Em março foi celebrado o Dia Internacional das Mulheres, mas é muito importante discutir e trazer à tona relatos e vivências de grupos marginalizados o tempo todo, especialmente dentro do escopo de vulnerabilidade no qual estão inseridas as mulheres na sociedade brasileira, promovendo a conscientização e a quebra de estigmas sociais que perpetuam a segregação. Para esse propósito, falar do presente é importante, como é importante falar do futuro e também do passado.
O tema escolhido para este artigo é o das mulheres afetadas pela hanseníase no Brasil.
Dentre o conjunto de normas nacionais e internacionais de proteção aos direitos humanos das mulheres, destaca-se a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher de 1979, incorporada ao ordenamento jurídico nacional através do Decreto nº 4.377 de 2002, visando proteger a mulher contra qualquer ato discriminatório. Para este instrumento legislativo, a discriminação se reproduz quando há exclusão ou restrição com base no sexo ou gênero e que resulte prejuízo ou anulação de reconhecimento, gozo ou exercício de liberdades fundamentais em qualquer área de atuação.
Dessa forma, dentro da temática da vulnerabilidade da mulher na sociedade brasileira, será tratada especificamente a questão das mulheres com hanseníase. Esta enfermidade, por sua vez, é uma doença infecciosa, transmissível e de caráter crônico, que ainda persiste como problema de saúde pública no Brasil, apesar de ser curável (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2022, p.8).
O Brasil, segundo informações da Organização Mundial da Saúde, é o segundo país com maior número absoluto de casos de hanseníase, ficando atrás apenas da Índia, chegando a quase 30.000 novos casos diagnosticados por ano[1]. Assim, é importante recordar que no período compreendido de 1923 a 1986, foi instituída no Brasil a política para o combate a essa enfermidade, política essa baseada no isolamento compulsório e na separação dos filhos das pessoas acometidas pela doença.
Tal enfermidade, ao longo da história, foi marcada por uma visão preconceituosa, de forma que, carregadas de estigma e discriminação, as pessoas afetadas pela hanseníase possuem até hoje diversas barreiras sociais e institucionais que impedem a fruição de seus direitos, o exercício de sua cidadania e o acesso ao mais alto padrão de saúde possível.
Conforme expõe a Relatora Especial da ONU, Alice Cruz, no relatório intitulado “Stigmatization as dehumanization: wrongful stereotyping and structural violence against women and children affected by leprosy”, a hanseníase deve ser analisada através de uma estratégia multissetorial, de forma que seja possível distinguir a discriminação entre os diversos grupos e contextos culturais. (UNITED NATIONS, 2019).
Neste sentido, dentro do grupo de pessoas afetadas pela hanseníase, existem subgrupos vulneráveis e que, hoje, considerando propostas de uma reparação integral aos danos sofridos, demandam uma maior atenção e uma análise pormenorizada, como é o caso das mulheres isoladas compulsoriamente, das mães que foram separadas dos seus filhos e das meninas separadas dos pais e submetidas a tortura e abuso sexual.
O isolamento e a separação foram medidas sanitárias no bojo das quais foram praticados outros atos que causaram danos de difícil reparação e que até hoje seguem sem a devida reabilitação, a saber: lesões físicas e psíquicas que, em interação com as barreiras sociais, ainda hoje impedem o exercício da cidadania e configuram deficiência; traumas decorrentes de abusos sexuais na infância; preconceito e estigma que ainda hoje permanecem arraigados na sociedade (PERUZZO et. alii., 2022).
Nas palavras de Marcela Gonçalves, “a mulher já carrega consigo um fardo social imposto ao gênero, e ser mulher com hanseníase vem a acrescentar pesos que são agravados pelas desigualdades sociais” (GONÇALVES, 2020, p. 89). Ou seja, a intrínseca relação de assimetria de poder existente na sociedade patriarcal é aumentada quando analisamos um grupo mais estigmatizado e consequentemente mais vulnerável.
Assim, conforme o entendimento da Relatoria Especial anteriormente mencionada, as mulheres afetadas pela hanseníase são um grupo que, através de uma desvalorização histórica, sofreram e ainda sofrem uma distribuição desigual de poder que limita a autonomia e a devida participação na sociedade, sendo que há uma “ausência de planos específicos por parte dos governos para atender às necessidades de mulheres afetadas pela hanseníase” (UNITED NATIONS, 2019, p. 16).
A título de exemplo, são citados no referido relatório da Relatora Especial da ONU a expulsão de mulheres de suas casas, maus tratos em ambiente doméstico em razão da “dificuldade da mulher em desempenhar o papel que dela se espera (devido à dor e outras deficiências físicas causadas pela hanseníase)” (UNITED NATIONS, 2019, p. 10), além das práticas institucionalizadas, na década de XX, como a política de combate à enfermidade com separação dos filhos de suas mães logo após o seu nascimento, bem como a proibição de amamentação.
Neste sentido é o depoimento de Perina Maria de Vasconcelos, no documentário “Filhos separados pela injustiça” de 2017, relatando que, logo após os partos de seus primeiros filhos, as crianças foram supostamente levadas para “observação” em outro local e, pouco tempo depois, informaram à mãe que as crianças teriam falecido, sem que fosse dada a ela a oportunidade de velar os corpos, ou sequer se despedir (FILHOS…, 2017).
Os depoimentos das mães que foram separadas dos seus filhos evidenciam a ocorrência de atos que configuram violência obstétrica, na medida em que negam direitos obstétricos reconhecidos pela Convenção e pelo Comitê sobre a eliminação de todas as formas de discriminação contra a mulher da ONU. Além de ter incorporado essa convenção, o Brasil também reconheceu a competência do Comitê respectivo para recebimento de denúncias individuais pelo Decreto nº. 4.316/02. Um dos casos individuais contra o Brasil mais emblemáticos nesse comitê é o caso “Alyne da Silva Pimentel” (PERUZZO; PERES, 2021).
Na Recomendação Geral nº 24 do referido Comitê, constam especificações acerca das medidas a serem tomadas pelos Estados signatários no momento da interpretação e implementação do artigo 12 da Convenção. Além disso, aborda o tema da violência contra a mulher no campo da saúde, assegurando esse direito sem nenhum tipo de discriminação.
Em relação ao artigo 12, parágrafo 2º da Convenção, o Comitê previu a obrigação do Estado parte de garantir a proteção aos direitos sexuais e reprodutivos da mulher, de forma a assegurar os serviços de maternidade e de emergência de obstetrícia seguros.
Nessa linha, no caso Alyne da Silva Pimentel, o Comitê se apoiou na Recomendação Geral nº 28, que trata do alcance da interpretação do artigo 2º da Convenção, e concluiu que o Brasil não atendeu às necessidades específicas e distintas da saúde da mulher no caso da vítima Alyne, que perdeu o bebê e morreu por negligência médica. Por isso, ocasionou a violação não só do artigo 12, parágrafo 2º, mas também da discriminação contra as mulheres, prevista no parágrafo 1º do artigo 12 e também no artigo 2º da Convenção (CEDAW, 2011).
No caso Alyne Pimentel, o comitê também reconheceu a alegação dos peticionários no sentido de que Alyne sofreu discriminação múltipla, pois foi discriminada em razão do sexo e de sua condição de mulher afrodescendente e de classe socio econômica desfavorecida (PERUZZO; PERES, 2021), o que também evidencia uma relação bastante próxima com a situação das mulheres pacientes de hanseníase.
Ainda, as barreiras impostas à fruição dos direitos e inclusão na sociedade também se encontram no mercado de trabalho, tendo em vista que a estreita compreensão da hanseníase como uma condição biológica atrelada ao estigma e discriminação faz com que muitas mulheres não consigam ter acesso às oportunidades profissionais e, quando conseguem, o trabalho se configura de forma majoritariamente informal e não remunerado.
Conforme registra a Relatora da ONU para a hanseníase, estudos apontam para um maior risco das mulheres enfermas desenvolverem deficiências físicas e incapacidades relacionadas à enfermidade (UNITED NATIONS, 2019, p. 6), o que intensifica ainda mais a discriminação contra essas mulheres, tendo sua individualidade reduzida apenas à enfermidade, mesmo que já curadas ou em tratamento, diminuindo, assim, ainda mais o acesso às oportunidades de trabalho e outras medidas de inclusão social.
Percebe-se, também, que as diversas violações às mulheres não se restringem apenas às que possuem a doença, mas também se estende aos filhos separados de pais com hanseníase que também sofrem repetidas violações em razão do estigma e preconceito.
Durante a política segregacionista no Brasil, essas crianças foram separadas de seus pais logo após o nascimento, mesmo sem possuir a doença, e encaminhados, em regra, para os preventórios ou educandários. Marcados pelo mesmo estigma suportado pelos seus genitores, as crianças sofreram todos os tipos de abusos, dentre violências psicológicas, físicas e sexuais, como consta do relato de Maria Luiza da Silva, no documentário “Filhos separados pela Injustiça” (Filhos…, 2017). Outros relatos podem ser encontrados no site Memorial Hanseníase, especificamente na aba onde são sistematizados depoimentos constantes em vídeos disponíveis para acesso público e gratuito[2].
Neste cenário, é possível perceber que a falta de conhecimento sobre a hanseníase contribuiu para o processo ainda maior de marginalização de mulheres que são portadoras da enfermidade, que suportaram no passado um processo discriminatório institucionalizado pelo Estado e sofrem hoje os resquícios e consequência (físicos e psicológicos) dessas políticas. Portanto, “para quebrar a sua cadeia, as Práticas Educativas em Saúde constituem–se ferramentas importantes, especialmente por terem a capacidade de desmistificar representações sociais enraizadas sobre o tema” (SANTANA e col., 2017, p.7).
Nesse sentido, diante do quadro apresentado, fica evidente que dentro de uma minoria já vulnerável, a das mulheres na sociedade brasileira, existe um subgrupo ainda mais estigmatizado, que são aquelas mulheres atingidas pela hanseníase, bem como suas filhas, que sofreram e sofrem ainda hoje os impactos de uma política de discriminação e segregação, baseada na retirada dessas mulheres do convívio da sociedade e das suas próprias famílias, não tendo acesso a inúmeros direitos consagrados no ordenamento jurídico interno e nos tratados internacionais – como a possibilidade de viver uma vida sem discriminações, acesso a emprego digno e remunerado, planejamento familiar e outros direitos humanos fundamentais.
Portanto, num mês em que se pauta a visibilidade da mulher, relembrar momentos históricos como a política segregacionista de hanseníase (que ainda tem seus reflexos nos dias de hoje) se mostra fundamental. No entanto, para que as lutas dos grupos marginalizados alcancem reconhecimento nacional, para que seus direitos possam ser finalmente assegurados, é imprescindível falar sobre essa luta por direitos o ano todo.
[1] Somando 26.875 novos casos em 2017 e 28.660 novos casos em 2018, conforme apontado pela Organização Mundial da Saúde (WHO, 2019).
[2] Cf. <https://www.memorialhanseniase.com.br/wiki/V%C3%ADdeos> Acesso em 23 de março de 2023.
Referências
Filhos Separados pela Injustiça. Direção e roteiro por Elizabete Martins Campos. Produção por Thiago Pereira da Silva Flores. Betim: IT Filmes, Comunicação e Entretenimento, 2017. Documentário. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=cs0ejDWNxY0. Acesso em: 09 mar. 2023.
UNITED NATIONS. General Assembly. Stigmatization as dehumanization: wrongful stereotyping and structural violence against women and children affected by leprosy – Report of the Special Rapporteur on the elimination of discrimination against persons affected by leprosy and their family members nº A/HRC/41/47. Human Rights Council. Geneva, 2019.
GONÇALVES, Marcela. Mulheres com hanseníase: interferências nos modos de viver. 2020. Dissertação (Mestrado em Enfermagem em Saúde Pública) – Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto, 2020. doi:10.11606/D.22.2020.tde-06072020-141141. Acesso em: 2023-03-10.
SANTANA, Leilane Dias; SILVA, Susanne Pinheiro Costa e; LIRA, Margaret Olinda de Souza Carvalho e; VIEIRA, Michelle Christini Araújo; SANTOS, Nádya Thalita Novaes dos; SILVA, Tuanny Ítalla Marques da. Significado da doença para mulheres com hanseníase. Revista de Enfermagem da Ufsm, [S.L.], v. 7, n. 1, p. 111, 3 jul. 2017. Universidade Federal de Santa Maria. http://dx.doi.org/10.5902/2179769224824.
BOLETIM EPIDEMIOLÓGICO. Brasília: Secretaria de Vigilância em Saúde | Ministério da Saúde, jan. 2022.
BRASIL. Decreto nº 4.377, de 13 de setembro de 2002. Promulga a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, de 1979, e revoga o Decreto no 89.460, de 20 de março de 1984.. . Brasília.
WORLD HELTH ORGANIZATION. Weekly Epidemiological Record, 30 August 2019, vol. 94, 35/36 (pp. 389–412).
PERUZZO, P. P. et al. Contribuição para o relatório temático da relatora especial das Nações Unidas para a eliminação da discriminação contra as pessoas atingidas pela hanseníase e seus familiares ao Conselho de Direitos Humanos da ONU. Revista de Direitos Humanos e Desenvolvimento Social, v. 2, e215791, 2021. https://doi.org/10.24220/2675-9160v2e2021a5791
PERUZZO, Pedro Pulzatto; PERES, Bruna Lopes. O caso Alyne Pimentel na jurisprudência do Tribunal Regional Federal da 3ª Região e Tribunais de Justiça de São Paulo e Mato Grosso do Sul. Revista Gênero. v 21. n2. 2021.
CEDAW. Communication No. 17/2008. New York: CEDAW, 2011. Disponível em: https://bit.ly/3t8OR2J. Acesso em: