PEDAGOGIA JUDICIAL E A MULTA DO ARTIGO 334, §8º, DO CPC

É cediço que o Código de Processo Civil buscou ampliar ainda mais os movimentos em prol da resolução consensual de litígios que, desde sua Exposição de Motivos, já previa a “ênfase à possibilidade de as partes porem fim ao conflito pela via da mediação ou da conciliação”, além das próprias previsões existentes dentro de diferentes artigos do código, a exemplo do art. 3º, §§1º, 2º e 3º.

Atrelada a essas questões somam-se os defensores de um sistema de “justiça multiportas”, além das constantes metas do CNJ para realização de acordos (ex.: mutirões com o slogan conciliar é “legal”), com a finalidade de reduzir o número de procedimentos nos tribunais e a promover a paz social.

Contudo, todo esse movimento não se passa de uma prática retórica, eis que imbuída de eficientismo[1], como apontam Ugo Mattei e Laura Nader:

Hoje, o movimento mundial denominado ‘resolução alternativa de conflitos’ funciona como um forte mecanismo de enfraquecimento que o discurso dominante torna atraente mediante o uso de uma série de práticas retóricas, como a necessidade de remediar ‘excessos’ da confrontação judicial, ou de promover a convivência de uma sociedade mais ‘harmoniosa’.[2]

O fomento ao uso de meios alternativos de resolução de conflitos, como a conciliação, fez com que o CPC previsse, em seu artigo 334, uma audiência de conciliação a ser realizada após o recebimento da petição inicial e antes da apresentação de contestação pelo réu. E, apesar da possibilidade de dispensa da audiência, ainda sim o CPC trata tal ato procedimental como obrigatório.[3]

Outro ponto preocupante – e objeto desta coluna -, diz respeito à previsão do artigo 334, §8º, do CPC, que trata da imposição de multa por não comparecimento injustificado das partes à audiência: “O não comparecimento injustificado do autor ou do réu à audiência de conciliação é considerado ato atentatório à dignidade da justiça e será sancionado com multa de até dois por cento da vantagem econômica pretendida ou do valor da causa, revertida em favor da União ou do Estado”.

O mencionado dispositivo deixa clara a faceta autoritária da audiência do art. 334 e do discurso em prol da resolução alternativa de conflitos do CPC que trata com desdém do processo, como se este fosse um mal social, nos moldes de Franz Klein. [4]

Desse modo, a imposição da multa não é nada mais do que a denominada pedagogia judicial. João Carlos Salles de Carvalho demonstrou, em sua última coluna[5] e em obra específica sobre a temática[6], que a pedagogia judicial possibilita o juiz atuar como um ente paterno que irá conduzir e condicionar os comportamentos dos cidadãos “estrategicamente infantilizados (jurisdicionados-paidos), a partir de sua consciência laplaciana, supostamente capaz vislumbrar os impactos sociais e didáticos de suas decisões”.[7]

Nesse ponto, a pedagogia judicial se alinha ao que João Carlos conjectura como behaviorismo judicial, que consiste em autorizar o juiz a assumir o papel de um construtor social, que irá promover medidas punitivo-pedagógicas para estimular ou desestimular condutas e moldar o comportamento dos cidadãos-jurisdicionados.[8]

Dessa maneira, a multa pelo não comparecimento injustificado na audiência passa a ser tratada como uma medida pedagógico-punitiva que o juiz irá impor ao cidadão por não ter comparecido injustificadamente à audiência de conciliação para a tentativa de realização de acordo. Tal medida buscar moldar o comportamento do cidadão, que muitas vezes vê a audiência de conciliação como inócua e/ou não tem interesse na realização de autocomposição, ao menos naquele momento procedimental.

Pela redação do dispositivo, não é claro se a multa é direcionada apenas e tão somente a desestimular ausências injustificadas na audiência ou estimular a presença das partes para realização de conciliação, já que ao final é revertida ao próprio Estado, em uma espécie de aviso: “Não quer conciliar? Então pague a multa!”.

E fazemos coro a Alexandre de Paula Filho e Mateus Costa Pereira ao questionarem se “Há um interesse «superior» do Estado?” na realização de autocomposições. Prevalece, então, o interesse da atividade jurisdicional em reduzir seu acervo em prejuízo à liberdade das partes e à autonomia privada de não terem interesse em conciliar? A obrigatoriedade da audiência não vai contra o próprio interesse e iniciativa das partes em quererem solucionar a controvérsia pela autocomposição?

Aqui, o processo é visto apenas como um instrumento do poder que funciona “como uma espécie de ‘chicote’ de regulação da ordem e docilização da sociedade[9], no qual os juízes irão dizer como é melhor as partes se comportarem no iter procedimental, sob pena de ato atentatório à dignidade da justiça e imposição de multa.

Mas, afinal, o que é dignidade e o que é justiça? A justiça possui dignidade? O que é ato atentatório? Fere a dignidade da justiça as partes não terem interesse em realizar acordo e não comparecerem à audiência, mesmo injustificadamente? Estariam as partes com má-fé em não conciliar? A redação do artigo 334, §8º, do CPC nos perpassa a ideia de que as partes seriam crianças rebeldes que desafiam os pais (juiz-jurisdição) a não cumprirem determinada ordem (ir à audiência) e são punidos com um castigo (multa), a fim de docilizá-las e educá-las.

Vale mencionar que as noções de justiça, dignidade e ato atentatório, se tratam de noções abertas, polissêmicas, indeterminadas, sem uma demarcação teórica precisa, o que facilmente leva a interpretações autoritárias e excepcionais pelo juiz.

Sobre o perigo da palavra justiça, leciona Rosemiro Pereira Leal:

[…] a palavra justiça, quando assim posta nos compêndios de direito, pode assumir significados vários que, a nosso ver, perturbam a unidade semântica e seriedade científica do texto expositivo.

[…] Observa-se que o processo não busca ‘decisões justas’, mas assegura às partes integrarem, por uma hermenêutica isomênica, a construção do provimento, sem que o impreciso e idiossincrático conceito de ‘justiça’ da decisão decorra da clarividência do julgador, de sua ideologia ou magnanimidade.[10]

Tal questão também rememora à problemática do justo processo[11], o qual admite a criação de normas pelo julgador, além de possibilitar a ampliação de seus poderes para adaptar o procedimento, a fim de se buscar o acesso à justiça de modo efetivo, rápido e adequado, contexto no qual a multa também se insere como mecanismo de tal acesso “multiportas[12].

Essa prática de penalizar as partes nega explicitamente o devido processo legal “em nome de um animus de controle comportamental a partir da adequação de condutas a padrões presumidamente tido como bons”,[13] razão pela qual entendemos que a multa por não comparecimento injustificado à audiência é inconstitucional e antidemocrática.

Assim, podemos mencionar, com esteio em Rosemiro Pereira Leal, que a previsão contida no artigo 334, §8º, do CPC, transforma o processo em método de atuação da jurisdição pela vontade do julgador, a serviço de uma paz e bem-estar sociais “em critérios e ideologias (cooperação e mediação) de uma judicatura presunçosamente justa e valorosa”.[14]

Por fim, é importante mencionar que não somos contrários à resolução de conflitos por meio de autocomposição. Entretanto, não se pode defender a imposição autoritária de tais medidas, com prejuízo às partes, baseadas em posturas judiciais que buscam moldar comportamentos com o escopo apenas de reduzir o acervo de procedimentos judicias, em consequente transformação do processo em mero instrumento da jurisdição para a utópica pacificação social.

[1] Sobre os problemas dessa perspectiva eficientista da jurisdição, conferir: FREITAS, Helena Patrícia. Eficiência da jurisdição: necessidade de sua(des)construção para efetivação do modelo constitucional de processo. Belo Horizonte: D’Plácido, 2019.

[2] MATTEI, Ugo; NADER, Laura. Pilhagem: quando o Estado de Direito é ilegal. Trad. Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2013., p. 31

[3]  Nesse sentido, acertada é a crítica de Alexandre de Paula Filho e Mateus Costa Pereira: “Muito embora o estímulo à autocomposição deva existir, sendo indispensável seu desenvolvimento, a imposição da audiência contrasta com a consensualidade inerente aos institutos da mediação/conciliação, desvelando sua face autoritária: à luz do CPC, o principal objetivo dos meios «integrados» não é o de empoderar as partes; eles não se prestam a preservar a autonomia dos envolvidos na construção da melhor solução. Ao revés, parecem ter sido adotados como ferramentas à redução do acervo, seguindo o mesmo viés «eficientista» que marcou a «fase» da instrumentalidade e que, após os conhecidos movimentos de reforma da legislação revogada – aliás, com a curiosíssima aprovação de um novo código com o mesmo mote –, deu suficientes sinais de fracasso. O viés «eficientista» salta aos olhos nos sucessivos mutirões de conciliação promovidos pelo Judiciário, além de campanhas como a capitaneada pelo Conselho Nacional de Justiça, com o criativo slogan de que «conciliar é legal». Aliás, nada disso surpreende se deitarmos o olhar pela história, relembrando que o art. 161 de nossa Constituição Imperial prescreveu a audiência «com o caráter obrigatório, preliminar e condição da ação», subordinando o início dos procedimentos judiciais ao registro de que haviam sido «intentados os meios reconciliatórios». Previsão similar esteve presente em outros diplomas normativos ao longo do tempo”. FILHO, Alexandre de Paula; PEREIRA, Mateus Costa. Obrigatoriedade, (in)constitucionalidade e inocuidade da audiência do art. 334, CPC. Empório do direito. Disponível em <https://emporiododireito.com.br/leitura/64-obrigatoriedade-in-constitucionalidade-e-inocuidade-da-audiencia-do-art-334-cpc>. Acesso em: 15 de abr. de 2.022.

[4] FILHO, Alexandre de Paula; PEREIRA, Mateus Costa. Obrigatoriedade, (in)constitucionalidade e inocuidade da audiência do art. 334, CPC, cit.

[5] CARVALHO, João Carlos Salles de. Behaviorismo judicial e os juízes de Laplace. Contraditor: o debate em primeiro lugar. Disponível em: <https://www.contraditor.com/behaviorismo-judicial-e-os-juizes-de-laplace/>

[6] CARVALHO, João Carlos Salles de. Pedagogia judicial e processo democrático: a fala processual como exercício de cidadania. Belo Horizonte: D’Plácido, 2017.

[7] CARVALHO, João Carlos Salles de. Pedagogia judicial e processo democrático: a fala processual como exercício de cidadania, cit., p., 21-22.

[8] CARVALHO, João Carlos Salles de. Pedagogia judicial e processo democrático: a fala processual como exercício de cidadania, cit., p., 177.

[9] MAGALHÃES, Lincoln Mattos. A construção judicial da ordem: o papel dos juízes na formação do Estado e na manutenção das estruturas de poder. In: SOUSA, Lorena Ribeiro de Carvalho; MUNDIM, Luís Gustavo Reis. Jurisprudencialização do direito no Código de Processo Civil de 2015: aspectos críticos. Londrina: Thoth, 2.022, p. 31.

[10] LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria Geral do Processo: primeiros estudos. 15. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2021, p. 74-75.

[11] Para uma crítica que desconstrói o justo processo, conferir: CARVALHO, Luciana Benassi Gomes. Medidas executivas atípicas: uma leitura constitucional a partir do debate entre publicistas e garantistas. Belo Horizonte: Letramento/Casa do Direito, 2021.

[12] Se não podermos demarcar o que é a justiça, é possível afirmar que ela ainda possui portas? E nessas “portas”, não haveria sempre um guarda da lei, aos moldes do conto de Kafka, que faz o cidadão sempre aguardar o acesso a esta? KAFKA, Franz. Diante da lei. A colônia penal. Tradução de Torrieri Guimarães. Belo Horizonte: Itatiaia, 2000. v. 7.

[13] CARVALHO, João Carlos Salles de. Pedagogia judicial e processo democrático: a fala processual como exercício de cidadania, cit., p.180.

[14] LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria Geral do Processo: primeiros estudos, cit., p. 46.

Autor

  • Mestre e especialista em Direito Processual pela PUC/MG. Pós-graduando em gestão de negócios pela Fundação Dom Cabral. Membro da ABDPRO, do INPEJ e da ACADEPRO. Advogado e professor



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