Nas últimas semanas, muito se falou a respeito do Mecanismo de Ressarcimento de Prejuízos (ou “MRP”), disponibilizado pela [B]³ S.A. (Brasil, Bolsa, Balcão ou “[B]³”) aos investidores da bolsa brasileira, pois se noticiou o aumento de mais de oito vezes no número de recursos que tratam da matéria submetidos à Comissão de Valores Mobiliários (ou “CVM”), se comparado o primeiro semestre de 2021 com igual período do ano passado.[1]
O MRP é, em apertada síntese, um procedimento extrajudicial à disposição do investidor da bolsa brasileira que proporciona a indenização de prejuízos sofridos em decorrência de determinadas falhas de corretoras e de outros intermediadores de operações com valores mobiliários autorizados a operar na bolsa brasileira.
Regulamentado pela Instrução Normativa CVM de nº 461/2007 e pelo regulamento próprio da BSM Supervisão de Mercados (ou “BSM”) – empresa que integra o grupo formador da [B]³ e é responsável pela supervisão das operações no âmbito da bolsa brasileira –, o procedimento permite que investidores reclamem administrativamente o ressarcimento de prejuízos, no limite de 120 mil reais, decorrentes de ações ou omissões de corretoras e outros intermediadores atuantes na bolsa brasileira.
Nos termos do art. 77 da IN CVM nº 461/2007, são hipótese autorizadoras do ressarcimento de prejuízos via MRP (i) a existência de vícios na execução de ordens de compra e venda de valores mobiliários, (ii) o uso inadequado de ativos, (iii) transações envolvendo ativos ilegítimos ou de circulação restrita; (iv) irregularidades em endossos em valores mobiliários ou em procurações necessárias para sua transferência; (v) a intervenção ou a liquidação extrajudicial a que estejam sujeitas as corretoras ou intermediadores de operações com valores mobiliários; ou (vi) o encerramento das atividades de tais partícipes do mercado.
Para dar início ao pedido de indenização, o investidor que se viu lesado em razão de uma das causas descritas acima formula seu pedido administrativo de ressarcimento junto à BSM, responsável por julgar o caso. Da decisão proferida no âmbito do BSM caberá recurso administrativo destinado à CVM, autarquia que dará a última palavra com relação à existência ou não do direito à reparação pleiteado, ao menos no âmbito administrativo.
Segundo o último relatório anual divulgado pela BSM, relativo ao ano de 2020, foram 1.422 reclamações protocoladas via MRP versus 1.164 em 2019 e 793 em 2018. Os principais motivos ensejadores dos requerimentos são, segundo o balanço, causas ligadas a prejuízos decorrentes de falhas nas plataformas das corretoras, à transmissão de ordens de compra ou venda de valores mobiliários ou, ainda, em razão de liquidação extrajudicial de corretoras ou intermediadores, motivos que fundamentam quase dois terços (65%) dos casos.[2]
Em razão da elevação no número de pedidos de ressarcimento formulados e da necessidade de dar maior vazão aos recursos a ela submetidos, a CVM, recentemente, criou uma área especializada no julgamento de tais casos e disponibilizou uma cartilha aos investidores para solução de dúvidas e divulgação de orientações gerais para a formulação e instrução de pedidos dessa natureza.
Embora 2020 não tenha sido o ano em que os investidores receberam o maior volume indenizatório, as indenizações concedidas por meio do MRP somaram, entre 2012 e 2020, quase 41 milhões de reais.[3]
Em que pesem os números mostrarem que a quantidade de tais procedimentos e o montante indenizado aos investidores nesse âmbito vêm aumentando, dados disponibilizados em pela [B]³ em dezembro de 2020 revelam que apenas 11% dos investidores sabem da existência do mecanismo, dos quais menos de um terço estão familiarizados com o MRP a ponto de saber como utilizá-lo.[4]
Essa constatação parece especialmente preocupante diante do fato de que nunca houve tantas pessoas físicas investindo na bolsa de valores brasileira como hoje[5], as quais, com poucos recursos e baixa proteção, estão sujeitas a riscos desconhecidos que vão muito além da volatilidade própria do mercado.
No ponto, Alexander Dyck, Adair Morse e Luigi Zingales, em artigo não muito antigo, defendem, com base estatística, que a probabilidade de uma companhia aberta cometer fraude em um determinado ano é de 14,5%, sendo que, em períodos normais, o incentivo ao engajamento na detecção de tais fraudes pelos vários partícipes do mercado é baixo, quase um quinto do que seria em períodos extraordinários, aqueles vividos após as grandes crises ou os grandes escândalos no mercado.[6]
Nesse contexto, o que os números acima apresentados e as notícias recentemente divulgadas a respeito do MRP não chegam a revelar ao público é a absoluta limitação de tal instituto no que diz respeito à reparação efetiva dos investidores quando expostos a fraudes ocorridas no âmbito do mercado de capitais brasileiro.
Ora, não há dúvidas de que o aumento no número de procedimentos administrativos como o MRP e nos valores indenizados aos investidores por meio de tais mecanismos é fato que deve ser comemorado. Contudo, não se pode deixar de anotar a sua insuficiência frente ao cenário vivido hoje pelos investidores brasileiros, que sofrem da ausência de efetiva proteção e reparação.
Primeiro, porque o MRP, como se demonstrou acima a partir das possíveis causas para sua propositura, é instrumento de abrangência bastante limitada, pois adstrito à reparação de prejuízos causados por corretoras no âmbito das operações do mercado, restritas ainda ao patamar indenizatório de 120 mil reais individuais. Em outras palavras, essa via administrativa de ressarcimento não protege os investidores de ilícitos cometidos no mercado pelas próprias companhias emissoras, tampouco permite que as vítimas recebam indenização superior aos valores já mencionados ou decorrentes de outros tantos ilícitos que os partícipes do mercado podem vir a cometer para além daqueles tipificados no art. 77 da IN CVM nº 461/2007 – como é o caso, por exemplo, de violações ao dever de informar, diretriz estruturante da proteção da higidez do mercado de capitais. Daí Guilherme Setoguti Pereira classificar o MRP como nada mais do que “uma espécie de seguro de responsabilidade civil, que indeniza danos advindos das atividades de intermediação e custódia exercidas pelas corretoras de valores mobiliários.”[7]
Depois, porque, fora do âmbito do MRP, até hoje nenhum investidor foi indenizado por prejuízos sofridos no mercado de capitais brasileiro em razão de violações ao dever de informar por companhias emissoras – o mais grave ilícito que pode ser cometido nessa seara, em nossa avaliação.
Em pesquisa desenvolvida sobre esse tema, Viviane Muller Prado levantou que, até 2018, foram levadas ao Poder Judiciário apenas 9 (nove) ações discutindo indenizações em função de falhas no dever de informar das companhias e administradores, dentre as quais 4 (quatro) ações individuais, 3 (três) ações civis públicas movidas pelo Ministério Público e outras 2 (duas) ações civis públicas movidas por associações de investidores. Ademais, em nenhuma delas houve a condenação dos réus ao pagamento de indenização aos investidores supostamente lesados pelas condutas fraudulentas ocorridas.[8]
Guilherme Setoguti Pereira também demonstrava, em 2016, que melhor sorte não tiveram os investidores nas cortes arbitrais, identificando que era extremamente reduzido o número de procedimentos arbitrais instaurados na Câmara de Arbitragem e Mercado (CAM) [9], vinculada à [B]³, importando em não mais do que 5 (cinco) processos que discutiam o descumprimento do regramento dos valores mobiliários e a indenização de investidores.
E tal constatação manteve-se verdadeira: não houve condenação de companhias emissoras a indenizar investidores prejudicados no âmbito do Poder Judiciário e, analisando-se dados apurados em 2019, são apenas 6 (seis) os procedimentos arbitrais na CAM que possuem matéria ligada a operações no mercado de capitais, o que representa apenas 8% dos procedimentos hoje em andamento na referida Câmara, nenhum deles definitivamente concluído, até o momento, de forma favorável aos investidores.[10]
Por outro lado, companhias brasileiras que também ofertam seus valores mobiliários no exterior estão sendo chamadas a indenizar os investidores que adquiriram seus ativos em outros países, como foi o caso ocorrido com Petrobras – para se eleger um exemplo de um caso que foi amplamente noticiado no país.
Aliás, considerando o acordo de 3 bilhões de dólares firmado pela Petrobras nos Estados Unidos para encerrar a securities class action lá ajuizada[11], caso fosse aplicada a mesma regra de indenização prevista no referido acordo em benefício investidores que adquiriram suas ações na bolsa brasileira, onde está em free float a maior parte das ações da companhia, a petrolífera brasileira teria pago cerca de US$ 6,25 bilhões de dólares americanos em indenizações no Brasil.
Muito diferente desse cenário, porém, fato é que, até hoje, nenhum investidor que detinha ações da Petrobras no Brasil quando revelados os abusos e as fraudes cometidas pela companhia e por seus agentes foi ressarcido pelos prejuízos sofridos.
E exemplos como esse geram, em nossa visão, uma punição dúplice a investidores do mercado de capitais brasileiro, eis que estes não sofrem prejuízos apenas em função da desvalorização de seus ativos em razão da fraude cometida por terceiros, como também acabam pagando, de forma indireta, pelas indenizações multimilionárias devidas pelas companhias aos investidores localizados em países cuja preocupação com o bem estar de seus mercados é maior.
Sabe-se bem que a doutrina nacional sempre dissertou a respeito das modificações no âmbito do direito material societário e do mercado de capitais voltadas a acompanhar a evolução do tratamento dessas matérias no direito comparado. Nesse contexto, não faltam manuais de direito societário e de mercado de capitais, descrevendo os ditames básicos das Leis nº 6.404/76 (Lei das S.A.), nº 6.385/76 (Lei do Mercado de Capitais) e suas reformas.
Contudo, igual reflexão não chegou ao campo da (ausência de) efetividade da proteção dos investidores no âmbito do direito societário e do mercado de capitais no Brasil, que está umbilicalmente conectada aos mecanismos jurídicos de cumprimento forçado colocados à disposição dos participantes do mercado e à análise de seu funcionamento.[12]
E é esta provocação – a necessidade de se discutir a (ausência de) efetividade dos instrumentos de proteção e reparação dos investidores no mercado de capitais brasileiro – que o texto de hoje visa trazer em meio às recentes notícias ligadas ao MRP, problema este que, em diferentes capítulos, não tardará a retornar a esta coluna.
De forma geral, torcemos para que as boas notícias a respeito do aumento no número de procedimentos administrativos de ressarcimento a investidores via MRP sejam apenas o início de uma longa e necessária caminhada rumo a uma melhor proteção e a um ressarcimento mais efetivo dos investidores no âmbito do mercado de capitais brasileiro.
[1] Por todos, confira-se a notícia divulgada n’O Estado de São Paulo, versão digital e impressa, em 29/07/2021: Pedidos de indenização à CVM por prejuízos na Bolsa crescem 810%. Disponível em: https://economia.estadao.com.br/noticias/mercados,pedidos-indenizacao-ressarcimento-cvm-prejuizos-bolsa-crescimento,70003792830, acesso em 29/07/2021.
[2] BSM Supervisão de Mercados. Relatório Anual 2020. Disponível em: https://www.bsmsupervisao.com.br/assets/file/BSM_Relatorio-Anual-2020.pdf, acesso em 16/08/2021, p. 26.
[3] Idem, p. 27.
[4] BRASIL, BOLSA, BALCÃO – [B]³. A Descoberta da Bolsa pelo Investidor Brasileiro – dezembro/2020. Disponível em: http://www.b3.com.br/lumis/portal/file/fileDownload.jsp?fileId=8AE490CA76400395017662491534717C, acesso em 16/08/2021, p. 25.
[5] Ibidem, p. 3 e Idem. Uma Análise da Evolução dos Investidores Pessoa Física na B3 de abril de 2020. Disponível em: http://www.bmf.com.br/portal/pages/newsletter/BMFBOVESPA/Downloads/Estudo_PF-final.pdf, acessado em 16/08/2021, p. 8
[6] DYCK, Alexander; MORSE, Adair; e ZINGALES, Luigi. How Pervasive is Corporate Fraud? In: Rotman School of Management Working Paper nº 2222608, fevereiro de 2013. Disponível em SSRN: https://ssrn.com/abstract=2222608, acessado em 31/08/2020, p. 29.
[7] PEREIRA, Guilherme Setoguti J. Enforcement e Tutela Indenizatória no Direito Societário e no Mercado de Capitais. São Paulo: Quartier Latin, 2018, p. 187.
[8] PRADO, Viviane Muller. Os Desafios para o Ressarcimento de Investidores. In: CARVALHOSA, Modesto; LEÃES, Luiz Gastão Paes de Barros; e WALD, Arnoldo (Org.). A Responsabilidade Civil da Empresa Perante os Investidores: Contribuição à Modernização e Moralização do Mercado de Capitais. São Paulo: Quartier Latin, 2018, Cap. 8, pp. 378-394.
[9] Para as empresas listadas no Novo Mercado ou nos segmentos de Nível1, Nível 2 e Bovespa Mais de Governança Corporativa da [B]³, há a imposição regulamentar de que seus estatutos sociais veiculem cláusula compromissória estatutária elegendo a Câmara de Arbitragem e Mercado (CAM), vinculada à [B]³, como sede da resolução de eventuais disputas surgidas no âmbito societário das companhias.
[10] CÂMARA DO MERCADO E ARBITRAGEM. Estatísticas 2019. Disponível em: http://www.b3.com.br/pt_br/b3/qualificacao-e-governanca/camara-de-arbitragem-do-mercado-cam/sobre-a-cam/, acesso em 30/07/2021.
[11] PETRÓLEO BRASILEIRO S/A. Comunicado ao Mercado de 03/01/2018. Disponível em https://petrobras.com.br/fatos-e-dados/assinamos-acordo-para-encerrar-class-action-nos-eua.htm, acessado em 30/07/2021.
[12] PRADO, Viviane Muller. Os Desafios para o Ressarcimento de Investidores…Cit., p. 368.