PRAZO PARA O DIREITO DE RETIRADA

10, 60 OU 70 DIAS?

Prazo para direito de retirada

Dando continuidade à discussão do espinhoso tema da dissolução parcial de sociedade tratado em nossa última coluna[1], outro ponto a ser debatido é a interpretação que hoje se dá ao art. 600, IV, do CPC, e os efeitos do não atendimento ao prazo ali estipulado quando do ajuizamento de ação de dissolução parcial de sociedade pelo sócio dissidente.

Diz o referido art. 600, IV, do CPC, que a ação de dissolução parcial pode ser proposta “pelo sócio que exerceu o direito de retirada ou recesso, se não tiver sido providenciada, pelos demais sócios, a alteração contratual consensual formalizando o desligamento, depois de transcorridos 10 (dez) dias do exercício do direito”. Em outras palavras, seja no caso de exercício do direito de retirada – saída imotivada do sócio –, seja no caso de exercício do direito de recesso – saída motivada pela discordância com relação a determinada deliberação societária –, o CPC dá ao sócio dissidente a legitimidade ativa para a propositura da ação de dissolução parcial a fim de que obtenha provimento judicial com efeito desconstitutivo (ou constitutivo negativo) para romper seu vínculo com a sociedade caso assim não tenham procedido a sociedade e os sócios remanescentes no prazo legal de dez dias após o exercício de tal direito.

Por sua vez, o art. 1.029 do Código Civil – que, como se sabe, também regula a matéria –, prevê que “além dos casos previstos na lei ou no contrato, qualquer sócio pode retirar-se da sociedade; se de prazo indeterminado, mediante notificação aos demais sócios, com antecedência mínima de sessenta dias; se de prazo determinado, provando judicialmente justa causa.

Embora a redação de tais dispositivos pareça clara e direta, fato é que permite o surgimento de alguns questionamentos.

O primeiro deles é se, de fato, teria o sócio dissidente verdadeiro interesse processual[2] na propositura de ação de dissolução parcial de sociedade após já ter notificado a sociedade e os demais sócios de sua saída, nos termos do art. 1.029 do Código Civil.

Isso se dá porque, como bem explicam Erasmo Valladão e Marcelo von Adamek, “o sócio que exerceu seu direito de retirada não precisa – ou não precisaria – valer-se, por definição, de qualquer medida dissolutória” porque o seu vínculo social poderia vir a ser “extinto por efeito do exercício do direito potestativo de autodesvinculação (exercitável mediante declaração unilateral e receptícia de vontade)”, bastando ao sócio “averbar a notificação de retirada ou recesso no registro competente (CC, art. 1.032)[3]. No mesmo sentido é o magistério de Nelson Nery Junior e Rosa Maria de Andrade Nery: “a denúncia [do exercício da retirada ou recesso] diferentemente da regra que vigia anteriormente, opera efeito de rompimento do vínculo societário, dispensando posterior ação judicial para por termo à sociedade”. Ou seja, “a denúncia opera os efeitos do rompimento do liame societário por si[4].

Nesse contexto, se a mera denúncia do exercício do direito de retirada ou recesso tem o condão de, per se, romper o liame societário, emerge inegável dúvida sobre a necessidade ou utilidade da propositura de uma ação de dissolução parcial de sociedade que não vise exclusivamente apurar haveres, ou seja, que tenha por objetivo também a tutela desconstitutiva (ou constitutiva negativa) do vínculo societário, que é uma eficácia considerada natural da primeira fase de uma ação de dissolução parcial tradicional ou bifásica. Questionável, assim, o interesse processual do sócio que, após notificar a sua saída, propõe a ação de dissolução parcial visando o rompimento de seu vínculo com a sociedade.

Seja como for, até pela previsão específica e clara do art. 600, IV, do CPC, não conhecemos precedentes judiciais que tenham extinguido ações de dissolução parcial nesse cenário em razão da ausência de interesse processual.

Mas não é esse o único ponto de embate envolvendo a interpretação do art. 600, IV, do CPC. Há, ainda, a questão envolvendo o termo a quo da contagem do prazo de dez dias a que alude o inciso, principalmente no caso do exercício do direito de retirada em sociedade com prazo indeterminado de duração. Nesse particular, o problema principal é o desfecho que teria a propositura de uma ação de dissolução parcial anteriormente ao esgotamento de tal prazo.

Primeiramente quanto ao mencionado termo a quo, entendemos que a melhor interpretação a ser dada ao inciso é a de que o pleno “exercício do direito de retirada” se dá no sexagésimo dia após a entrega da denúncia do exercício de tal direito. Isso porque o caput do art. 1.029 do Código Civil prevê que a retirada do sócio deve ser informada “com antecedência mínima de sessenta dias” (destaques nossos) e o art. 605, IV, do CPC, impõe que, nos casos de retirada imotivada, a data de resolução (de parte) da sociedade será “o sexagésimo dia seguinte ao do recebimento, pela sociedade, da notificação do sócio retirante”, sendo que, até esse momento, faz jus o sócio retirante à sua participação nos lucros, aos juros sobre capital próprio e, se o caso, até mesmo à remuneração que usualmente percebe na qualidade de administrador, nos termos do art. 608, caput, do CPC.

Destarte, o prazo de dez dias do art. 600, IV, do CPC, nos casos de exercício de direito de retirada imotivada em sociedades com prazo de duração indeterminado, tem como termo a quo sessenta dias após à entrega da notificação de tal exercício aos demais sócios da empresa.

É dizer, não estariam presentes as condições da ação se ajuizada a dissolução parcial com pretensão desconstitutiva do vínculo societário antes de 70 (setenta) dias da notificação dos demais sócios, uma vez que, no momento de sua propositura, o sócio retirante não possuiria interesse processual para exercer sua pretensão em Juízo.

 

No ponto, é importantíssimo destacar que essa discussão está longe de ser estéril, pois há no Judiciário diversos exemplos de demandas ajuizadas por sócios dissidentes no sexagésimo primeiro dia posteriormente à entrega da notificação de sua saída, quando, em nossa visão, está ainda ausente seu interesse processual para a propositura da demanda.

Sobre o tema, em nossa avaliação, de forma até mais evidente do que o primeiro questionamento descrito, essa hipótese deveria ensejar a extinção sem julgamento de mérito da ação de dissolução parcial, nos termos do art. 485, VI, do CPC, com a consequente condenação do sócio-autor ao pagamento das custas e honorários de sucumbência, que podem inclusive vir ser vultosos a depender do valor das quotas em discussão.

Todavia, também essa tese não parece encontrar guarida no Poder Judiciário, pois ou bem a questão não é sequer debatida ou, ainda, relativiza-se a importância do que dispõem os arts. 1.029 do Código Civil e 600, IV, do CPC, para se consignar que, independentemente de notificação prévia, a mera propositura da ação já serviria para demonstrar que o sócio retirante não mais possui a intenção de permanecer na sociedade e que a ação de dissolução pode ter seu mérito analisado mesmo que não tenha sido precedida de qualquer notificação do sócio. Confira-se, exemplificativamente, julgados provenientes dos Tribunais de Justiça dos Estados de São Paulo e do Paraná nesse exato sentido:

Na espécie, embora seja inequívoca nos autos a quebra da affectio societatis, há controvérsia quanto à notificação premonitória do exercício do direito de retirada a que alude o art. 1029 do CC1 e o art. 600, IV, do NCPC, já que os agravantes afirmam não terem sido notificados da intenção da agravada em se retirar da sociedade e esta, ao responder ao recurso, juntou aviso de recebimento datado de 17/08/2017 (mov. 17.1-TJ), ao passo que a suposta notificação acostada à inicial está com data posterior ao AR, 21/08/2017 (mov. 1.3). Conquanto eventual ausência da notificação, a meu sentir, não deva acarretar a extinção do processo, tendo em vista que a própria propositura da ação parece ser hábil a demonstração do desinteresse da agravante na sua permanência na sociedade, tal fato é relevante para fins de fixação do termo legal de responsabilização da sócia retirante, estabelecido no art. 1032 do CC c/c art. 605, II, do NCPC: (…)” (Tribunal de Justiça do Estado do Paraná; Agravo de Instrumento nº 0012244-13.2018.8.16.0000; Relator Desembargador Fernando Paulino da Silva Wolff Filho, 17ª Câmara Cível, Data de Julgamento: 26/07/2018 – destaques nossos)

Dissolução de sociedade. Apuração de haveres. Preliminar. Falta de interesse processual não configurada. Ausência da notificação dos sócios remanescentes que não impede que se exerça o direito de retirada da sociedade. Ato suprido com a citação. Ilegitimidade ativa afastada pelo mesmo fundamento. Embora não esteja elencado no rol do artigo 600, CPC/15, o sócio que pretende se retirar tem legitimidade para a propositura da demanda, mesmo sem a notificação prévia e a omissão dos demais sócios prevista no art. 600, IV, CPC/15. Mérito. Dissolução da sociedade. Data da citação que deve servir de parâmetro para suprir a notificação na fixação da data-base da apuração de haveres da sociedade. Apuração de haveres. Participação do autor que deve ser apurada nos moldes dos arts. 1.031, caput, do CC e 606, caput, do CPC. Metodologia. Balanço especial de determinação. Proximidade do valor real da sociedade. Honorários sucumbenciais. Art. 603, §1º, CPC/15 que impõe o afastamento da condenação em honorários caso haja concordância com a dissolução. Inocorrência no caso. Apelantes que trouxeram preliminares e pretendiam a extinção do feito sem resolução do mérito. Distribuição proporcional. Inteligência do art. 86, CPC15. Majoração com fundamento no art. 85, §11º, CPC/15. Decisão mantida. Recurso improvido.”. (Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo; Apelação Cível 1126316-42.2017.8.26.0100, Relator Hamid Bdine, 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, Data do Julgamento: 17/12/2018; Data de Registro: 18/12/2018 – destaques nossos)

Consoante se pode observar, tais ementas revelam que o Poder Judiciário, em diversas oportunidades[5], acaba por deixar de lado as regras expressas da dissolução parcial de sociedade – que, nesse caso, impõem, inexoravelmente, a necessidade de notificação prévia do exercício do direito de recesso ou retirada pelo sócio dissidente e a observância dos prazos a que aludem os art. 1.029 do Código Civil e 600, IV, do CPC – e passa a admitir a relativização do processo em prol de uma suposta celeridade ou de um instrumentalismo que, com a devida vênia, não parecem encontrar guarida no arquétipo constitucional do processo civil brasileiro[6]. De fato, se processo é sinônimo de garantia – e garantia fundamental à preservação dos direitos dos indivíduos frente ao arbítrio do Estado[7] –, sua relativização para o atingimento de quaisquer fins é, ao fim e ao cabo, um ato arbitrário e lesivo ao Estado Democrático de Direito.

Portanto, respondendo à questão formulada no título desta coluna, a melhor interpretação que deve ser dada ao art. 600, IV, do CPC, especialmente quando lido em consonância com o que dispõem o art. 1.029 do Código Civil e 605, IV, e 608, caput, do CPC, é a de que o sócio que desejar exercer o seu direito de retirada – em sociedade com prazo indeterminado de duração e mediante ação de dissolução parcial em que se veicule pretensão desconstitutiva –, deverá notificar os demais sócios nesse sentido com 60 (sessenta) dias de antecedência e, após decorrido esse prazo, aguardar ainda adicionais 10 (dez) dias para que possa propor eventual medida judicial, sob pena de, carecendo-lhe interesse processual para tanto, ter sua ação extinta sem julgamento de mérito nos termos do art. 485, VI, do CPC.

[1] Cf. https://www.contraditor.com/o-fluxo-de-caixa-descontado-apuracao-de-haveres/

[2] Como ensina Nelson Nery Junior, interesse processual é a condição da ação que “se consubstancia na necessidade de o autor viar ajuízo e na uti;lidade que o provimento jurisdicional poderá lhe proporcionar”. In: NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa M. A. Código de Processo Civil Comentado. São Paulo: RT, 2020, 19ª ed., v. digital RT Proview, RL-1-4.

[3] FRANÇA, Erasmo Valladão Azevedo e Novais; ADAMEK, Marcelo Vieira von. Direito Processual Societário – Comentários Breves ao CPC/2015. São Paulo: Malheiros, 2021, 2ª ed., pp. 47-48.

[4] NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa M. A. Código Civil Comentado. São Paulo: RT, 2019, 17ª ed., v. digital RT Proview, RL-2.142.

[5] Cf., também a título de outro exemplo: TESCARI, Renato Mantoanelli. Apuração de Haveres: o que (não) fazer. In: Portal Contraditor, Coluna de 02/09/2021, disponível em: https://www.contraditor.com/o-fluxo-de-caixa-descontado-apuracao-de-haveres/, acesso em 15/09/2021.

[6] Sobre a necessidade de debatermos (e superarmos, já com certo atraso) o deletério mito da instrumentalidade do processo, cf. CARVALHO FILHO, Antonio. Precisamos falar sobre o instrumentalismo processual. In: Empório do Direito, Coluna ABDPro nº 2, de 11/10/2017, disponível em: https://emporiododireito.com.br/leitura/abdpro-2-precisamos-falar-sobre-o-instrumentalismo-processual-por-antonio-carvalho-filho, acesso em 15/09/2021.

[7] Confira-se COSTA, Eduardo Jose Fonseca da. A Garantística Processual e a “tutela do direito material”. In: Contraditor, Coluna Garantismo Processual, 30/07/2021. Disponível em https://www.contraditor.com/96-a-garantistica-processual-e-a-tutela-do-direito-material/, acesso em 03/08/2021.

Autor

  • Mestre em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC/SP. Bacharel em Direito pela PUC/SP. Professor assistente na cadeira de Direito Processual Civil na PUC/SP. Membro da Associação Brasileira de Direito Processual - ABDPro. Advogado com atuação no contencioso judicial e em arbitragem.



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