“– Pode rir – disse ele a Altamira – Enquanto você e os outros fumam tranquilamente os seus charutos (…) os judeus vão minando o nosso edifício social, preparando a queda da nossa civilização. Têm nas mãos o cinema e a imprensa. É uma vingança lenta e perversa, que eles vêm preparando há séculos.”
O trecho que nos serviu de epígrafe é parte de um diálogo entre Acélio Castanho e Túlio Altamira no romance Olhai os lírios do campo, de Érico Veríssimo.
A obra em si é permeada de personagens que, muito embora quase tipos-ideais sem grandes desenvolvimentos psicológicos, não deixam de ser bastante curiosas. Acélio Castanho é um deles. O rapaz é um tipo intelectual que desde o início do romance contrasta com a crueza de Eugênio Fontes, o protagonista da trama, que desde muito cedo conviveu com as privações materiais, sociais e culturais proporcionadas pela pobreza.
Em busca de ascensão social, Eugênio abandona seu verdadeiro amor – Olívia, com quem houvera cursado a Faculdade de Medicina – para casar-se com Eunice, mulher da alta classe que mantem uma relação curiosa com a cultura. Mas não qualquer cultura. Desde os primeiros contatos com Eugênio, sua futura esposa fez questão de despejar baldes de “alta cultura” no homem simples que nada sabia de Freud ou Piccard.
Eunice é muito relacionada na obra a contextos culturais; a moça está sempre promovendo jantares com grandes artistas ou a caminho de espetáculos. Mas o curioso é a relação que ela desenvolve – ou não – com a cultura: faz dela uma espécie de muro que a cerca e blinda do mundo promíscuo e depravado dos sujeitos que desconhecem completamente a psicanálise ou a música clássica.
A posição especial que a filha de Cintra ocupa no mundo afasta-a até mesmo da maternidade. Não da forma colérica de um Brás Cubas que não quis transmitir “a nenhuma criatura o legado de nossa miséria”. Os motivos de Eunice eram outros: “’Não quero saber de filhos. Esses mamíferos esfaimados deformam-nos o corpo.’ É o que ela costuma dizer às amigas. Ter filhos é uma acção burguesa e inferior. Bom entretenimento para os proletários, para a classe média.”
O muro de alta cultura que Eunice construiu entre ela e o mundo tem em Acélio Castanho um grande aliado. O rapaz não perde a oportunidade de a todo momento dar mostras de sua superioridade intelectual ao fazer citações em francês d’A República de Platão ou explicar a todos ao seu redor a miséria do mundo moderno, a perda de todos os valores e a “indiferença e a cumplicidade dos intelectuais e da chamada classe conservadora diante da bolchevização do Ocidente”.
Acélio vê o que praticamente ninguém mais vê: “Castanho estava ainda na Grécia: – Música e ginástica – dizia – tanto para o corpo como para o espírito. Eu sinto, meu caro, que devia ter nascido na velha Hélade, para amar Platão e ser um dos seus discípulos…”
Eugênio Fontes não deixa de ter algumas impressões sarcásticas desde os primeiros encontros com o intelectual que nos dão a impressão de que Acélio é um daqueles tipos que esgrimam a cultura desde dentro do seu círculo de admiradores, sem se dar realmente ao trabalho de defender o ocidente colapsado:
“Ele chegaria aos sessenta anos sem publicar o seu famoso ensaio sobre a tragédia grega, tão pomposamente anunciado desde os tempos de estudante. Imaginou-o à mesa no salão do Círculo, metido num manto grego, coroado de louros, muito pálido e intelectual. Viu-o e ouviu-o recitando com voz branda trechos de Sófocles, ao passo que vestia máscaras – máscaras que eram todas e sempre a reprodução do seu rosto doentio e vago.”
Lá pelas tantas do romance lemos um diálogo que Acélio mantêm, de forma sempre professoral, com Túlio Altamira, um tipo de artista moderno e desengonçado que resiste aos ataques retóricos do Dr. Castanho com defesas igualmente pedestres. Essa arte “degenerada” de que Acélio tanto falava nada mais seria que não a expressão de pessoas comuns desiludidas com as promessas cristãs que, aparentemente, só se realizam para alguns. Se é que se realizam para alguém.
É no contexto desse debate que Acélio Castanho envolve os judeus, sem nenhuma razão aparente que não um antigo e secreto plano sionista que mina o edifício social que tipos como Eunice e Acélio parecem tão intensamente estimar.
Vejamos. Acélio Castanho é representado no romance como alguém culto. Não se pode dizer dele que seja um degenerado espiritual. Mas mesmo sua cultura clássica não consegue livrá-lo de uma visão caricata e superficial do que seja a civilização.
O Brasil de hoje parece reviver algumas Eunices e Acélios, – bem como alguns Felipes Lobo, que assistem ao debate intervindo somente para defender as grandes realizações da engenharia como o único sinal verdadeiro do progresso humano – indivíduos que defendem coisas tão vagas como liberdade e civilização sem se preocuparem em expor a um debate racional o conteúdo daquilo que se limitam a rotular.
A defesa, no Brasil de 2022, da possibilidade de criação de um Partido Nazista como expressão do direito à liberdade não é nada que não uma dessas adesões eufóricas e canhestras de ideais toscos que, genericamente reverenciados, dificilmente valem a saliva gasta.
Vemos hoje com inquietante frequência um debate público de Acélios – professorais, legítimos defensores da alta cultura –, Felipes – brutos e indiferentes, que sequer se chocam com o tom antisemita de determinadas falas – e Altamiros – tipos tão dispostos a se contrapor à ordem econômica e social vigente que só fazem uma defesa pedestre com sinal trocado.
O problema de tudo isso é que os grandes horrores do século XX foram edificados exatamente sobre esse mesmo material bruto: a indiferença e a simplificação. É como observou Eric Voegelin:
“Pois o nacional-socialismo é, na verdade, precedido por uma sociedade em que ele chegou ao poder, e a condição espiritual de uma sociedade em que o nacional-socialismo tenha chegado ao poder não é compensada pelo fato de um governo nacional-socialista ter sido militarmente vencido. Ao contrário, essa situação permanece depois da derrota militar, assim como existiu antes.”[1]
As grandes tragédias nasceram, em geral, de sociedades que mantiveram relações pobres e toscas com os ideais que buscaram defender: o ocidente, a liberdade, as virtudes cristãs, a supremacia militar etc. A sociedade degenerada precede e sucede o regime político decorrente de sua lastimável situação espiritual.
A situação hoje parece a mesma daquela denunciada por Theodor W. Adorno em 1967, em sua preleção Aspectos do Novo Radicalismo de Direita, quando se utiliza do exemplo da “fetichização de tudo o que é militar”: “(…) deve-se alertá-los [a juventude] do culto de uma assim chamada ordem, que por seu lado não se verifica pela razão; deve-se alertá-los sobretudo do conceito de disciplina, que é apresentada como um fim em si, sem que sequer a pergunta “disciplina para quê?” seja feita.”[2]
A partir de uma frase de Mark Twain, Eric Voegelin comentou em Hitler e os Alemães:
“Mark Twain diz que a democracia se assenta em três fatores: “a liberdade de expressão, a liberdade de consciência e a prudência de nunca praticar nenhuma delas”
(…)
Toda sociedade que funciona, uma sociedade de patrícios, é fundada na cortesia, nos compromissos, na concessão às outras pessoas. Quem quer que tenha uma ideia fixa e queira realizá-la, ou seja, quem quer que interprete a liberdade de expressão e a liberdade de consciência de tal modo que a sociedade deva comportar-se da maneira que ele considera correto, não está qualificado para ser cidadão de uma democracia.
(…)
Agora estamos excelentemente equipados com a liberdade de expressão e a liberdade de consciência nesta República Federal, mas, com relação ao terceiro fator que Mark Twain enfatizou, a sabedoria ou inteligência de não fazer uso incondicional desses direitos, ainda persiste uma ominosa falta. E uma democracia não funcionará se faltar essa sabedoria.”[3]
Poucas pessoas no debate público parecem realmente preocupas com o “para quê?” dos valores que defendem. Liberdade para quê? Progresso para quê? Maioria para quê? Tampouco com a sabedoria de não os utilizar incondicionalmente.
Se não respondermos a essas perguntas cairemos fatalmente naquilo que Anthony Giddens em seu Para Além da Esquerda e da Direita definiu como “fundamentalismo”: uma tradição defendida de modo tradicional. Ou seja, meramente afirmada em sua “verdade ritual”, a sabedoria incorporada nas tradições do passado e que o uso contínuo consagrou.[4]
A discussão tende a girar em torno de rótulos picarescos de reformadores que “agindo sempre com um espírito de progresso, encontra motivos para mudar tudo aquilo que não lhe apresenta razões para se conservar”[5] e conservadores, defensores de uma tradição degenerada em simples radicalismo.[6]
É perigoso que alguns comunicadores públicos se sintam tão confortáveis em defender ideias tão absurdas debaixo do signo da liberdade, como se estivessem a, despreocupadamente, observar os lírios do campo.
Os campos de que devemos tomar lições são outros. Aqueles que ceifaram vidas e dividiram famílias. Aqueles das quais “(n)inguém deve sair” pois “poderia levar ao mundo, junto com a marca gravada na carne, a má nova daquilo que, em Auschwitz, o homem chegou a fazer do homem.”[7]
Como se sabe, o título do romance de Veríssimo foi tirado do Sermão da Montanha, episódio em que Cristo ensinou seus discípulos a se concentrarem apenas nas verdadeiras preocupações, cientes de que Deus lhes proverá do restante: “A cada dia basta o seu mal” (Mt 6, 34)[8].
Não negligenciemos os males de ontem, tampouco permitamos que sejam esquecidos.
[1] Eric Voegelin, Hitler e os Alemães, 1. Ed., São Paulo: É Realizações, trad. Elpídio Mário Dantas Fonseca, 2007, p. 106.
[2] Theodor W. Adorno, Aspectos do Novo Radicalismo de Direita: Conferência, 1. Ed., São Paulo: Editora UNESP, trad. Felipe Catalani, 2020, pp. 58-59.
[3] Eric Voegelin, Hitler e os Alemães, cit., pp. 115-116.
[4] Anthony Giddens, Para Além da Esquerda e da Direita. O Futuro da Política Radical, 1. Ed., São Paulo: Editora UNESP, trad. Alvaro Hattnher, 1996, pp. 58-59.
[5] Roger Scruton, O que é Conservadorismo?, 1. Ed., São Paulo: É Realizações, trad. Guilherme Ferreira Araújo, 2015, p. 41.
[6] Anthony Giddens, Para Além da Esquerda e da Direita, cit., pp. 31 ss.
[7] Primo Levi, É isto um homem?, Editora Rocco, pp. 77-78.
[8] Bíblia de Jerusalém, 2002, São Paulo: Paulus, p. 1714.