Ao André Lucas Fernandes
1. No livro O problema fundamental do conhecimento, PONTES DE MIRANDA busca suplantar o desgastado esquema sujeito-objeto. Não se trata dasub-jetividade nem da ob-jetividade do conhecimento, mas da «jetividade», sem o sub– nem o ob-. Não há um sujeito determinando ex mentis um objeto, como se o sujeito cognoscente co– ou omni-constituísse o objeto cognoscível. Tampouco há um objeto impactando ex experientiæ um sujeito, como se o objeto cognoscível se espelhasse fielmente na impressão que provoca no sujeito cognoscível. Verdadeiramente, há o (ob)jeto influindo sobre o (su)jeito e influindo sobre os outros (ob)jetos, sendo possível a revelação dessas influições ex inductionis. Por conseguinte, o foco não está no sujeito nem no objeto, mas na relação «jeto»-«jeto». Está na «interjetividade». Aliás, segundo PONTES, «não há realidade que não sejam relações» (A sabedoria da inteligência. I. 4) (esse relacionismo, segundo LOURIVAL VILANOVA, serve para «dessubstancializar o mundo físico e o mundo social» – cf. A teoria do direito em Pontes de Miranda. Escritos jurídicos e filosóficos. v. 1. São Paulo: IBET, Axis Mundi, 2003, p. 401).
A sub-jetividade do racionalismo e a ob-jetividade do empirismo dão lugar à «jetividade» do positivismo científico (que em PONTES DE MIRANDA assume contornos nitidamente pós-comteanos). Não se trata de se estiolar no abstrato, nem de se enlodar no concreto, mas de se altear ao científico. Em suma, o hífen que une «jeto» a «jeto» não é desvelado pela razão nem pela impressão, mas pelo método indutivo. Por meio dele se vai a passos firmes do particular ao geral, sem saltos acrobáticos até o universal. 1) O racionalista constitui pensativamente as leis universais que regem o objeto deduzindo-as desde postulados metafísicos; 2) o empirista se aferra sensitivamente ao casuísmo de vestígios imprecisos, incapaz de generalizar as leis desde os vislumbres grosseiros da experiência espontânea; 3) o cientista investiga metodologicamente as leis gerais que regem o «jeto» induzindo-as desde experimentos controlados (sobre essas «três fases cíclicas da mentalidade»: MIRANDA, Pontes de. Introdução à política científica. Rio de Janeiro: Forense, 1983, p. 146 e ss.).
2. A teoria pontiana dos «jetos» tem como uma de suas consequências uma indistinção fundamental entre o cultural e o natural, entre o homem e o resto do mundo, entre o orgânico e o inorgânico, entre o ser e o dever-ser, entre o descritivo e o prescritivo, entre o positivo e o normativo. Tem-se aí uma expressão domonismo e da sua concepção unitária de ciência, que tanto caracterizou a Escola do Recife (encabeçada por nomes como Tobias Barreto, Silvio Romero, Clóvis Bevilaqua, Graça Aranha, Artur Orlando, Martins Junior e Faelante da Câmara) e da qual PONTES DE MIRANDA é um filho espiritual (sobre a Escola, v. PAIM, Antônio.A Escola do Recife: estudos complementares à história das idéias filosóficas no Brasil – v. 5. Londrina: Ed. UEL, 1999. Sobre a influência dela sobre PONTES: LIMONGI, Dante Braz. O projeto político de Pontes de Miranda: Estado e Democracia na obra de Pontes de Miranda. Rio de Janeiro: Renovar, 1998, p. 30-34). Daí por que o fato social tem a mesma «jetividade» do fato biológico, do fato químico, do fato físico, do fato astronômico, do fato geológico, do fato paleontológico etc., conquanto esses «jetos» se diferenciem entre si pelo maior ou menor grau de espessura (o «jeto» social, por exemplo, é menos refinável e, portanto, mais espesso que o «jeto» biológico, que por sua vez é mais espesso que o «jeto» físico; sem espessura, sem ligação a um determinado objeto e às suas propriedades, atemporal, só o a priori puro, o a priori um, o «jeto» último).
Afinal de contas, «a sociedade não descontinua o mundo» (MIRANDA, Pontes de. Sistema de ciência positiva do direito. t. III. 2. ed. Rio de Janeiro: Borsoi, 1972, p. 50). Não existe a sociedade e o resto do mundo, mas apenas e tão somente «o» mundo. Logo, o método científico do sociólogo há de ser idêntico aos métodos científicos do biólogo, do químico, do físico, do astrônomo, do geólogo, do paleontólogo etc. Em verdade, não existem «métodos científicos» (no plural), mas «o» método científico (no singular). Por isso, tendo em vista a naturalidade do fenômeno social, ao sociólogo é dado igualmente: coletar informações a partir da observação rigorosa da realidade; reunir os dados recolhidos de maneira sistemático-racional; formular hipóteses segundo a análise dos dados recolhidos; comprovar as hipóteses a partir de experimentações.
3. Em PONTES DE MIRANDA, há asociologia geral, que se dedica aos fatos sociais, e há associologias especializadas, que se dedicam a fatos sociais específicos. A sociologia da religião se dedica ao fato religioso; a sociologia da moral, ao fato moral; a sociologia da arte, ao fato artístico; a sociologia do direito, ao fato jurídico; a sociologia da política, ao fato político; a sociologia da economia, ao fato econômico; a sociologia da ciência, ao fato científico. Nesse sentido, o jurista nada mais é do que um sociólogo especializado no fato jurídico (obs.: isso mostra o enorme desafio de se dominar a totalidade do edifício intelectual construído por PONTES, que de um pensamento epistemológico derivou um pensamento sociológico, e de um pensamento sociológico derivou um pensamento jurídico; sem esse domínio, porém, PONTES passa a ser estudado «em tiras» e, em consequência, a ser compreendido de modo distorcido tanto pelos seus defensores quanto pelos seus críticos). Por fato jurídico se entenda suporte fático que, tendo sofrido a incidência da regra jurídica, se juridicizou, ingressando no mundo jurídico.
Uma vez por outra se lê em PONTES DE MIRANDA uma separação entre «mundo fático» e «mundo jurídico», como se o mundo jurídico fosse um «mundo não fático». Entretanto, é preciso muito cuidado com essa leitura açodada. Com efeito, vai-se do mundo fático lato sensu ao mundo jurídico como se vai do gênero à espécie. «Mundo jurídico» = mundo dos fatos jurídicos; «mundo fático stricto sensu» = mundo dos fatos não jurídicos (religioso, moral, artístico, político, econômico ou científico); «mundo fático lato sensu» = mundo jurídico + mundo fático stricto sensu. Como bem ressalta ANDRÉ LUCAS FERNANDES, «Pontes de Miranda aloca o direito como um subconjunto do mundo dos fatos […]. É, pois, uma parte do mundo total. Não é um mundo ao lado, mas parte do mundo dos fatos, sob qualificativo diferente» (Entre Sistema e Tratado: o pensamento de Pontes de Miranda e a modelização da sociedade global. Curitiba: CRV, 2018, p. 116) (em sentido contrário, usando a palavra fático para designar o não jurídico: MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do fato jurídico – plano da existência. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 9).
4. Ademais, é necessário cuidado com a separação entre «fato jurídico» e «regra jurídica». Em não raras vezes, acusa-se PONTES de não ter umateoria da norma(nesse sentido: VILANOVA, Lourival. Ob. cit., p. 407 e ss.). Sem razão, porém. À regra jurídica também se dedica a sociologia do direito. A regra jurídica é também fato jurídico («o fato da regra jurídica, […] que existe no mundo das relações humanas e do pensamento humano» – cf. Tratado de direito privado. t. 1, § 1. 1). Mais especificamente, é ato jurídico (cf. MIRANDA, Pontes de. Tratado das ações. t. IV, § 179: «As regras jurídicas, quaisquer que sejam, são atos jurídicos). À vista disso, a teoria da norma jurídica já se compreende na própria teoria do fato jurídico; logo, uma teoria pontiana da norma jurídica não carece de constituição, mas quiçá de sobressalência.
Todavia, há 1) os fatos jurídicos que incidem [= as regras jurídicas] e 2) os fatos jurídicos que foram incididos e que, portanto, foram juridicizados, desjuridicizados ou pré-excluídos de juridicização (obs.: perceba-se a «jetividade» da regra jurídica, cuja incidência independe da vontade do aplicador, como se ela fosse uma «lei geral de causalidade normativa»). Desse jeito, a regra é tão fática quanto o fato que ela juridicizou, que ela desjuridicizou ou cuja juridicização ela pré-excluiu. Enfim, regra jurídica e fato jurídico são «consubstanciais». Em linhas grosseiras, ocorrido o suporte fático descrito na regra, ela incide infalivelmente para fazê-lo um fato jurídico; destarte, o fato jurídico ingressa no mundo jurídico pelo plano da existência, atravessa o plano da validade e atinge o plano da eficácia para só então irradiar os efeitos que lhe são próprios (embora por vezes seja possível o fato jurídico saltar diretamente do plano da existência para o plano da eficácia – ex.: atos ilícitos). A mesma gênese tem, e. g., a regra legal: completado o processo legislativo (suporte fático), incide regra constitucional (regra jurídica) que faz surgir uma regra legal (fato jurídico); uma vez ingressada no mundo jurídico pelo plano da existência, a regra legal tenderá a percorrer os planos da validade e da eficácia. Como se vê, a incidência da regra constitucional faz nascer um outro fato jurídico também incindível (a regra legal). E, por isso, a regra legal também é capaz de selar outros fatos com a juridicização, a desjuridicização ou a pré-excludência de juridicização.
5. No esquema pontiano, a regra não se realiza aplicando-se como umob-jeto, como um algo com coisidade. Muito menos se realiza aplicando-se como o produto da interpretação que osub-jeito faz de um texto de direito positivo. Sendo «jeto», a regra se realiza segundo uma lei impessoal de causalidade normativa chamada de incidência (sobre a noção de incidência: COSTA, Adriano Soares da. Teoria da incidência da norma jurídica. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2009, p. 27 e ss.; MELLO, Marcos Bernardes de. Ob. cit., p. 58 e ss.). Realiza-se sem depender da vontade humana. Em síntese, realiza-se incidindo, mesmo que jamais se venha a aplicar. Daí se vê a distinção axial entre incidência e aplicação. Na incidência (que é prius), há determinação normativo-causal; na aplicação (que é posterius), determinação humano-volitiva. Daí por que não pode haver incidência precedida de aplicação, nem incidência e aplicação simultâneas. Se se aplica a regra que incidiu, ou se não se aplica a regra que não incidiu, há justiça; se se aplica regra que não incidiu, ou se não se aplica a regra que incidiu, há injustiça. Note-se, porquanto, que em PONTES as noções de justiça e de injustiça são eminentemente formais (v., e. g., Comentários ao CPC. t. V. Rio de Janeiro: Forense, 1974, p. 146-148).
Logo, não se encaixam nesse esquema a ideia de sentença como «regra individual e concreta», como «direito objetivo de grau baixo», como lex specialis (assim: MIRANDA, Pontes de. Comentários ao CPC. t. IV. Rio de Janeiro: Forense, 1959, p. 97). Falta-lhe a necessária incidibilidade. No fundo, a referida «regra» não passa da aplicação mesma de uma regra. É aplicação justa se se aplica o que incidiu; é aplicação injusta se se aplica o que não incidiu; é inaplicação justa se não se aplica o que não incidiu; é inaplicação injusta se não se aplica o que incidiu (para um aprofundamento do tema, v. nosso Princípio não é norma – 12ª parte. <https://cutt.ly/gX0Slz9>). Como bem explica MARCOS BERNARDES DE MELLO, os conteúdos dos atos de autoridade não normativos (aí incluídas as decisões judiciais) e dos negócios jurídicos «não têm o poder de normas jurídicas, mas constituem, tão-somente, aplicações de normas incidentes a fatos concretos (suportes fáticos)» (Teoria do fato jurídico – plano da eficácia – 1ª parte. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 13).
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6. Tampouco se encaixa nesse esquema a ideia dworkiniana-alexyana de «princípio como norma». O motivo é simples: princípio de direito não tem incidibilidade. Não há como ser realizado sem o concurso da vontade humana. Não tem hipoteticidade e, por isso, não descreve conceitualmente um suporte fático sobre o qual lhe caiba incidir. Não pode movimentar-se em direção a um suporte fático, segundo uma lei normativo-causal, para fazer dele um fato jurídico. Diferentemente da regra jurídica, que é um imperativo hipotético [«Se A é, então B deve ser»], o princípio de direito é um imperativo categórico [«C deve ser»]. Desse modo, se o princípio de direito não pode incidirab anteriori, não pode ser aplicadoa posteriori.
Como já explicado à exaustão ao longo desta série de pequenos artigos, não há propriamente a aplicação direta ou per saltum de um princípio de direito. De fato, há a aplicação direta ou per saltum de uma regra jurídica implícita. Para concretizar in casu o princípio de direito, o juiz inventa ao seu próprio talante uma regra jurídica post causam, que se oculta nas entrelinhas da fundamentação decisória. Daí por que ele esquematiza uma criptonorma. Inventa-a como se fosse um microlegislador indômito e desparametrizado. Inventa sem obedecer a qualquer trilha metodológica que o leve univocamente daquele princípio àquela regra. Enfim, dentre as várias possibilidades deônticas de concretização do princípio, o juiz limita-se a escolher uma delas, que é a opção criptonormativa que mais lhe apraz. Logo após, aplica-a disfarçadamente ao caso sob a alegação de estar «aplicando» o princípio de direito. Assim sendo, há a aplicação pura e simples de uma regra paralegislativa retroeficaz, sem a precedência de qualquer incidência pontiana. A regra jurídica jamais se atirou motu proprio ao suporte fático para juridicizá-lo, desjuridicizá-lo ou pré-excluí-lo de qualquer juridicização. A regra jurídica jamais de atirou independentemente da vontade de um sujeito aplicador. Na verdade, a regra jurídica foi criada paralegislativamente para o caso e atirada ao caso ex voluntate iudicis. Trata-se de uma regra judiciogenética sem «jetividade» nem «ob-jetividade»: é sub-jetividade pura. Pois a «aplicação de princípio» é isto: produto de voluntarismo judicial nu e cru.
7. O âmbito do direito penal bem ilustra tudo isso. Ocorrido um fato descrito como suporte fático de norma incriminadora, ela incide infalivelmente, fazendo dele umcrime, umilícito penal, um fato jurídico criminoso. Ele adentra o mundo jurídico pelo plano da existência e, sobressaltando o plano da validade (uma vez que não se cogita de validade ou invalidade de ato ilícito), se aloja no plano da eficácia para nele irradiar como efeito principal o nascimento da relação jurídica de direito penal entre o Estado e o autor do crime. De um lado da relação, o Estado ostenta o poder de punir in concreto o autor do crime [posição jurídica ativa]; de outro lado, o autor do crime ostenta o correlato estado de sujeição punitiva [posição jurídica passiva]. Se se aplica a norma incriminadora que incidiu, há condenação justa; se se aplica norma penal incriminadora que não incidiu, há condenação injusta; se não se aplica a norma penal incriminadora que incidiu, há absolvição ou impunidade injusta; se não se aplica norma penal incriminadora que não incidiu, há impunidade justa.
No entanto, grassa no Brasil a «aplicação direta ou per saltum» do chamado princípio da insignificância ou da bagatela. Aqui, permite-se ao juiz concretizar o princípio criando – ao seu exclusivo talante e ex post facto – uma regra paralegislativa pré-excludente de incriminação. E, como não poderia deixar de ser, cada juiz a cria ao seu modo, mergulhando a jurisprudência sobre insignificância penal numa Torre de Babel. O juiz elabora o seu juízo pessoal de «baixa potencialidade ofensiva», define arbitrariamente os elementos do suporte fático da regra pré-excludente de incriminação e a aplica retroativamente, sem que essa aplicação haja sido antecedida de incidência (para um aprofundamento, v. nosso Princípio não é norma – 3ª parte. <https://cutt.ly/wUuNP9a>). Agindo assim, os juízes usurpam a função de definir a política criminal do País, substituindo uma política legislativa de intolerância por uma política judicial de tolerância (embora o direito penal positivo vigente atenda à proporcionalidade prevendo para crimes mais leves, p. ex., penas mais brandas, substituição da pena privativa de liberdade por pena restritiva de direito ou multa, suspensão condicional da pena, transação penal, suspensão condicional do processo, acordo de não persecução penal).
8. Nada obstante, convém sublinhar que, na generalidade dos casos, PONTES DE MIRANDA confere ao termoprincípioum sentido bastante próprio. Como não poderia deixar de ser, para ele um princípio é – à moda científico-positivista – uma lei natural expressa em fórmula, enunciado, proposição. Dada a «naturalidade do direito», ele tem princípios como têm princípios a biologia [ex.: princípio da homeostase], a química [ex.: princípio da tetravalência do carbono], a física [ex.: princípio da inércia], a astronomia [ex.: princípio de conservação do momento angular], a geologia [ex.: princípio do atualismo], a paleontologia [ex.: princípio da superposição das camadas]. É imprescindível lembrar, contudo, que os princípios do direito são antes princípios da sociologia, visto que a ciência do direito stricto sensu é uma sociologia jurídica, uma sociologia especializada, um capítulo da sociologia geral. Como princípios básicos da sociologia em geral e da sociologia jurídica em particular, PONTES menciona o princípio da dilatação dos círculos sociais e o princípio da progressiva diminuição do quantum despótico («os dois princípios evolutivos fundamentais» – cf. Introdução à política científica. Rio de Janeiro: Forense, 1983, p. 19 e ss.). Como princípios específicos do direito, há, v. g.: o princípio da coextensão do direito, da pretensão e da ação; o princípio da correlatividade dos direitos e deveres; o princípio da individualidade dos direitos.
Sem embargo, uma vez por outra PONTES fala impropriamente, por exemplo, em «princípios constitucionais» (da liberdade de pensamento, da legalidade, da separação de poderes etc.). No entanto, como já tratado ao longo desta série, princípios de direito não integram o ordenamento jurídico, não ocupam patamares hierárquicos dentro da sua estrutura escalonada e, sendo assim, não podem ser adjetivados de «constitucional», «legal», «regulamentar» etc. (v. nosso Princípio não é norma – 5ª parte. <https://cutt.ly/MUu9J1N>). Além do mais, direitos fundamentais não são «princípios de direito», mas regras jurídicas (v. nosso Princípio não é norma – 6ª parte. <https://cutt.ly/JUu93Ww>). De qualquer forma, essas dissonâncias se diluem no todo de um sistema de pensamento depurável.
9. Tudo isso põe em xeque a existência de «dois PONTES»: o PONTES do Sistema de ciência positiva do direito(em tese, um sociólogo mais ligado ao positivismo científico) e o PONTES doTratado de direito privado (em tese, um dogmático mais ligado ao positivismo lógico) (defendendo uma «descontinuidade temática e uma quebra de unidade lógico-metodológica» entre o Sistema e o Tratado: VILANOVA, Lourival. Ob. cit., p. 405-407. Contra essa defesa: FERNANDES, André Lucas. Entre Sistema e Tratado: o pensamento de Pontes de Miranda e a modelização da sociedade global. Curitiba: CRV, 2018). Uma das chaves que talvez dissolva essa crença está na teoria dos «jetos» e, por conseguinte, na centralidade da ideia causalista de incidência, que trespassa a produção pontiana de ponta e a ponta, do alfa ao ômega, de A a Z, do Sistema ao Tratado. É inegável que o PONTES mais velho do Tratado já estava impregnado de convicções que ainda faltavam ao jovem PONTES do Sistema. Pudera: entre as duas obras eclodiram muitas teorias importantes na filosofia e na ciência.
Contudo, de uma maneira geral, a ruptura com a faticidade da regra jurídica e com a incidência como causalidade normativa jamais ocorreu. A «jetividade» da regra jurídica é uma constante pontiana. É um continuum ao longo de toda a sua gigantesca produção. Entre o Sistema e o Tratado há uma longa distância temporal e indisfarçáveis dessimetrias. Mas é bastante temerário afirmar que entre as duas obras existe uma profunda ruptura lógico-metodológica e, isso posto, «dois PONTES» radicalmente diferentes entre si. Ainda que assim não seja, uma coisa é indiscutível: a ideia de «princípio como norma» não cabe no esquema de qualquer um deles. Afinal, PONTES é, em qualquer de suas duas supostas versões, um dos monumentos contra o voluntarismo subjetivista, que ele sempre combateu com ardor (v. Subjektivismus und Voluntarismus im Recht. Archiv für Rechts- und Wirtschaftsphilosophie. v. 16, n. 4, 1922, p. 522–43). É importante frisar que, a seu tempo, os inimigos eram a vontade do legislador e a «vontade da lei». Todavia, à vontade do juiz – que usa princípios para inventar seu próprio código de regras – se estendem as mesmas críticas. Talvez isso explique a ojeriza que PONTES causa nesses que hoje degradam o direito…