Em outra oportunidade, abordou-se a importância de conceber a figura do Processo a partir de bases democráticas, na expectativa de que importantes dogmas arraigados na cultura jurídica sejam superados.[1] Apontou-se que um dos importantes aspectos que padece frente o ainda existente raciocínio sobre uma centralidade de poder decisório: a legitimidade.
Em uma provocação para o debate, o que torna as decisões legítimas a partir da estruturação de um Estado Democrático de Direito: poder ou participação? É o que se pretende esmiuçar no presente ensaio.
Em uma perspectiva democrática, a legitimidade é eixo essencial para se entender como as decisões são elaboradas e como se operam seus efeitos perante a sociedade. Torna-se aspecto importante para a tentativa de superação de ideias que permitem a propagação do ativismo judicial, em que a legitimidade decisória é fruto de um agir soberano ou de posições privilegiadas de sapiência do Estado-juiz.[2] Afinal, não incomum é a visão de que o anseio social por pacificação e resolução de conflitos recaia exclusivamente sobre a figura desse Estado-juiz, como único capaz de promover de forma isenta tais objetivos.[3]
De certo modo, tal visão parte de concepções tradicionalíssimas do direito processual, em que o Estado-juiz atua em substituição das partes para canalizar o litígio e impor a vontade concreta da lei[4] ou promover a justa composição da lide[5].
Não se exclui relevância de tais posições, fundamentais para consolidar a importância do Direito Processual em sua relação com o direito material. No entanto, não se pode olvidar que sua construção remonta às primeiras décadas do século XX, época em que vigia outro paradigma social. Nesse contexto, a doutrina ostentava importante papel de incrementar a força do Estado a partir da função jurisdicional, fortalecendo o monopólio da força judicial como exercício pleno de seu poder[6].
Contudo, em perspectiva democrática, a tradicional noção de substitutividade (ou subordinação) dos sujeitos deve ser sucedida por uma noção de participação, como garantia da almejada legitimidade decisória.[7]
Afinal, a perspectiva democrática permite a autodeterminação dos cidadãos, não para excluir a importância de um poder ou entidade que atue de modo imparcial, mas para viabilizar igual importância à influência dos sujeitos parciais nos conteúdos decisórios. Como consequência de se resguardar o agir democrático em todas as arenas decisórias[8], torna viável alocar o Processo como eixo garantidor da participação ampla e determinante para a garantia da legitimidade.
Partindo-se das cogitações de Habermas, o agir dos cidadãos e a noção de soberania popular em sua teoria discursiva, despontam como fundamento importante do próprio poder político do Estado. Esse fundamento permitirá a formação estruturada de opinião e vontade dos cidadãos, discursivamente, estando legitimada a partir de um procedimento democrático que dá tratamento integralmente racional às questões políticas.
Nesse sentido, a garantia de um sistema de direitos que permita a participação ampla dos cidadãos na arena de debates públicos do Estado, como deve ser pensada e estruturada em seu cerne a atividade jurisdicional, objetiva equilibrar a relação entre autonomia pública e autonomia privada, sobretudo a partir da garantia de soberania aos cidadãos perante a potência do poder do Estado.[9] Em outras palavras, sujeitos imparciais, como espera-se do Estado-juiz, e sujeitos parciais, como são as partes, atuando de forma equilibrada em torno do objetivo comum de uma decisão legítima.
A democratização das decisões nas arenas públicas, lastreada na participação do cidadão naquilo que lhe afeta, dá ao Processo tanto a capacidade de viabilizar tal participação quanto de coibir o arbítrio por qualquer dos envolvidos na construção decisória. Portanto, a garantia de legitimidade democrática considera uma estruturação dialógica das decisões a partir do agir de todos os sujeitos processuais, com a assunção de responsabilidades mútuas, em caráter policêntrico, e do trabalho colaborativo e comparticipativo para a estruturação no plano técnico e substancial das decisões.
Para tanto, o contraditório, tal como enxergado por Fazzalari como estruturante da noção de Processo,[10] adota aspiração renovada, ao ser destacado como forma de tonar o diálogo comparticipativo e policêntrico muito além da mera estruturação técnica para a construção de decisões. Nessa toada, o contraditório cria o elo definitivo entre a concepção de uma comunidade de trabalho democrática e o rompimento com a centralidade do poder em uma única figura ou polo, permitindo que a discursividade permeie a atividade dos sujeitos processuais em torno do objetivo de construir, a cada decisão, conteúdos que reforcem ainda mais a esperada legitimidade democrática em bases processuais.
Dentro de uma perspectiva democrática, em que passa a ser enxergado o Processo “agora constitucionalizado, como garantia constitucional de participação dos interessados na formação do provimento e como viabilizador de direitos fundamentais”[11], o contraditório se converte de igual modo em garantia a todos os processos na esfera pública, não apenas por sua previsão constitucional a partir da CR/1988[12], mas pela capacidade de propiciar às partes o mesmo privilegio cognitivo, outrora represado na figura do decisor, mas que passa a ser identificado como garantia de influência e não surpresa à atividade jurisdicional.
Em outras palavras, o contraditório enquanto garantia de influência[13], tornaria necessário o dever de consulta do decisor imparcial aos sujeitos parciais, fomentando o debate preventivo como condição necessária à legitimidade dos fundamentos de uma futura decisão.[14] De igual modo, o contraditório visto como garantia de não surpresa[15], faz com que o fomento ao debate prévio das partes em conflito, instigado pelo decisor imparcial, garanta o conhecimento prévio a todos os sujeitos processuais acerca do conteúdo decisório, ainda que se trate de matérias a que o próprio decisor poderia se manifestar de ofício.
A consequência prática direta poderia ser observada na atuação do decisor, ao qual não estaria permitido apresentar qualquer conteúdo decisório que ocorra fora dos limites marcados pelo debate prévio das partes, de seus argumentos e provas apresentadas na contenda.[16] E, portanto, a legitimidade decisória deixaria de permear à investidura de poderes, mas da atuação das partes em amplo debate processual.
A partir da ampla discursividade garantida pelo debate processual, como baliza prévia necessária à todos os atos praticados na atividade jurisdicional devidamente processualizada, constitui-se um verdadeiro compromisso argumentativo[17] entre os sujeitos processuais, permitindo que qualquer argumento ou fato que não esteja previamente ajustado no ambiente dialógico criado por estes sujeitos processuais, se converta em totalmente nulo e estranho à própria atividade decisória.
Pensar a legitimidade a partir do Processo pode tornar mais palpável a existência de decisões que sejam mais bem fundamentadas e com menor risco de questionamento, na medida em que seriam gestadas pela participação de todos os sujeitos envolvidos. Além disso, garante que fatores alheios ao debate processual deixem de compor o conteúdo decisório, vedando que individualidades ou questões de cunho sócio-político-ideológico maculem a legitimidade advinda da comparticipação entre os sujeitos processuais.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.Disponível: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso: 20. Set. 2021.
BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Instrumentalismo e Garantismo: visões opostas do fenômeno processual? In: BEDAQUE, José Roberto dos Santos; CINTRA, Lia Carolina Batista; EID, Elie Pierre (Coords.) Garantismo Processual. Garantias Constitucionais aplicadas ao Processo. Brasília: Gazeta Jurídica, 2016.
CALAMANDREI, Piero. Estudos de Direito Processual na Itália. Campinas: LZN, 2003.
CHIOVENDA, Giuseppe. Instituições de Direito Processual Civil. vol. 2. 2ª. ed. Campinas: Bookseller, 2000.
FAZZALARI, Elio. Instituições de Direito Processual. Campinas: Bookseller, 2006.
HABERMAS, Jürgen. Agir Comunicativo e Razão Descentralizada. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2002.
HABERMAS, Jürgen. Facticidad y Validez. 4ª. ed. Madrid. Trotta, 2005.
LEAL, André Cordeiro. Instrumentalidade do Processo em Crise. Belo Horizonte: Mandamentos, 2008.
NUNES, Dierle. Reformas Processuais: Estatalismo ou Privatismo? Por um modelo comparticipativo. Revista Brasileira de Direito Processual, n. 90, abr./jun. 2015. pp. 145-152.
NUNES, Dierle; BAHIA, Alexandre; HORTA, André; SILVA, Natanael Lud. O Contraditório como garantia de Influência e não-surpresa no CPC-2015. In: Normas Fundamentais. Salvador: Juspodivm, 2016.
NUNES, Dierle; LUD, Natanael; PEDRON, Flávio Quinaud. Desconfiando da Imparcialidade dos Sujeitos Processuais. 1ª. ed. Salvador: Juspodivm, 2018.
PEDRON, Flávio Quinaud; OMMATI, José Emílio Medauar. Teoria do Direito Contemporânea. 2ª. ed. Belo Horizonte: Conhecimento, 2020.
TROCKER, Nicolò. Processo Civille e Constituzione: problemi di diritto tedesco e italiano. Milano: Giuffré, 1974.
[1] Confira aqui: https://www.contraditor.com/por-que-falar-sobre-democratizacao-nodo-processo/ .
[2] BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Instrumentalismo e Garantismo: visões opostas do fenômeno processual? In: BEDAQUE, José Roberto dos Santos; CINTRA, Lia Carolina Batista; EID, Elie Pierre (Coords.) Garantismo Processual. Garantias Constitucionais aplicadas ao Processo. Brasília: Gazeta Jurídica, 2016, p. 21-22.
[3] A respeito, o texto do colega Luis Gustavo Mundim também nesta coluna, sobre crítica acerca do “juiz antena”. Confira aqui: https://www.contraditor.com/a-impossibilidade-do-juiz-antena/ .
[4] Cf. CHIOVENDA, Giuseppe. Instituições de Direito Processual Civil. vol. 2. 2ª. ed. Campinas: Bookseller, 2000, p. 09.
[5] Cf. CARNELUTTI, Francesco. Sistema de Direito Processual Civil. vol. 1. São Paulo: Classic Book, 2000, p. 224-225.
[6] O apontamento também é feito por Calamandrei, ao destacar que “[…] o aspecto mais patológico e mais pavoroso da decomposição da justiça, tal como se viu na Alemanha nazista, foi, pelo contrário, precisamente a ausência de uma revolução social, que de algum modo justificasse esta temporária e indiscriminada redução do direito à política: na ditadura hitleriana, com efeito (o mesmo que, por pálida imitação, na fascista), a abolição da estrutura racional do processo e de todas as garantias constitucionais da justiça, não teve a finalidade de abrir passagem a um novo sistema econômico e a uma nova legislação social, mas sim somente à finalidade de pôr também o direito privado à incontrolada mercê do Führer, e de transformar a magistratura numa polícia de partido prosternado a seus mandatos. Tratou-se, pois, também no campo do processo, de uma involução para formas de absolutismo e de escravidão que pareciam superadas há séculos: a justiça tornou a ser, como antigamente; monarquias despóticas, função pessoal do tirano, e reaparecem finalmente, na cínica ingenuidade de um ministro nazista, as lettres de justice, mediante as quais sob o ancien régime o soberano “sugeria” aos juízes o conteúdo de suas sentenças”. (Grifos do original.) (CALAMANDREI, Piero. Estudos de Direito Processual na Itália. Campinas: LZN, 2003, p. 06-07); Em sentido semelhante, aponta André Cordeiro Leal: “É justamente o ‘poder’ estatal que Chiovenda chama de jurisdição. Jurisdição é, portanto, poder e atividade do Estado; é objetivo dos órgãos judicantes afirmar e atuar aquela vontade concreta da lei que “eles estimam existente como vontade concreta, à vista dos fatos que consideram como existentes.” (Grifos do original.) (LEAL, André Cordeiro. Instrumentalidade do Processo em Crise. Belo Horizonte: Mandamentos, 2008, p. 75.)
[7] HABERMAS, Jürgen. Facticidad y Validez. 4ª. ed. Madrid. Trotta, 2005, p. 195-196.
[8] HABERMAS, Jürgen. Facticidad y Validez. 4ª. ed. Madrid. Trotta, 2005, p. 169.
[9] HABERMAS, Jürgen. Facticidad y Validez. 4ª. ed. Madrid: Trotta, 2005, p. 238.
[10] FAZZALARI, Elio. Instituições de Direito Processual. Campinas: Bookseller, 2006, p. 138.
[11] NUNES, Dierle. Reformas Processuais: Estatalismo ou Privatismo? Por um modelo comparticipativo. Revista Brasileira de Direito Processual, n. 90, abr./jun. 2015, p. 149.
[12] CR/1988. Art. 5. […]
LV – aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes;
Art. 247. As leis previstas no inciso III do § 1º do art. 41 e no § 7º do art. 169 estabelecerão critérios e garantias especiais para a perda do cargo pelo servidor público estável que, em decorrência das atribuições de seu cargo efetivo, desenvolva atividades exclusivas de Estado.
Parágrafo único. Na hipótese de insuficiência de desempenho, a perda do cargo somente ocorrerá mediante processo administrativo em que lhe sejam assegurados o contraditório e a ampla defesa.
[13] Cf. TROCKER, Nicolò. Processo Civille e Constituzione: problemi di diritto tedesco e italiano. Milano: Giuffré, 1974, 370-371.
[14] NUNES, Dierle; BAHIA, Alexandre; HORTA, André; SILVA, Natanael Lud. O Contraditório como garantia de Influência e não-surpresa no CPC-2015. In: Normas Fundamentais. Salvador: Juspodivm, 2016, p. 228.
[15] Cf. TROCKER, Nicolò. Processo Civille e Constituzione: problemi di diritto tedesco e italiano. Milano: Giuffré, 1974, p. 657-659.
[16] NUNES, Dierle; BAHIA, Alexandre; HORTA, André; SILVA, Natanael Lud. O Contraditório como garantia de Influência e não-surpresa no CPC-2015. In: Normas Fundamentais. Salvador: Juspodivm, 2016, p. 232.
[17] A ideia de um compromisso argumentativo é trabalhada pelo filósofo norte-americano Robert Brandom, que elaborou uma noção de inferencionismo para a validade de um compromisso entre enunciações entre partes distintas em uma lógica argumentativa. A partir dessa estruturação, o debate argumentativo estaria preso aos limites estabelecidos pelos próprios debatedores, de modo que o argumento antecedente seria pressuposto do argumento posterior, não sendo possível a adição de elementos alheios à este jogo de linguagem marcado e demarcado pela troca de razões mútuas. É interessante observar que a proposta de Brandom tem aproximação ao que se estabelece como marco para a presente pesquisa, tanto no que tange à estruturação comparticipativa e policêntrica, quanto à dimensão discursiva estabelecida por Habermas, além da própria posição de Dworkin relativa à necessidade de coerência e integridade do direito na aplicação de regras e princípios. Para uma análise mais aprofundada de tais temáticas, sobretudo relacionadas à atividade jurisdicional, confira-se: PEDRON, Flávio Quinaud; OMMATI, José Emílio Medauar. Teoria do Direito Contemporânea. 2ª. ed. Belo Horizonte: Conhecimento, 2020, p. 219-237; NUNES, Dierle; LUD, Natanael; PEDRON, Flávio Quinaud. Desconfiando da Imparcialidade dos Sujeitos Processuais. 1ª. ed. Salvador: Juspodivm, 2018, p. 151-168.
Importante destacar, de igual forma, as críticas feitas por Habermas à Brandom, no sentido de que o compromisso argumentativo indicado por Brandom não teria o condão de conduzir a um entendimento entre os debatedores, mas uma eterna troca de inferências e fundamentações, sem um objetivo comum de razoabilidade. Confira-se: HABERMAS, Jürgen. Agir Comunicativo e Razão Descentralizada. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2002, 101-106.