. Ensayos sobre derecho y moral. Trad. Rolando Tamayo e Salmorán. Ciudad de México: Universidad Nacional Autónoma de México, 1985, p. 243 e ss.; HART, Herbert L. A. O Conceito de Direito. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2009, p. 356.

[99] DINAMARO, Cândido Rangel. A Instrumentalidade… p. 41, nota de rodapé n. 58.

[100] “La apoteosis del desdoblamiento moral y del arribismo seguramente se expresa mejor que nadie en Theodor Maunz, y en él se exponen también las contradicciones y paradojas de un sistema político que, al compás de la Guerra Fría, ocultó a menudo la responsabilidad de muchos cómplices de los victimarios y, más o menos sutilmente, siguió culpando a las víctimas. Como con aquella miserable cantinela de que la causa de los excesos inmorales de tanto jurista bajo el nazismo se encontraba en las enseñanzas de Kelsen y su positivismo jurídico. ¡Cuántos ignorantes han venido repitiendo esa fábula y cuántos perversos y manipuladores la han seguido difundiendo a sabiendas de su falsedad!”. (GARCÍA AMADO, Juan Antonio. Introdución. Un ejemplo más. El caso de Thedor Maunz. RÜTERS, Bernd. Derecho Degenerado. Teoría Jurídica y juristas de cámara en el Tercer Reich. Madrid: Marcial Pons, 2016, p. 16). Conferir, ainda: DIMOULIS, Dimitri. Positivismo…, p. 167 e ss. Idem, reforçando que dificilmente o direito fará vez frente à força de uma realidade fática: SANT’ANNA, Lara Freire Bezerra de. Judiciário como Guardião da Constituição: Democracia ou Guardiania? Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014, p. 26 e ss.

[101] E por isso pode ser visto com ressalvas: “a prática legislativa de criação de cláusulas gerais e conceitos jurídicos indeterminados gera uma distorção em ambos os processos, na medida em que imiscui o juiz na função legislativa e torna indeterminado o procedimento, fazendo do juiz parte interessada: se o conteúdo legislativo significa autorregulação dos cidadãos, o preenchimento do sentido pelo próprio juiz significa a criação da norma por um cidadão interessado não autorizado. Esta desformalização da lei e do processo certamente não gera mais justiça” (SANT’ANNA, Lara Freire Bezerra de. Judiciário… págs. 163-164).

[102] ZANETI JR., Hermes. A Constitucionalização… p. 54.

[103] Há consistente – e correta, segundo penso – objeção à relação entre cláusulas gerais e constitucionalização do direito, argumentando que: (i) cláusulas gerais são figuras milenares e mesmo as que sofreram inovações jurisprudenciais e foram posteriormente vertidas em lei (v. g., a boa-fé objetiva no direito civil alemão) nunca foram relacionadas à constitucionalização do direito; (ii) no Direito Civil, a afirmação de que a constitucionalização via cláusulas gerais se presta à tutela de vulneráveis esbarra na inusitada necessidade de explicar a sua utilização também nas Constituições autoritárias de 1937 e 1967/69; (iii) não há diferença entre cláusula geral infraconstitucional e “princípio” constitucional homônimo, pois padecem da mesma (baixa) densidade normativa; (iv) a irradiação da Constituição na lei infraconstitucional pode se dar (e é preferível que se dê) por regras casuísticas (RODRIGUES JR., Otávio Luiz. Direito Civil Contemporâneo. Estatuto epistemológico, constituição e direitos fundamentais. São Paulo: Forense Universitária, 2019, p. 189 e ss. e p. 327 e ss.). Sobre a suposta imprescindibilidade de conferir aos precedentes status de fonte normativa primária, apontam-se agudos inconvenientes jurídico-normativos, jurídico-políticos e jurídico-culturais: “resta esclarecer em que medida o constituinte reformador de fato optou pela mudança do sistema de fontes do direito e se jurídico-culturalmente o Judiciário, as funções essenciais à Administração da Justiça e as ciências jurídicas estão preparados para tal transformação. Partindo do eloquente indício de que nem mesmo dentro do próprio STF há consensos decisórios mínimos, agravados pelo sistema de deliberação do seriatum, não colegiado, pode-se concluir que ambas as condições não estão presentes” (MARTINS, Leonardo. Questões constitucionais na ordem processual: entre a repercussão geral e a tutela de direitos fundamentais individuais. Espaço Jurídico Journal of Law [EJJL], v. 20, 2019, p. 37, nota de rodapé n. 42. Disponível em: https://bit.ly/3keFlGc, acesso em 29.09.2020).

[104] Daí ser tão receptiva ao ativismo judicial: “assim como o ativismo judicial em excesso pode não ser desejável, porquanto extrapola as funções constitucionalmente asseguradas ao Judiciário e desborda num campo de atuação que não lhe pertence, o ‘passivismo judicial’ (…) certamente também não parece interessar, na medida em que o escopo de pacificação social objeto da jurisdição não seria alcançado (…) É mais fácil compreender, portanto, essa posição ativista como um momento ou período histórico marcado pela fragilidade ou enfraquecimento das forças políticas de uma nação, que demandam uma atuação complementar dos membros do Poder Judiciário, os quais, não raras vezes, são levados a decidir questões não positivadas no ordenamento e sob as quais a legislação está totalmente ultrapassada, não sendo mais condizente com o momento vivido pela sociedade etc.” (LIMA, Tiago Asfor Rocha. Precedentes Judiciais Civis no Brasil. São Paulo: Saraiva, 2013, págs. 62 e 64). Contudo, “O problema do ativismo judicial brasileiro é, do início ao fim, de política cultural e de motivação político/moral, isto é, de magistrados que rejeitam posturas que consideram formalistas justamente porque não querem ou não veem incentivos para aplicar a solução exigida do ponto de vista jurídico – seja porque, alheios a quaisquer discussões mais aprofundadas, simplesmente se sentem mais confortáveis fazendo o que pensam ser mais justo, seja porque (adivinhem!), algum ‘pós-positivista’ incutiu-lhes por anos a ideia de que o direito é um sistema que tem como objetivo ‘fazer justiça’”. (TORRANO, Bruno. Pragmatismo no Direito. E a urgência de um “pós-pós-positivismo” no Brasil. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018, p. 92).

[105] Se o direito é definido pelos juízes – resultado da tese das Cortes Supremas, cujos adeptos não por acaso aderem à dpj –, então parece mais promissor um modelo que, ao apostar nos juízes, forja o seu modo de atuar e, de algum modo, captura-os: “quer parecer que o Estado-Juiz é, atualmente, quem decide as regras do jogo, graças à ficção do guardião da constituição. Ora, se o jogo tem regras, nada melhor do que jogar no time de quem está autorizado a interpretar essas regras. Melhor ainda é atuar “no time” como se não existisse isso de time ou equipe, afinal, o árbitro está fora do jogo e não se mistura com os jogadores, correto?” (FREITAS, Elias Canal. Uma Leitura Retórica da Decisão Judicial: lógica, ética e patética do procedimento decisório na dogmática jurídica brasileira. Dissertação (mestrado em Direito). 121f. Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, 2016, p. 10).

[106] Demonstrando o ponto: DIETRICH, William Galle. Cultura constitucional em declínio e degradação do processo. Empório do Direito, Florianópolis, 16 set. 2019. Coluna Garantismo Processual. Disponível em: https://bit.ly/33Y41NL, acesso em 29.09.2020.

[107] “O que seja a justiça, que ao direito cumpre efetivar, eu não sei. Ninguém sabe. É algo em permanente fazer-se, mediante a dialética da vida política (…) pelos que, produzindo em conjunto, devem ter, em conjunto, o poder de deliberar sobre a partilha desse esforço comum” (PASSOS, José Joaquim Calmon de. Dimensão política do processo: Direito, Poder e justiça. In: Artigos e Ensaios. V. II. Salvador: JusPodivm, 2016, p. 386).

[108] “É, pois, a atividade política que dá a dimensão da justiça do direito, não ele, direito, que representa algo capaz de determinar por suas próprias virtudes, a justiça que se almeja (…) porque condição essencial para sermos justos é fazermo-nos disponível para o outro, permitir que ele coloque livremente suas carências e suas expectativas, a fim de que, dialogando com ele, sejamos capazes de convencê-lo ou de convencermo-nos da melhor solução, ou da única solução possível, atendido o contexto em que as carências se manifestam” (PASSOS, José Joaquim Calmon de. Dimensão…, p. 384 e 387).

[109] “nós [juristas] estamos destruindo a democracia. Nós somos, hoje, aquelas pessoas contra quem a nação precisava se mobilizar para uma ‘Diretas já!’. Assim como as ‘Diretas já!’ tiraram o militar da ilusão de que eles poderiam saber o que é melhor para esse país, nós estamos na urgência de tirar da cabeça dos juristas e dos magistrados a ideia de que eles sabem o que é melhor para esse país. Se nós continuarmos acreditando que não é a atividade política, não é a luta e o confronto, não é o risco social de trabalhar na defesa dos seus interesses e no alargamento de seu espaço social que salva os homens e as nações; enquanto nós acreditarmos que decisões e normas salvam países, nós só vamos trabalhar em favor do status quo. O nosso discurso libertário, na verdade, é uma forma de desmobilização política de fazer com que o oprimido – realmente oprimido – acredite que há uma via para a sua libertação que não seja a sua própria rebelião” (PASSOS, José Joaquim Calmon de. O que… min. 49:00-50:17, acesso em 28.09.2020).

[110] “Nós, juristas, portanto, queiramos ou não, se nos proclamamos comprometidos com um projeto emancipador do homem, não podemos resgatar esse nosso compromisso como profissionais apenas, mas precisamos levar esse compromisso efetiva e prioritariamente para o campo da luta política. (…) Só nosso comprometimento político como homem total, cidadão pai, cidadão mestre, cidadão trabalhador, cidadão usuário, cidadão eleitos e quantos mais papéis nos caibam desempenhar” (PASSOS, José Joaquim Calmon. Dimensão…, p. 385).

[111] A propósito, ver: ROSSI, Júlio Cesar. O garantismo estrutural. Empório do Direito, Florianópolis, 27 mai. 2019. Coluna Garantismo Processual. Disponível em: https://bit.ly/3lznMAZ, acesso em 29.09.2020.

[112] O ativismo doutrinário (Lúcio Delfino), braço do moralismo jurídico, encerra “uma tentativa de troca de papéis que equivale a um retorno ao antigo regime que permitia a juízes e doutrinadores criar o direito no caso concreto” (DIMOULIS, Dimitri. Positivismo… p. 192).

[113] Cândido Rangel Dinamarco se manifestou. Adjetivou a crítica de “santa cruzada”; recorreu ao autoelogio e à diminuição da capacidade compreensiva do opoente ao afirmar que “o grande Mestre baiano parece não compreender a grande e nobre mensagem contida na obra instrumentalista” – “um processo de feição humana, com o juiz atuando com sua sensibilidade para o valor do justo”; concluindo retoricamente que quando “a cláusula do due process for interpretada como fator esclerosante da participação do juiz no processo, adeus justiça e viva as fórmulas rígidas da lei” (DINAMARCO, Cândido Rangel. A Instrumentalidade…, págs. 379-380). O escapismo acusa o golpe. Claro que Calmon de Passos entendeu o propósito do ip (seus fins e a quem serve) – este é que nunca explicou o que entende por “valor do justo”. Calmon de Passos temia “aquele que se diz um justo, por se crer capaz de saber o que seja a justiça e o bem de outro” (PASSOS, José Joaquim Calmon de. Dimensão…, p. 386). Ao que eu acrescentaria: considera-se, outrossim, digno de toda confiança e dispensado de prestar contas. Talvez isso explique a indisposição dos justiceiros da dpj para o debate com seus opositores. De fato, Dinamarco insistiu na postura em entrevista publicada em 2010: descreditou a crítica de Calmon de Passos, dizendo que “seus métodos e seus conceitos eram os nossos” – do ip – e que o verdadeiro alvo de sua crítica era a magistratura estadual baiana, suscetível à maléfica ascendência da política local, que, por erro, o baiano projetou para toda a magistratura (RODRIGUEZ, José Rodrigo. Cândido Rangel Dinamarco e a Instrumentalidade do Processo [uma entrevista]. In: Cadernos de Direito FGV. v. 7. n. 4. julho 2010, p. 27 e ss. Disponível em: https://bit.ly/350UDcl, acesso em 30.09.2020). E assim, sem mais, converteu a crítica a uma teoria jurídica em uma crítica sociológica. Semelhante à “resposta” à crítica ao instrumentalismo processual formulada por Aroldo Plínio Gonçalves (Técnica Processual e Teoria do Processo. 2 ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2012, págs. 157-165), que se cingiu a isto: “O título insinua alinhamento com as novas tendências do direito processual (A técnica processual revisitada) mas o conteúdo constitui defesa do tecnicismo que aqui venho combatendo. Para aquele autor, talentoso na exposição e erudito na fundamentação, a revisitação conveniente consistiria em depurar o processual do não-processual, de modo que a técnica seja técnica pura e as opções ideológicas sejam tratadas fora do direito processual” (DINAMARCO, Cândido Rangel. A Instrumentalidade… p. 178, nota de rodapé n. 2). Argumento de autoridade: Gonçalves está errado porque discorda de Dinamarco.

[114] Calmon de Passos concordaria que devemos começar por “ensinar nossos alunos que existem distinções importantes entre direito e moral, que o direito não é uma ode intransigente à ‘Justiça’, e que não há nada de tão inovador na filosofia dos tempos pós-positivistas que sirva para colocar o selo de ‘juridicidade’ em escolhas arbitrárias, por vezes cínicas, feitas por magistrados” (TORRANO, Bruno. Pragmatismo… p. 90).

Autor

  • Diego Crevelin de Sousa

    Mestre em direito processual pela Universidade Federal do Espírito Santo. Conselheiro da Associação Brasileira de Direito Processual. Parecerista ad hoc da Revista Brasileira de Direito Processual. Professor do curso de direito das Faculdades Integradas de Aracruz-ES. Advogado.



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