Ao querido amigo lusófilo
Juarez Rogério Felix
O verbo aplicar vem do latim applicare. Compõe-se de ad [= «para, direção, aproximação, tendência, movimento»] + plicāre [= «dobrar, flexionar»]. Significa aproximar mediante dobra ou curvatura; colocar um objeto em contato com outro, de modo que eles se toquem, como acontece com os lados de uma folha de papel dobrada ou curvada. Ao se aplicar um lustra-móveis em uma mesa, coloca-se em contato uma coisa com a outra, fazendo-se com que o produto atue sobre o material e lhe imprima mais brilho. Ao se aplicar uma quantia em dinheiro numa caderneta de poupança, coloca-se em contato uma coisa com a outra, fazendo-se com que esse fundo de investimento de baixo risco atue sobre os valores depositados e lhes imprima rendimentos isentos de imposto de renda. Da mesma forma, ao se aplicar uma norma jurídica em uma situação prática, coloca-se em contato uma coisa com a outra, fazendo-se com que a norma atue sobre o caso e lhe imprima uma solução. Nesse sentido, a palavra aplicação transmite as ideias de conexão, ligação, junção, amarração, concatenação, acoplamento, união, vinculação, colagem.
Nota-se, assim, que a aplicação de uma norma jurídica é um ato jurídico em sentido estrito. É um fato jurídico em cujo cerne repousa uma vontade humana. É um evento que depende unicamente do querer do sujeito aplicador. Na aplicação, a cópula entre a norma jurídica e o caso prático não é espontânea, mas provocada, propositada, produzida, calculada, forçada, forjada. Há aí um esforço, um empenho, um labor, um manejo, uma atuação, uma destreza, uma operação, um engenho intelectual. A norma jurídica aplicada não se aplica por si mesma. Não se atira sozinha por sobre o caso prático. Não salta sponte sua dos cimos do plano normativo às profundezas do plano fático. Na verdade, é aplicada deliberadamente por alguém. Esse alguém, sujeito, que a aplica, despende energia mental. Fá-lo porque quer que a norma jurídica e o caso prático sejam entre si conectados, ligados, jungidos, amarrados, concatenados, acoplados, unidos, vinculados, colados. Em suma, quer que esse caso prático seja resolvido por essa norma jurídica e resolve-o efetivamente por meio dela, indo do querer ao agir.
Sem embargo, em termos teórico-abstratos, pode-se conceber um acoplamento entre uma norma jurídica e um caso prático que independa da vontade de qualquer sujeito e de qualquer outro fator humano biopsíquico. Pode-se conceber um acoplamento que anteceda o próprio ato de aplicação, que seja inevitável, implacável, indefectível, fatal, pré-operacional, supralaboral. Enfim, pode-se conceber um acoplamento avolitivo, naturalístico, que resulte de uma espécie de «causalidade mecânico-normativa»: ocorrido o caso prático e enquadrando-se na descrição contida na norma jurídica, ela se conecta a ele fatalmente. No Brasil, essa concepção foi desenvolvida por PONTES DE MIRANDA. A esse tipo de acoplamento o jurista alagoano deu o nome de incidência. A incidência é sempre um prius; a aplicação, um posterius. Entre a incidência e a aplicação sempre se verifica uma sucessão temporal, um fluxo de tempo progressivo, uma sequência para frente. Logo, não pode haver incidência precedida de aplicação. Tampouco pode haver incidência e aplicação simultâneas.
Além do mais, a aplicação não constitui kelsenianamente uma «norma individual e concreta», um «direito objetivo de baixo grau» que amarra a «norma geral e abstrata» ao caso prático; afinal de contas, de antemão a norma jurídica e o caso prático já se amarraram entre si pela força copulativa da incidência. À vista disso, a «norma individual e concreta» seria um inútil bis in idem. Pior: nela, estariam confundidos os seus próprios momentos de criação, incidência e a aplicação, corroendo-se a ideia de direito como um dado objetivo, externo e anterior ao juiz. Ora, a sentença não é um ato jurídico de criação de norma jurídica, mas tão apenas de aplicação. Quando da prolação da sentença, o caso prático já sofreu a incidência e, consequentemente, já foi «colorido», «marcado», «carimbado», «chancelado», «envolvido», «encapsulado» pela norma jurídica. Antes de ser aplicada pela autoridade jurisdicional ou administrativa competente, a norma jurídica incidiu; antes de incidir, a norma jurídica foi criada pela autoridade jurislativa competente. Ao aplicar a norma jurídica que incidiu, o juiz ou o administrador público corroboram in concreto o que já aconteceu in abstrato. Fazem corresponder no mundo vivenciado o que já se passou no mundo pensado.
Não obstante, em termos prático-concretos, entre a norma jurídica e o caso prático se vivencia simplesmente um acoplamento volitivo, quisto, deliberado e, portanto, uma aplicação. Só a aplicação pode ser uma experiência vivida externamente pelo homem. Ora o homem é o promotor da aplicação, ora ele é levado pelos seus sentidos a perceber a aplicação promovida por outrem. A incidência, essa se dá unicamente no mundo do pensamento [= mundo dos pensamentos intersubjetivamente compartilhados sob regime comunitário]. Daí por que a incidência e a aplicação nem sempre coincidem entre si (como nem sempre coincidem entre si o teórico e o prático, o abstrato e o concreto, o pensado e o vivenciado, o dever-ser e o ser). Se existe coincidência entre incidência e aplicação, há justiça; se não existe essa coincidência, há injustiça.
1) Se se aplica a norma jurídica que incidiu, há uma aplicação justa [ex.: condenação de culpado; execução bem sucedida contra devedor; resolução judicial de contrato incumprido; autuação fiscal de contribuinte inadimplente]; 2) se não se aplica uma norma jurídica que não incidiu, há uma justa inaplicação [ex.: absolvição de inocente; execução frustrada contra não devedor; preservação judicial de contrato cumprido; falta de autuação fiscal de contribuinte adimplente]; 3) se se aplica uma norma jurídica que não incidiu, há uma aplicação injusta [ex.: condenação de inocente; execução bem sucedida contra não devedor; resolução judicial de contrato cumprido; autuação fiscal de contribuinte adimplente]; 4) se não se aplica a norma jurídica que incidiu, há uma injusta inaplicação [ex.: absolvição de culpado; execução frustrada contra devedor; preservação judicial de contrato incumprido; falta de autuação fiscal de contribuinte inadimplente]. Como se vê, trata-se de um conceito de justiça sobremaneira imanente e formal, que não leva em consideração qualquer necessidade de adequação a uma ordem jurídica material transcendente e que, por conseguinte, nada tem de jusnaturalista. Enfim, trata-se de um conceito positivista, bem ao gosto pontiano, que redefine a noção tradicional de justiça sob uma base inusitada.
No entanto, para que a incidência e a aplicação sejam possíveis, exige-se que a norma jurídica seja bipartite: na primeira parte, ela deve «explicar» quando incide e se aplica; na segunda, deve «explicar» as consequências jurídicas decorrentes da sua própria incidência e aplicação. Na primeira parte, é preciso que a norma jurídica descreva as notas características que os casos práticos devem ter para serem resolvidos por ela; na segunda, é preciso que ela preveja a solução propriamente dita a ser dada a esses casos práticos. Em síntese, é preciso que a norma jurídica seja uma regra. Ela deve ter uma estrutura hipotético-condicional. Deve ser uma proposição deôntica do tipo «Se A, então B deve ser». Sem hipoteticidade nem consequencialidade, não há aplicabilidade; sem aplicabilidade, não há normatividade propriamente jurídica. É possível cogitar-se de norma que não seja regra, que não tenha estrutura hipotético-condicional, que seja uma proposição categórica do tipo «C deve ser», que não tenha hipoteticidade-consequencialidade e que, portanto, não tenha aplicabilidade. Mas de norma propriamente jurídica não se trata. Quando muito, é norma extrajurídica.
A norma com pretensão de juridicidade tem sentido apenas se é incidível e aplicável para resolver os problemas da convivência social, ordenando-a. Ou seja, a normatividade jurídica só tem sentido se é regra. Isso não significa que o direito se faça somente de regras. Os princípios também são elementos do direito. O jurista dogmático há de estudar tanto as regras jurídicas quanto os princípios de direito. Contudo, os princípios são elementos inincidíveis e, por conseguinte, inaplicáveis. São «quase normas», «normas a caminho», «normas em potencial», «modos privativos de normatividade». Afinal, são imperativos categóricos, aos quais faltam hipoteticidade e consequencialidade. Daí por que se pode afirmar que o direito possui uma parte incidível-aplicável [= conjunto sistemático das regras jurídicas = ordenamento jurídico] e uma parte inincidível-inaplicável [= conjunto assistemático dos princípios jurídicos = principiologia jurídica]. Por via de consequência, pode-se dizer que o direito possui uma parte normativa e uma parte não normativa. Logo, posto que o direito compreenda o ordenamento jurídico, não se reduz a ele.
Por que então determinadas correntes teóricas tentam a todo custo convencer que os princípios de direito são normas jurídicas? Ora, justamente porque tentam convencer a todo preço que os princípios de direito têm um atributo que lhes é impossível: a incidibilidade–aplicabilidade direta ou per saltum. Tentam convencer que os princípios podem resolver as situações práticas, conquanto eles não possam prevê-las por falta de hipoteticidade, nem possam dar-lhes uma solução por falta de consequencialidade. Na verdade, o que está por trás disso tudo é a tentativa de libertar o juiz dos grilhões das regras existentes ante causam. É a tentativa de livrar o juiz do conjunto sistemático de que se faz o ordenamento jurídico, permitindo-lhe criar post causam a própria regra jurídica que aplicará, ainda que inspirado em um princípio de direito. É a tentativa de fazer com que o direito seja menos um dado objetivo externo imposto pelo legislador que um construto subjetivo interno exposto pelo juiz. É a tentativa de tornar incidência e aplicação sinônimas, fazendo com que a incidência da norma jurídica dependa exclusivamente do aplicador, que ele a faça «incidir com as próprias mãos». No fim das contas, é a tentativa de salvar o juiz da «opressão legislativa», substituindo soluções omnilaterais democráticas aprovadas no parlamento ex ante facto por soluções unilaterais aristocráticas inventadas em gabinete ex post facto.
Sendo assim, a expressão «aplicar princípios» é uma mentira deslavada. Princípios são inaplicáveis ex vi naturæ suæ. É impossível colocar um princípio de direito em contato direto com um caso prático. É impossível fazer com que um princípio de direito e um caso prático se toquem sem que se lhes interponha uma regra jurídica mediadora. É impossível que um princípio de direito ofereça uma solução unívoca para o caso prático, sem que o juiz esquematize uma solução pessoal a partir de uma combinação entre inúmeras hipóteses de incidência e consequências jurídicas, todas igualmente possíveis entre si. De uma vez por todas, a expressão «aplicar princípios» nada mais é do que uma fórmula cínica para disfarçar uma atividade criativa paralegislativa do juiz. É uma nuvem de fumaça.
É inegável a importância dos princípios no processo de interpretação das regras. Pudera: se os princípios são concretizados pelas regras, eles são um «norte hermenêutico» para se descobrir a quê elas se destinam. Nesse sentido, os princípios servem de respaldo material ao método de interpretação teleológica. Entretanto, ser importante não faz do princípio norma. Outrossim, não ser norma não faz do princípio desimportante. Dignidade jurídico-interpretativa não equivale a dignidade jurídico-normativa. O erro dos positivistas clássicos é subdimensionar a importância dos princípios, ignorando-os como elementos não normativos do direito, tomando o direito como um sistema absolutamente fechado e, desse modo, reduzindo o direito ao ordenamento jurídico; por sua vez, o erro dos pós-positivistas é superdimensionar a importância dos princípios, equiparando-os a elementos normativos do direito, tomando o direito como um sistema plenamente aberto à moral e, no limite, dissolvendo o direito na própria moral.
O acerto está deveras entre um extremo e outro: os princípios têm importância «apenas» interpretativo-integrativo e, por isso, não incidem nem se aplicam. Situam-se entre o ordenamento jurídico e a moral e, dessa maneira, ajudam a fechar eticamente o sistema onde as regras ainda não o fecharam (corrente de pensamento que se pode chamar de neopositivismo ou positivismo retificado, que não se confunde com o positivismo inclusivo, visto que os princípios estão dentro do direito, não fora). Destarte, os princípios impedem que o direito rompa radicalmente com a moral, embora não possam evitar imoralidades pontuais contidas em regras expressas decorrentes de escolhas discricionárias legislativas. HANS KELSEN sempre defendeu que o objeto específico da ciência do direito stricto sensu é a norma [rectius: a regra]. Todavia, na realidade, esse objeto é mais espesso: ele é formado por regras e princípios. Noutras palavras, o direito não é somente as regras, mas é o compósito dual regras + princípios. A regra é o objeto normativo (que integra um conjunto sistemático e piramidaliforme chamado ordenamento jurídico); o princípio, o objeto extranormativo (que integra um conjunto assistemático e ageométrico chamado principiologia jurídica). Insista-se, porém: a enorme importância dos princípios para o cientista dogmático do direito não os transforma em normas jurídicas, não lhes confere incidibilidade-aplicabilidade.