Primeiras considerações sobre a proporcionalidade: Da origem do Direito Alemão à sua leitura contemporânea
Como elemento constitutivo de entendimentos decisórios, a proporcionalidade compreende uma metodologia que fora submetida a uma ponderação de natureza subjetiva; razão pela qual permite a revisão de determinações legislativas em face de direitos fundamentais. Observa-se aqui, a inferência do método na aplicação jurídica e, consequentemente, na vinculação ao legislativo, tendo em vista a reinterpretação de disposições já previamente definidas pelo legislador. A dúvida remanescente, portanto, é: a aplicação da proporcionalidade viola a separação de poderes do Estado?
Uma das fundamentações recorrentes sobre a proporcionalidade, que ecoou no Brasil, é de que ela tem suas raízes no princípio de Estado de Direito. Nessa afirmação já encontramos a primeira questão que merece ser pontuada com objetividade e clareza: a ideia de Estado de Direito, sem uma revelação de sua forma, não é suficiente para fundamentar as origens e a validação da proporcionalidade, tão somente porque essa argumentação não nos fornece nenhum respaldo teórico sobre sua base normativa, sobre como direitos fundamentais serão operados[1]. É indispensável tratar disso primariamente para que partamos do lugar certo antes de realizar qualquer tipo de aferição.
Inicialmente, a proporcionalidade se desenvolveu na Alemanha, em conjuntura de direito público, mais especificamente em restrições do poder de polícia. Com a criação de um rol de direitos fundamentais[2], até então não reconhecidos pela constituição, a ideia da proporcionalidade se consolidou, em primeiro momento, com a preocupação em garantir a proteção dos interesses individuais mediante a ação estatal que contempla interesses coletivos. Em outras palavras, observada a vinculação dos três poderes a esses direitos no ordenamento alemão, o poder judiciário se viu obrigado a estatuir um método que pudesse avaliar intervenções do Estado que dificultassem ou impedissem a efetivação dos direitos fundamentais.
Originariamente, então, esteve-se diante de uma limitação a medidas que pudessem de alguma forma interferir no interesse individual, isto é, esteve-se diante de uma proteção de direitos contra a atividade do Estado. Ainda em contexto jurídico alemão, com a criação do rol de direitos fundamentais e o desenvolvimento da aplicação da proporcionalidade, a incorporação dos pensamentos fora realizada de maneira enviesada pela jurisprudência do tribunal alemão, sobretudo em razão de correntes doutrinárias axiológicas integrarem o entendimento com a tese de que direitos fundamentais configuram um complexo de valores que devem ser respeitados, quantificados e hierarquizados conforme seu valor abstrato ou disposto no caso concreto.
A decisão Lüth[3], marco no direito alemão, reflete exatamente essa incorporação valorativa aos direitos fundamentais, motivo pelo qual também representa um linde a nova construção da dogmática constitucional – até porque, a jurisprudência dos direitos fundamentais do Tribunal Alemão, ainda por volta de 1957, se encontrava mais vagarosa comparada a outros assuntos constitucionais. Na ocasião, pela primeira vez, os direitos fundamentais foram abordados como direitos públicos subjetivos de resistência contra o Estado e como configuração axiológica objetiva, tendo em vista a argumentação dos magistrados integrada de elementos que faziam menção a valores e se distanciavam de correntes como o positivismo.
O que particularmente fica evidente é a apropriação principiológica imprecisa dos direitos fundamentais que contemplam a proporcionalidade, que, originariamente, tinha um objetivo específico traçado. A oscilação em sua interpretação e aplicação abre caminho para a consolidação de uma proposição não mais compromissada com a sua finalidade original. E, como naquela jurisdição, a proporcionalidade também fora recepcionada e adaptada no Brasil. O imaginário neoconstitucional no país, preocupado com a utilização do Direito como prática social, contribui em larga escala para a consolidação da tese valorativa, de abstração de conteúdo, dos direitos fundamentais fomentada no Tribunal Alemão quando a proporcionalidade passou a se desenvolver.
Doutrinas brasileiras partidárias da teoria dos princípios, especialmente as neoconstitucionalistas, geralmente empreendem a aplicação da ponderação no ordenamento como método inexorável ao direito. A perspectiva valorativa, juntamente com a credibilidade engendrada à distinção qualitativa de Alexy[4], que a considera como uma das três máximas da proporcionalidade: adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito (sopesamento). entre regras e princípios, contribui significativamente para essa atribuição de importância ao que é considerado como mecanismo de resolução de conflitos entre princípios.
À ponderação, é outorgada a tarefa de observação dos quadros relevantes do caso concreto que, ao final, no entanto, pondera valores. Somente após um exame que determina se o ato é adequado e necessário, a última etapa pode ser realizada, ou seja, é na ponderação que a decisão jurídica acontece, de modo que constitua um teste que na verdade funciona como prova geral e ampla.[5] Notadamente, maior liberdade tem o intérprete e, consequentemente, maiores as chances de suas preferências morais serem o gatilho, envolto por uma argumentação bem elaborada, para alterações das próprias limitações legislativas existentes.
Aplicação da proporcionalidade como método de resolução de colisões entre princípios e sua inferência na separação de poderes
Analisada com essas delimitações, a ponderação reclama uma fundamentação realmente convincente. Um exemplo concreto de aplicação da proporcionalidade, notado por Rafael Giorgio Dalla Barba em sua tese de mestrado[6], se mostra efetivo na demonstração da problemática levantada até aqui. Trata-se do Recurso Extraordinário nº 608.482, julgado pelo Supremo Tribunal Federal em 07 de agosto de 2014.[7]
Em síntese, o Estado do Rio Grande do Norte interpôs o referido recurso em face de acórdão que confirmou a sentença do juízo de primeiro grau, cujo resultado culminou na procedência do pedido principal da autora que, à época, pleiteava anular ato administrativo que a desclassificava de concurso público para carreira de Agente da Polícia Civil. Aparentemente, o motivo teria sido a eliminação da candidata em exame físico, na terceira etapa do concurso, por não ter executado três abdominais corretamente, embora tenha realizado um total de vinte e dois abdominais, isto é, dois a mais do exigido.
Nesse sentido, a autora ajuizou ação ordinária contra o Estado e obteve êxito em seu pedido liminar para autorizá-la a participar da quarta etapa do concurso, considerando, portanto, completada a terceira. Ao final, o juízo confirmou o pedido liminar julgando procedente a ação ordinária. O Estado do Rio Grande do Norte apelou alegando violação ao princípio da isonomia e descumprimento às disposições do edital, sob a argumentação de inexistência de documentação que comprovava os fatos da inicial. A 3ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Norte, porém, entendeu que, apesar de não constar nos autos tal demonstração, a recorrida fazia jus ao cargo pela aplicação da Teoria do Fato Consumado, já que, à época, exercera o cargo há mais de sete anos.
Questionando o recurso do Tribunal, o apelante interpôs Recurso Extraordinário com o apontamento de ofensa aos artigos 5º, caput, e II, e 37, caput, I e II, da Constituição Federal. Por maioria de seus membros, o Supremo Tribunal Federal deu provimento ao recurso, sendo vencido o entendimento de Luís Roberto Barroso e Luís Fux, que votaram pela reforma da decisão e improcedência do pedido principal da ação. Dos argumentos dispostos, dois merecem atenção por uma peculiaridade importante: o voto do Ministro relator Teori Zavascki e o voto do Ministro Barroso.
O Min. Zavascki se pautou na matriz da teoria de Alexy, de modo que, para o relator, o caso enseja o conflito de dois valores incompatíveis e, assim, passíveis de sopesamento. De um lado, o interesse individual da candidata em manter o cargo público, exercido, por força de liminar, há mais de sete anos, e, de outro lado, o interesse público do cumprimento ao artigo 37, II, da Carta. A premissa de que existe tal colisão gerou, então, a conclusão do balanceamento que, realizado diante da análise do caso concreto, restou positivo para a candidata, isto é, o interesse individual teria, para o Ministro, maior peso.
O voto do Ministro Luís Roberto Barroso divergiu, embora também sob embasamento da teoria de Alexy. Para Barroso, a lide não se limita ao confronto entre o interesse público e o interesse privado, de maneira a serem observados três fatores cruciais como parâmetro de realização da ponderação, quais sejam, a permanência do cargo por mais de cinco anos, a tese jurídica que justificou a investidura, bem como a ausência de conduta pessoal procrastinatória e a decisão de mérito proferida em segunda instância. Isso significa que, apesar do Ministro reconhecer o sopesamento entre os valores colocados pelo relator, indica outras questões consistentes para que a ponderação se efetue.
Ambos os votos demonstram a problemática da proporcionalidade em sentido estrito. Antes dos apontamentos, é preciso colocar que o teórico Alexy não fora citado em nenhum dos votos dispostos no Recurso Extraordinário, mas, sua estrutura básica de raciocínio acerca da ponderação é claramente percebida. À vista disso, particularmente, esse caso envolve uma pontuação curiosa sobre a conclusão de que a ponderação é necessária, porém casuisticamente diferenciada em seu resultado. Ao observarmos as argumentações, nota-se que os Ministros concluíram a existência de uma colisão e, portanto, a imprescindibilidade do sopesamento, entretanto, obtiveram respostas, do mesmo caso analisado, substancialmente diferentes. Além disso, remanesce uma indagação absolutamente pertinente formulada pelo Rafael em sua tese. Tendo em vista as duas posições apontadas, qual delas seria de fato legítima e mais sólida?
A teoria dos princípios de Alexy, ao conduzir a proporcionalidade pelo caminho de resolução de uma aparente colisão, ocasionou uma diferenciação do sistema jurídico que leva ao judiciário discussões que não pertencem ao seu campo funcional. É preciso lembrar que, no Brasil, o artigo 5º, § 1º da Constituição Federal, vincula diretamente o legislador aos direitos fundamentais ao preconizar a observância obrigatória dos mesmos na limitação que deve ser estritamente necessária, de modo que a ideia do “proporcional” se perfaça aí. A grande dispersão existente entre a proporcionalidade fundamentada pelo dispositivo 5º, § 1º, da Constituição Federal, e a proporcionalidade elevada a uma instrumentalização pela qual o aplicador detém liberdade para valorar direitos fundamentais, condiciona o sistema jurídico a uma imprecisão e violação de função que, notadamente, poderia ser evitada se tal aplicação assim não se fizesse.
Nesse seguimento, a proporcionalidade em sentido estrito é claramente uma violação a separação de poderes do Estado, que descredibiliza o Estado Constitucional. O juiz quando pondera, chama ao Judiciário aspectos competentes ao Legislativo, que, inclusive, não possui as mesmas amarras funcionais que aquele. O momento de discussão sobre justiça ou moral é anterior ao processo judicial e o seu lugar é dentro do processo majoritário, imbuído de prerrogativas constitucionais para realizar projeções políticas. Assim, a ponderação não pode ser elemento da proporcionalidade porque substitui a decisão política do legislador pela decisão do julgador. É imprescindível reconhecermos os desafios inerentes à legislatura, principalmente para não recairmos em argumentações baseadas em ferramentas que transformam critérios constitucionais sérios em “engenhocas” de criação de poder.
Referências
ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. 2015.
DALLA, Barba. Rafael Giorgio. A (in) transparência dos direitos fundamentais: das origens ao limite da teoria discursiva em Robert Alexy. Tese de Mestrado em Direito. São Leopoldo. 2017. Item 4.1.
DIMOULIS, DIMITRI, MARTINS, LEONARDO. Teoria Geral dos Direitos Fundamentais. 2008. São Paulo.
LAURENTIIS, Lucas Catib De. A Proporcionalidade no Direito Constitucional: Origem, Modelos e Reconstrução Dogmática. Tese de Doutorado em Direito. São Paulo. 2015.
MARTINS, Leonardo. Liberdade e Estado constitucional. 2012, São Paulo.
STF, RECURSO EXTRAORDINÁRIO 477.554 MINAS GERAIS. Relator: Ministro Celso de Mello. 2011.
STF, RECURSO EXTRAORDINÁRIO 608.482. RIO GRANDE DO NORTE. Relator: Ministro Teori Zavascki. 2014.
[1] Excepcional crítica de Lucas Catib de Laurentiis em: LAURENTIIS, Lucas Catib De. A Proporcionalidade no Direito Constitucional: Origem, Modelos e Reconstrução Dogmática. Tese de Doutorado em Direito. São Paulo. 2015.
[2] DIMOULIS, Dimitri, MARTINS, Leonardo. Teoria Geral dos Direitos Fundamentais. 2008, cap. 3.
[3] Caso Lüth abordado como ponto de transição da dogmática constitucional alemã em: LAURENTIIS, Lucas Catib De. A Proporcionalidade no Direito Constitucional: Origem, Modelos e Reconstrução Dogmática. Tese de Doutorado em Direito. São Paulo. 2015.
[4] Existe uma condição de prevalência proposta por Alexy, e, com base nela, teoricamente, a otimização fática e jurídica dos princípios se concretiza. A otimização fática se compõe nos critérios de adequação e necessidade e a otimização jurídica se compõe no bem tutelado em si, naquilo que for considerado importante para a realização máxima do princípio. O exame de adequação e necessidade, máximas da proporcionalidade alexyana, junto com a proporcionalidade em sentido estrito, têm dependência com os dados empíricos observados no caso concreto, portanto, inevitavelmente vêm a ter relação com possíveis juízos idiossincráticos do operador do direito.
[5] Afirmação de Lucas Laurentiis sobre a controvérsia gerada em face da proporcionalidade em sentido estrito, já esperada, uma vez que são depositadas grandes expectativas em método que não se orienta por nenhum ponto normativo. LAURENTIIS, Lucas Catib De. A Proporcionalidade no Direito Constitucional: Origem, Modelos e Reconstrução Dogmática. Tese de Doutorado em Direito. São Paulo. 2015.
[6] DALLA, Barba. Rafael Giorgio. A (in) transparência dos direitos fundamentais: das origens ao limite da teoria discursiva em Robert Alexy. Tese de Mestrado em Direito. São Leopoldo. 2017. Item 4.1.
[7] STF, RECURSO EXTRAORDINÁRIO 608.482. RIO GRANDE DO NORTE. Relator: Ministro Teori Zavascki. 2014.
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