O PERIGO DAS “OBVIEDADES” AO TRADUZIR

O PERIGO DAS “OBVIEDADES” AO TRADUZIR

La traduzione giuridica è un fatto di lingua, ma la lingua giuridica è nota al solo giurista, la conoscenza critica del valore dei vocaboli è propria del solo giurista sperimentato, e la conoscenza critica delle identità e dissomiglianze concettuali attraverso le frontier dei sistemi appartine al comparatista; e perciò sa come tradurre chi possieda il sapere del comparatista” (R. Sacco – P. Rossi, Introduzione al diritto comparato)[1].

Toda tradução é uma interpretação, uma criação do tradutor: ela pressupõe escolhas interpretativas[2]. E, por isso, não há traduções objetivamente perfeitas. As traduções, dentre as tecnicamente boas (há, claro, algumas que são inaceitáveis), são mais ou menos adequadas ao seu destinatário conforme os objetivos dele.

Por exemplo, se o destinatário do texto for um estudioso não habituado ao direito romano (isso é frequente ao se citar textos de direito romano em trabalhos de direito civil), serão inconvenientes termos técnicos romanos (em latim), pois impossibilitarão a compreensão, pelo leitor, do sentido real do pensamento romano. Ao traduzir, deve-se, então, primeiramente pensar no destinatário da tradução.

Em segundo lugar, deve-se sempre ter em mente que não há correspondentes exatos entre a antiga realidade romana e a atual, ainda que possa haver uma grande proximidade terminológica (aliás, por vezes, não há sequer uma constância de sentido de certas expressões mesmo ao interno da experiência jurídica romana). E “obviedades” podem levar a equívocos. Traduções aparentemente fáceis são, por vezes, as mais complicadas.

Vejamos o exemplo de duas famosas expressões empregadas em manuais de direito romano: “ius civile” e “ius gentium” (dois termos-chave das fontes romanas).

É difícil (senão impossível) indicar cada uma com um termo unívoco em língua portuguesa porque houve uma significativa evolução de ambas ao interno da experiência jurídica romana e, mesmo, uma significativa evolução dos termos ao longo dos séculos até o momento atual.

A mui comum tradução por “direito civil” e “direito das gentes” é um perigoso reducionismo que, no mais das vezes, leva o jurista atual a ter uma compreensão equivocada do sentido real das expressões. Por exemplo, “ius civile” não é, nem nunca foi, o equivalente exato ao que hoje chamamos de “direito civil”.

A dificuldade é tamanha que muitos tradutores (e autores de manuais) optam por manter a expressão no seu original (em latim). Contudo, tal opção leva igualmente a uma dificuldade de compreensão das fontes pelo não-romanista: mesmo que não se traduza, a maioria dos estudiosos em língua portuguesa será levada a pensar em “direito civil” ao ler “ius civile”, por conta da proximidade aparente dos termos. É necessário traduzir. E a chave para tal está em compreender a evolução básica dos termos e fixar o sentido deles especificamente para a legislação justinianeia.

De plano, repare-se que, não por acaso, os fragmentos das Institutas de Justiniano (“o” manual por excelência do direito justinianeu[3]) que tratam mais claramente da diferença entre ambas as expressões (em especial Inst. 1, 2, 2) não encontram correspondente nas Institutas de Gaio (“o” manual por excelência do direito romano clássico). Isso ocorre porque houve uma clara evolução dos termos do século II d.C. (quando viveu Gaio) ao século VI d.C. (quando viveu Justiniano).

O termo “ius gentium”, em sua origem, indicava o particular ordenamento do comércio entre nações variadas (gens: como para o sentido romano justinianeu é fundamental a ideia de um liame cultural entre esses seres humanos e a sujeição a um direito comum, ainda que não posto por um Estado, o termo mais conveniente para a tradução de “gens” é “nação”, embora em um primeiro momento tenha significado aquilo que é indicado, em antropologia, com o termo “clã” – conjunto de seres humanos ligados a um antepassado comum). Por isso Gaio já dizia que era como que o direito aplicado por todas as nações (Gai. 1, 1). Contudo, nesse momento, o aspecto prático das relações comerciais é que era tido em mente.

O melhor paralelo para esse primeiro momento do “ius gentium” é o que hoje se nomeia “lex mercatoria” ou “ius mercatorum” (que não são termos técnicos romanos), como um direito criado pelos comerciantes (“mercatores” – pequeno comerciante, em oposição aos grandes empresários – “negotiatores”) para regular sua própria atividade. Ou seja, um direito “anacional” (não “supranacional”) e universal do comércio, pautado nos costumes. Contraposto a ele, havia o direito posto por cada nação, ou seja, cada direito dos cidadãos (“cives” – “cidadãos”): o “ius civile” (literalmente, “direito do cidadão <romano>”, embora “civitas” equivalha mais ao que chamamos de “nacionalidade” do que de “cidadania”).

Ao interno da experiência do “ius gentium” foram criados inúmeros institutos de grande importância, como, por exemplo, diversos contratos (compra e venda, locação, sociedade, depósito, mútuo etc.) que, com o tempo, começaram a ser absorvidos pelos direitos de cada nação (cf. a parte final de Inst. 1, 2, 2). Houve o que alguns romanistas atuais (em especial os especialistas em “direito comercial romano”) chamam de “comercialização do ius civile”. Tal processo foi especialmente acelerado a partir do início do século III d.C., quando o imperador Antonino Caracala atribuiu a cidadania romana a quase todos os habitantes livres do império (cf. D. 1, 5, 17).

Contudo, isso fez com que o “ius gentium” passasse a ter um sentido histórico: reunia os institutos jurídicos que haviam sido introduzidos através dos usos e costumes do comércio entre as nações. E este último aspecto (“entre nações”) foi sendo aos poucos enfatizado, em especial nos momentos de desestruturação do império (nos séculos IV e V d.C.) e maior contato com povos não sujeitos à autoridade romana. É relevante, a propósito, que Justiniano diga que o “ius gentium” é aquele que as nações estatuíram para si e exemplifique com as normas relativas às guerras e à escravidão (cf. Inst. 1, 2, 2).

Assim, em época justinianeia, o “ius gentium” indicava não mais as normas do comércio (derivadas dos costumes), mas preponderantemente as normas estabelecidas entre as nações, um “ius inter gentes”. Para citar um exemplo significativo, veja-se que Santo Isidoro de Sevilha, que nasceu ainda durante o reinado de Justiniano, enfatizava esse aspecto “internacional” (“entre nações”) da expressão, tratando das relações entre as nações e deixando de lado as relações entre particulares (cf. Origines 5, 5 e 6). Consolidava-se um “direito da guerra e da paz” (em substituição a um “direito do comércio”) que foi a base, mais tarde, para a fundação do moderno “direito internacional público”.

Somente para citar um exemplo, Francisco de Vitória, um dos fundadores dessa disciplina, se apropria da fraseologia de Inst. 1, 2, 1 (“quod vero naturalis ratio inter omnes homines constituit, id apud omnes populos peraeque custoditur vocaturque ius gentium” – “aquele <direito> que a razão natural estabeleceu entre todos os homens é observado igualmente por todos os povos e é chamado de ius gentium”), substitui “homines” por “gentes” e diz que “quod naturalis ratio inter omnes gentes constituit vocatur ius gentium” (“aquele <direito> que a razão natural estabeleceu entre todas as gentes <(nações)> é chamado de ‘direito das gentes’ ” – De Indis I, III, 2). Essa alteração de enfoque, de um “ius inter homines” para um “ius inter gentes”, expressou, mais que qualquer outra coisa, a criação de uma forma nova de visualizar o direito ou, mais precisamente, a criação de uma disciplina jurídica nova: o direito internacional público.

Em apertada síntese, no contexto das Institutas, “ius gentium” é o direito da comunidade internacional.

E, em contraposição, “ius civile” seria o direito da nação (ou povo) romana (cf., igualmente, Inst. 1, 2, 2). Contudo, deve-se observar que esta última expressão é, em outros trechos das Institutas, empregada em oposição ao direito posto pelos pretores (o chamado “ius honorarium” ou “ius praetorium” – Inst. 1, 2, 7), como claramente em Inst. 2, 10, 3.

Nesse sentido mais estrito, “ius civile” é aquele que deriva de leis, plebiscitos, senatusconsultos, constituições imperiais ou da atividade dos jurisconsultos (D. 1, 1, 7 pr.), enquanto o “ius honorarium” é aquele derivado da atividade dos pretores, com o fim de explicitar, complementar ou corrigir as demais fontes do direito (D. 1, 1, 7, 1). Ainda que essa fonte do direito tenha se consolidado no início do século II d.C. por obra do jurista Juliano (na época do governo do imperador Adriano), no que se chamou de “edictum perpetuum”, não se pode subestimar a importância dessa fonte, em época justinianeia, como “viva vox” (“viva voz” – D. 1, 1, 8) do “ius civile”.

Assim, no contexto das Institutas, o “ius civile” em sentido amplo (“direito dos cidadãos romanos”, “direito da nação ou povo romano”, “direito nacional romano” ou, simplesmente, “direito romano”) abrange o “ius civile” em sentido estrito, com as modificações feitas pelo “ius honorarium”. Ou seja, o termo tem um duplo valor: “internacional” e “privado”, conforme se volte as atenções para o contexto externo ou interno da experiência jurídica romana.

Vale, por fim, ressaltar que a expressão “ius civile” foi adquirindo um sentido cada vez mais restrito com o tempo. Em brevíssimas linhas, no século XVI, quando foi consolidado o emprego da expressão “Corpus Iuris Civilis” (por conta da edição publicada por D. Godofredo no ano de 1583), “ius civile” indicava um direito comum laico (em oposição ao “ius canonicum”); mais claramente a partir do século XIX, passou a designar exclusivamente o direito que rege as relações entre particulares; atualmente, o “direito civil” tem um sentido residual, pois ele rege as relações entre particulares que não são reguladas por outros ramos do direito (como o direito empresarial, do consumidor, trabalhista etc.) – e, não obstante “residual”, é ele a base de todos os ramos do que se convenciona hoje chamar de “direito privado”. Mas essas são questões para uma futura coluna…

Como dito no início: tomemos cuidado com obviedades ao traduzir!

* Esta coluna é produzida pelos professores Bernardo Moraes e Tomás Olcese e por estudiosos convidados, todos interessados no Direito Romano e em suas conexões com o Direito Contemporâneo.

[1] R. Sacco – P. Rossi, Introduzione al diritto comparato, 6ª ed., Torino, UTET, 2015, p. 53.

[2] Cf. J.-C. Gémar, L’interprétation du texte juridique ou le dilemma du traducteur, in R. Sacco (org.), L’interprétation des textes juridiques rédigés dans plus d’une langue, Torino, Harmattan, 2002, p. 103 e ss.

[3] Cf. B. B. Q. Moraes, Institutas de Justiniano – primeiros fundamentos de direito romano justinianeu, 2ª ed., São Paulo, YK, 2021, passim.

Autor

  • Bacharel, Doutor e Livre-Docente pela Faculdade de Direito da USP (FDUSP), Especialista (“Perfezionato") em Direito Romano pela Università di Roma I – La Sapienza, Professor Associado (graduação e pós-graduação) da FDUSP (Direito Civil e Direito Romano). Procurador Federal (AGU) – https://www.bernardomoraes.com



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