PRINCÍPIO NÃO É NORMA (14ª PARTE)

Ao Luiz Calixto Sandes

 

I

Tenho mostrado nessa série de pequenos artigos que o direito (em sentido objetivo) se faz essencialmente de dois elementos: as regras e os princípios. As regras jurídicas constituem os elementos normativos do direito; os princípios de direito, os elementos não normativos. Parte importante da teoria do direito consiste – ou, pelo menos, deveria consistir – em estudar como esses elementos se relacionam entre si. Em linhas bastante grosseiras, tenho explicado que: a) as regras jurídicas compõem um ordo, isto é, um conjunto sistemático, escalonado e geométrico e piramidaliforme chamado ordenamento jurídico; b) dentro desse conjunto, as relações entre as regras jurídicas obedece a uma lógica imanentesintática e hierárquico-fundacional [R-R]; c) por isso, existem regras superiores fundantes e regras inferiores fundadas; d) em contrapartida, os princípios de direito compõem um corpus, um aglomerado, um amontado, um conjunto assistemático, desordenado, ageométrico e de formato irregular e indefinido chamado principiologia jurídica; e) os princípios de direito gravitam ao redor do ordenamento jurídico como uma «nuvem de poeira cósmica», uma «nebulosa»; f) eles não se relacionam entre si, sendo cada um deles um per se stante, um «por si só», um «em si mesmo», um elemento isolado, um independente [P Ø P]; g) por esse motivo, não se pode falar em «princípios superiores fundantes», nem em «princípios inferiores fundados».

Todavia, a mim me falta investigar a relação entre as regras jurídicas e os princípios de direito que elas visam concretizar [R ? P]. Ainda me falta investigar com mais precisão a natureza dessa relação inusitada entre o ordenamento jurídico e a principiologia jurídica, entre o ordo regularum e o corpus principiorum, entre as dimensões normativa e não normativa do direito, entre os aspectos sistemático e assistemático da juridicidade. Trata-se de uma investigação ainda pendente na própria teoria do direito em geral (talvez porque essa relação teoricamente inexplorada entre as regras jurídicas e os princípios de direito seja semideterminativa, pouco mecânica e, destarte, de difícil enquadramento conceitual). Pois esse será o objeto do presente texto.

 

II

Posto que pareça óbvio, convém sempre lembrar que princípio é aquilo que principia, abre, começa, deflagra, desencadeia, desperta, detona, encabeça, enceta, estreia, funda, inaugura, incita, inicia, insere, instala, instaura, introduz, lança, origina, provoca. No âmbito jurídico não é diferente. O princípio de direito inspira ab extrain-spira desde fora, sopra para dentro do ordenamento jurídico para que ao longo dos seus escalões hierárquicos se constitua uma cadeia de regras jurídicas. Elas tendem a concretizar o princípio de direito e, por conseguinte, tendem a fazer do sistema de direito positivo uma obra moralmente mais adequada. Pois a natureza da influência do princípio de direito sobre as regras jurídicas que o concretizam é isto: uma inspiratio, um sopro para dentro, um vento que insufla, um impulso original, uma recomendação ética, uma sugestão, um sussurro, uma «insinuação moral no coração do ordenamento jurídico». Daí já se constata que a relação entre o princípio de direito e as regras jurídicas que o concretizam é bastante diferente da relação que as regras jurídicas estabelecem entre si.

Como já dito acima, 1) dentro do ordo regularum, as relações que se estabelecem entre as regras jurídicas são imanentessintáticas e hierárquico-fundacionais. Por sua vez, 2) dentro do corpus principiorum, não se estabelece qualquer tipo de relação entre os princípios de direito. No entanto, 3) entre o corpus principiorum e o ordo regularum, entre o princípio de direito e as regras jurídicas que o concretizam, são estabelecidas relações transcendentessemânticas e simpáticoinsinuativas. A descoberta desse modo relacional entre o concretizado e os seus concretizadores ajuda a desvendar um pouco mais o caráter específico que os princípios assumem dentro do direito. No final das contas, ajuda a entender que, se as regras jurídicas possuem uma natureza nômica, então os princípios de direito possuem uma natureza nomopneica (do grego νόμος + πνεῖν = «norma» + «respirar, soprar» = «referente àquilo que assopra normas, que ventila a edição de regras, que sussurra a produção de normatividade jurídica»). Nomopneia é, portanto, o nome do «peso insinuativo», da «influência simpática», da «força sugestiva», da «carga recomendatória» que os princípios de direito exercem sobre o ordenamento jurídico.

 

III

A vencibilidade do peso nomopneico permite que a adequação das regras jurídicas aos preceitos morais esteja condicionada às limitações e à vontade do legislador. O legislador pode ser menos ou mais perspicaz em assuntos de moralidade; pode ser menos ou mais submisso aos cânones de moralidade. Sendo assim, é inevitável a edição excepcional de regras jurídicas que sejam imorais em si, ou que consintam imoralidades. Afinal, a «força insinuativa» dos princípios de direito não é plenária, não é total, não é completa, não é ilimitada. Uma moral absoluta não se apodera da consciência do legislador por meio de um transe irresistível. As margens de escolha moral do legislador nunca são suspensas nem obliteradas. Os textos legislativos não são cartas psicografadas sob as ordens especiais de um superintendente moral. O legislador não é um estenógrafo que obedece a um demiurgo moral. A lei não é um ditado mecânico, nem uma escrita automática sapiencial. O legislador tem a discrição quanto ao momento, ao modo e ao grau de realização dos «princípios gerais de direito», da principiologia jurídica, do corpus principiorum. Por um lado, é preciso levar a moral em alta conta a todo tempo, porquanto existe uma pressão generalizada causada pela nomopneia dos princípios jurídicos; por outro lado, a «força insinuativa» desses princípios não governa imperialmente a conduta funcional do legislador.

Dessa maneira, algumas cadeias normativas são mais inspiradas moralmente e outras menos inspiradas. Em vista disso, existe sempre alguma assimetria moral entre as cadeias normativas. Daí por que o ordenamento jurídico, o ordo regularum, não é uma «unidade homogênea de mandamentos de moralidade pura e inteiriça». Não existe no ordenamento jurídico uma infalibilidade nem uma inerrância morais. A moral se dissemina pelos diferentes patamares hierárquicos da estrutura escalonada, mas não absorve o ordenamento jurídico, não o captura, não faz dele um mero capítulo. O direito em geral e o ordenamento jurídico em particular não são secretários da moral. Os princípios de direito [corpus principiorum iuris] se colocam como fronteira entre a moral [ordo moralis] e o ordenamento jurídico [ordo regularum iuris], separando-os entre si, mas tentando sempre sintonizar nomopneicamente o ordenamento jurídico à moral.

 

IV

Sem embargo, essa moralização do ordenamento jurídico pelo duto dos princípios de direito não se exaure no trabalho do legislador [= moralização de primeira mão]. Ela se completa no trabalho dos aplicadores, que interpretam as regras jurídicas à luz dos princípios de direito que as inspiram [= moralização de segunda mão]. Logo, a força nomopneica do corpus principiorum atua sobre as atividades jurislativa [= criação das regras jurídicas], jurisdicional [= aplicação das regras jurídicas por terceiro à relação discutida] e administrativa [= aplicação das regras jurídicas pela própria parte da relação discutida]. Entretanto, nenhum desses dois modos funcionais de aplicação pode promover a supressão da regra jurídica que desagrada totalmente o aplicador, a modificação da regra jurídica que desagrada parcialmente o aplicador, ou a criação da regra jurídica que agrada o aplicador. A nada disso se prestam os princípios de direito.

A nomopneia é unicamente uma influência jurídico-endógena na assimilação da moral pelos editores e pelos aplicadores das regras jurídicas. Não existe nessa influência tenha qualquer determinação invencível sobre os dados linguísticos escolhidos pelo legislador. Os textos das regras jurídicas são sempre o ponto de partida e o ponto de chegada de todo e qualquer processo de interpretação e aplicação. O limite da sintonização entre o ordo moralis e o ordo regularum iuris é o limite do texto normativo. A textualidade esquematizada pelo legislador modula a intensidade do campo de força nomopneica. Em outras palavras, o ordenamento jurídico é tanto mais moralizado quanto mais ele próprio permite (obs.: fala-se em «influência jurídico-endógena», visto que os princípios de direito – como não poderia deixar de ser – estão dentro do direito, mas fora do ordenamento jurídico. Eles podem ser enunciados por dispositivos de diplomas normativos (Constituição, lei etc.), ou estar subentendidos em um conjunto determinado de regras jurídicas. Uma coisa é certa: não compete ao aplicador inventar princípios de direito segundo o seu senso particular de moralidade. A interpretação moralizante das regras jurídicas se faz de maneira autógena, desde princípios que se descobrem explícitos ou implícitos nos textos de direito positivo, jamais à margem deles).

 

V

Se uma revolução moral levar o legislador a enunciar expressamente um novo princípio de direito [«A é devido»], esse câmbio per se não interferirá de imediato na vigência das regras jurídicas que até então concretizavam o velho princípio antagônico [«A não é devido»]. A sintaxe hierárquico-funcional que rege o inter-relacionamento das regras jurídicas continuará garantindo-lhes plena validade, plena pertinência ao sistema. Elas continuarão válidas simplesmente porque continuarão sendo regras jurídicas inferiores fundadas em regras jurídicas superiores. Princípio de direito – justamente porque não tem normatividade jurídica – não serve de fundamento de validade para as regras jurídicas que o concretizam. Como já visto, a relação princípio-regra não é imanente nem sintática, mas meramente transcendente e semântica. O hífen do binômio princípio-regra não é uma atadura, mas uma brisa. Contudo, a força nomopneica do novo princípio de direito haverá de atuar – pouco a pouco e desde fora – sobre o ordenamento jurídico.

No plano aplicacional, as regras jurídicas que concretizavam o velho princípio de direito passarão ser interpretadas à luz do novo princípio de direito, reduzindo-se-lhes paulatinamente o âmbito de incidência e, em consequência, a eficácia social. No plano edicional, essas regras jurídicas tenderão a ser formalmente revogadas, uma a uma, por outras esquematizadas pelo legislador sob a inspiração do princípio novo. Passo dopo passo, o «peso insinuativo», a «influência simpática», a «força sugestiva», a «carga recomendatória» do novel princípio de direito se encarregará de fazer crescer naturalmente uma nova cadeia de regras jurídicas em substituição à cadeia velha. Nada obstante, o ritmo, a velocidade, a maneira e a intensidade dessa substituição normativa obedecerão invariavelmente à exclusiva discrição do legislador. O legislador tem o controle absoluto da válvula e, desse modo, do fluxo moral que vai do corpus principiorum para o ordo regularum. A última palavra moralizadora é sempre dos representantes legislativos eleitos democraticamente pelo povo. Pudera: assim deve ser em um Estado democrático-parlamentar de direito legislado [CF/1988, artigos 1º e 5º, II].

 

VI

Essa força branda e intercalar dos princípios rompe com o dualismo coerção-incoerção e, com ele, a miopia analítica que tanta privação tem trazido ao estudo do tema. O erro dos positivistas clássicos tem sido não reconhecer essa força «quase-» ou «sub-normativa» dos princípios de direito; o erro dos pós-positivistas, exagerá-la como uma força «além-» ou «super-normativa». Ao fim e ao cabo, o auxílio justeorético para uma descrição mais acurada do fenômeno vem de onde menos se espera: das categorias dogmáticas da moderna ciência do direito internacional público. Os princípios jurídicos constituem o caso mais antigo, evidente e estranhamente ignorado de direito não normativo. Enfim, eles constituem exatamente aquilo que os internacionalistas chamam de soft law. Dessa forma, a conjugação hard law + soft law não caracteriza apenas e tão somente o direito internacional público: o direito como um todo possui essas duas dimensões. Nesse sentido, ordenamento jurídico = conjunto sistemático-geométrico de regras = direito normativo = hard law; em contraposição, principiologia jurídica = conjunto assistemático-ageométrico de princípios = direito não normativo = soft law.

Tudo isso mostra que o positivismo jurídico ainda necessita de mais um incremento de abrangência explicativa. HANS KELSEN tomou como «a» teoria do direito uma teoria da norma jurídica; a insuficiência descritiva desse modelo fez NORBERTO BOBBIO tomar como «a» teoria do direito uma teoria do ordenamento jurídico; porém, esse modelo também é insuficiente, razão por que é necessária uma ampliação que tome como «a» teoria do direito uma teoria do compósito <ordenamento jurídico + principiologia jurídica>, <normatividade + quase-normatividade>, <hard law + soft law>. Procedendo a essa urgente retificação, o positivismo jurídico pode contribuir sobremaneira para extirpar o «pós»-positivismo [rectiusnão-positivismo] e, com ele, o ativismo judicial, devolvendo às democracias liberais uma teoria jurídica muito mais adequada. Se os princípios têm feito tanto estrago, é porque o positivismo jurídico tem faltado à excelsa missão de lhes dar o correto enquadramento.

Autor

  • Eduardo José da Fonseca Costa

    Juiz Federal em Ribeirão Preto, Especialista, Mestre e Doutor pela PUC-SP, Diretor da Revista Brasileira de Direito Processual, Ex-Presidente da Associação Brasileira de Direito Processual, Membro do Instituto Pan-Americano de Direito Processual



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