Em se tratando do “novo normal”, analisado no espectro de atuação do Judiciário, a chamada “virada tecnológica” é uma realidade desde o início dos anos 2000,[1] embora se perceba nos últimos tempos uma intensificação ainda maior nos esforços de desenvolvimento de sistemas de inteligência artificial e automatização de expedientes considerados mecânicos e repetitivos.
Não se trata de mudanças identificadas para a solução de um problema específico, ou mesmo sistêmico, como ocorre comumente com o notório acúmulo de processos e com o alto índice de litigiosidade no país, mas sim uma tônica de adaptação dos sistemas de justiça em razão do número exponencial de tecnologias que eclodem desde o início da década de 2010, para se mencionar um período histórico mais curto. Não por acaso, Richard Susskind já mencionava naquela época que, “em um período de apenas cinco anos, mais pessoas teriam amplo acesso à internet do que acesso à justiça”[2], o que se confirma atualmente.
O tecnocentrismo e a automatização dos processos de trabalho são a tônica da sociedade pós-moderna,[3] de modo que a eventual não-adequação culmina em um verdadeiro cenário de exclusão. Tal situação não está distante da atividade jurisdicional e todos os seus atores envolvidos.
Trata-se de uma característica da própria sociedade informacional na qual todos estamos inseridos, guiada pelo emprego de tecnologias para a facilitação de todas as tarefas que possam ser consideradas mecanizadas e compostas de automatismos. A sedução causada pela facilitação de expedientes corriqueiros da vida humana é um dos pontos centrais para que o emprego das tecnologias não seja algo incomum também ao judiciário. Não apenas pela facilitação, mas pelo próprio preenchimento de espaços ainda não atingidos pela capacidade humana, como a realização rápida de tarefas que exigem esforço organizacional, cognição e desempenho, análise e parametrização de dados estatísticos de forma simples e usual em curtos períodos, além da redução da quantidade de pessoas para a realização de tais demandas, gerando economia acentuada de recursos financeiros.
Não por acaso, o Judiciário brasileiro apresenta uma série de projetos de tecnologia em desenvolvimento pelos Tribunais, buscando a otimização de todos os tipos de tarefa possíveis. São sempre lembrados como exemplos paradigmáticos pelos estudiosos da temática os sistemas Victor (STF), Sócrates (STJ), Ágil e Radar (TJMG), Elis (TJPE), Sinapses e Cranium (TJRO), Alice, Sofia e Mônica (TCU), dentre outros.
Tais projetos, muitos já em fase avançada de teste e implementação, não se configuram em esforços realizados como modo de adequação da atividade jurisdicional exclusivamente em tempos de Pandemia, mas sim já visando a facilitação dos expedientes secundários ao considerado “objetivo maior” da atividade jurisdicional, de promoção da pacificação de conflitos em sociedade, como é a visão tradicionalmente adotada e cuja senda segue permanente mesmo em visões mais renovadas de jurisdição.[4]
A otimização do tempo e o custo operacional da atividade jurisdicional é o principal objetivo da utilização das tecnologias em apreço, tendo sempre como fulcro a redução do tempo de tramitação dos processos e, consequentemente, a redução do passivo destes processos, que chegou à casa dos 78,7 milhões no ano de 2018[5].
Apesar da tão ressaltada eficiência que caminha juntamente com a adoção de tecnologias para realização dos expedientes repetitivos da atividade jurisdicional, ressalta-se sobre a existência de estudos profundos no sentido de adotar a utilização de algoritmos para a realização integral de tarefa decisória. O próprio CNJ, atento aos esforços dos tribunais brasileiros em torno do emprego de ferramentas de tecnologia também no campo decisório, adotou o Projeto Sinapses, oriundo do TJRO, como o principal estudo de inteligência artificial aplicada ao direito no Brasil, por meio da assinatura do Termo de Cooperação n. 042/2018.
A partir de tal cooperação, o desenvolvimento dos sistemas de processo eletrônico já em plena utilização será cada vez mais intenso, ao passo em que o intuito é fazer com que “a plataforma possibilite que o processo de entrega dos modelos seja acelerado em uma escala não permitida quando o desenvolvimento ocorre da forma tradicional, no qual o cientista de dados e os desenvolvedores trabalham em conjunto para acoplar a inteligência ao sistema nativamente”.[6]
Aurélio Viana traça um importante panorama acerca deste ponto:
A possibilidade de um juiz-robô, como visto, é real e parece próxima. Há, sem dúvidas, potencialidades e virtudes no uso da Inteligência Artificial, podendo-se indicar a possibilidade de essa ferramenta organizar os bancos de dados de julgados dos Tribunais brasileiros, o que faria com que o jurista pudesse melhor compreender o direito jurisprudencial pátrio.
A ferramenta também poderia ser bastante útil para fins de gerenciamento processual, isto é, o juiz-robô desenvolver as atividades típicas de impulso oficial, pois não é incomum, mesmo nos processos que tramitam em plataforma eletrônica, haver demora na manifestação do órgão jurisdicional, ainda que se trate da exata sequência prevista na legislação processual. Há que se cogitar também da utilização de um algoritmo de inteligência artificial para gerenciamento de casos repetitivos, para fins de identificação e monitoramento.
Por outro lado, embora estejamos em momento incipiente nas pesquisas, verifica-se, desde já, um certo drama no deslocamento da função decisória às máquinas, uma vez que essa possibilidade, se implementada com o mínimo de responsabilidade, demanda o aprofundamento numa série de fatores, passando-se pela psicologia, teoria do conhecimento, hermenêutica jurídica, teoria e processo e tantos outros campos.[7] (VIANA, 2019, p. 42-43)
Como se vê, não foi exatamente a Pandemia que provocou a adoção de ferramentas tecnológicas para a otimização dos expedientes funcionais do Judiciário. Contudo, a situação de saúde pública que obrigou a todos ao distanciamento e reclusão social para frear o contágio ainda maior do vírus, forçou ao Judiciário criar mecanismos de adequação imediata de sua atividade à nova realidade.
Nesse sentido, foi editada pelo CNJ a Resolução n. 313/2020, na qual se estabeleceu o regime de “Plantão Extraordinário, no âmbito do Judiciário, para uniformizar o funcionamento dos serviços judiciários e garantir o acesso à Justiça neste período emergencial, com o objetivo de prevenir o contágio pelo novo Coronavírus”, nos termos de seu artigo 1.[8] Na mesma linha, a Resolução n. 314/2020 do mesmo CNJ estabeleceu a regulamentação da realização de sessões virtuais nos tribunais, turmas recursais e órgãos colegiados, disciplinou a realização de trabalho remoto dos servidores e colaboradores da justiça e a prática de atos virtuais, como despachos com magistrados e desembargadores, audiências de conciliação e instrução e julgamento.[9]
Tais “normativas” do CNJ são singelos exemplos que demonstram a intensificação do desenvolvimento de ferramentas de tecnologia para facilitação dos expedientes jurisdicionais não apenas no período de Pandemia, mas da própria utilização prática de tais ferramentas no cotidiano forense a partir de então, ainda que sem uma prévia preparação de toda a coletividade para tal.
Em um contexto de segurança jurídica ampla, sem qualquer situação de vulnerabilidade à vida de todos os cidadãos do mundo, como (ainda) se apresenta com a Pandemia do Coronavírus, a implementação e realização de todos os atos jurisdicionais na modalidade remota e integralmente via internet, como a realização de audiências, sustentações orais e despachos com magistrados e serventuários de justiça, ainda levaria algum tempo para ocorrer na prática.
Afinal, a ampla virtualização dos atos jurisdicionais enfrentaria um incontestável tabu de seus usuários, ou mesmo a própria descrença na funcionalidade ampla de todas as atividades, porquanto significaria o rompimento integral com uma forma iminentemente presencial de se fazer justiça. De igual modo, representa preocupação importante com relação às dificuldades de dimensionar as diferenças entre litigantes, algo que há muito tempo já era denunciado por Marc Galanter ao abordar as diferenças entre litigantes habituais e litigantes eventuais.[10]
Por tais razões, os efeitos da virada tecnológica do direito[11] foram sentidos de um modo ainda mais intenso com o advento da Pandemia viral, seja pelas novas tecnologias configurarem a única forma de continuidade da atividade jurisdicional, seja por apontarem de um modo ainda mais flagrante a discrepância existente entre os usuários do sistema de justiça, pelas formas de alcance e instrumentalização da atividade jurisdicional nessa nova forma de litigar[12].
Nesse prisma, o “novo normal” que paira sobre o Judiciário força a uma adaptação geral de todos os seus usuários, à contrario sensu do tempo, já que muitas das tecnologias que agora buscam solucionar de imediato um problema presente, talvez seriam ferramentas importantes para auxílio da atividade jurisdicional apenas no futuro, com prévia experimentação dos seus usuários e aferição de seus riscos e potencialidades.
Contudo, a indagação que fica, dentre litigantes habituais e litigantes eventuais, é como se dará a adaptação de cada um frente às mudanças impostas de modo tão abrupto, considerando a necessariedade e importância da atividade jurisdicional para todos, bem como a necessidade de se resguardar garantias processuais que legitimem tal atividade.
[1] NUNES, Dierle. Virada Tecnológica no Direito (Da automação à transformação): seria possível adaptar o procedimento pela tecnologia? In: NUNES, Dierle; LUCON, Paulo; WOLKART, Erik (Orgs.). Inteligência Artificial e Direito Processual: os impactos da virada tecnológica no direito processual. Salvador: Juspodivm, 2020. P 17.
[2] SUSSKIND, Richard. Tomorrow’s Lawyer’s: an introduction to your future. Oxford: Oxford University Press, 2012, p. 84.
[3] ROSA, Alexandre Morais da; GUASQUE, Bárbara. O Avanço da Disrupção nos Tribunais Brasileiros. In: NUNES, Dierle; LUCON, Paulo; WOLKART, Erik (Orgs.). Inteligência Artificial e Direito Processual: os impactos da virada tecnológica no direito processual. Salvador: Juspodivm, 2020. p. 65.
[4] Consigne apenas que esta é a visão tradicional vislumbrada para a Jurisdição, encontrada em grande parte dos manuais de Direito Processual. Contudo, entende-se que a função da Jurisdição vai muito além à mera resolução de conflitos, tal como, atualmente, busca encampar Richard Susskind por intermédio do emprego de tecnologia em plataformas de ODR. (SUSSKIND, Richard. Online Courts and the Future of Justice. Oxford: Oxford University Press, 2019, p. 98-102.
[5] BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Relatório Justiça em Números 2019: Ano-Base 2018. Brasília: CNJ, 2019. Disponível: <https://www.cnj.jus.br/files/conteudo/arquivo/2019/08/4668014df24cf825e7187383564e71a3.pdf>.
[6] BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Inteligência Artificial na Justiça. Brasília: CNJ, 2019.
[7] VIANA, Antônio Aurélio de Souza. O Juiz-robô e a Decisão Algorítmica: a inteligência artificial na aplicação dos precedentes. In: ALVES, Isabella Fonseca (Org.). Inteligência Artificial e Processo. Belo Horizonte: D’Plácido, 2019. p. 42-43.
[8] BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Resolução n. 313/2020. CNJ, 2020. Disponível: <https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/3249>.
[9] BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Resolução n. 314/2020. CNJ, 2020b. Disponível: <https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/3283>.
[10] GALANTER, Marc. Porque “quem tem” sai na frente: especulações sobre os limites da transformação no direito. Trad. Ana Carolina Chasin. São Paulo: FGV, 2018.
[11] NUNES, Dierle. Virada Tecnológica no Direito (Da automação à transformação): seria possível adaptar o procedimento pela tecnologia? In: NUNES, Dierle; LUCON, Paulo; WOLKART, Erik (Orgs.). Inteligência Artificial e Direito Processual: os impactos da virada tecnológica no direito processual. Salvador: Juspodivm, 2020, p. 20-21.
[12] A exemplo dessa discrepância é a própria utilização do que vem sendo chamado de “hiperoralidade”, ou seja, a utilização da oralidade por hiperlink. Trata-se de uma releitura do princípio da oralidade, baseada no uso de ferramentas e expedientes tecnológicos, garantindo a necessária influência ao ato decisório, nos termos dos artigos 9º e 10º do CP/2015. (NUNES, Dierle; FARIA, Guilherme Lage; PEDRON, Flávio Quinaud. Hiperoralidade em Tempos de Covid-19. Revista Consultor Jurídico, 16/06/2020. Disponível: <https://www.conjur.com.br/2020-jun-16/nunes-faria-pedron-hiperoralidade-tempos-covid-19>.)