A proposta de nossa coluna mensal – sempre na primeira segunda-feira do mês -, denominada “Fronteiras do Direito”, tem como intuito provocar a possibilidade de uma abertura do pensamento jurídico para outras formas de conhecimento, saberes e métodos.
A insistência de pensar o direito nos trilhos de uma discussão que ainda permaneça na ciência leva em conta o fato de que a ciência jurídica é um elemento fundamental da tradição do pensamento ocidental, pois, pelo menos desde o século XII, os estudiosos do direito compuseram uma série de estudos dispostos a ordenar e sistematizar os conjuntos de textos normativos.
A rigor, a ciência do direito, nesse contexto, é a própria base das ciências sociais. Isto é muito pouco evidenciado nos escritos sobre o direito, muito provavelmente pelo ranço da noção de “rigor” causado na tentativa de acesso “científico” das formas jurídicas e, também, em razão de como seu estudo se comprometeu com a analogia das pesquisas nas então chamadas ciências da natureza – em especial na matemática – e isto gerou a construção dos grandes modelos sistemáticos de conhecimento do direito e teve como apogeu o século XVIII, cuja depuração máxima foi sentida com a doutrina (Lehre) kelseniana nos séculos XIX e XX.
Harold Berman chega a afirmar que a ciência jurídica representa uma espécie de “protótipo” das ciências ocidentais (modernas) e não o contrário, como comumente se identifica. Nas palavras do autor: “uma ciência, no sentido ocidental moderno, pode ser definida por três conjuntos de critérios: o critério metodológico, o da validade e o sociológico. Por qualquer um dos três, a ciência dos juristas do século XII foi a progenitora das ciências ocidentais modernas.”[1]
Conceber o direito como modelo originário do pensamento científico social corresponde a um primeiro deslocamento na forma de seu pensamento. Da mesma maneira que nas comunidades tribais o sentido do direito entoa as primeiras manifestações sociais, o mesmo se passa como ele sendo modelo do pensamento científico social. No fundo, iniciamos sempre de um mesmo lugar, modificando contornos.
Se o que passamos a denominar direito tem essa potência, não é possível manter sua concepção como algo despregado do que nos constitui enquanto viventes, a saber, seres de (a)bando(no), em outras palavras, políticos. Inclusive, cada vez mais difícil manter essa elaboração nos tempos atuais com a cibernética e uso da inteligência artificial.
Daí a constatação de que direito e política são indissociáveis e, enquanto fenômenos tipicamente humanos, encontram-se enraizados nas dimensões mais profundas do homem, até mesmo em seu próprio corpo[2], que se apresenta como um sustentáculo de ambos, seja nas comunidades tribais, seja na sociedade contemporânea.
Nesta linha de raciocínio, o compromisso de uma investigação política é própria do direito, do mesmo modo que é próprio a este uma investigação política.
O esforço dessa conjunção tem como objetivo realizar um estudo do direito, de caráter fundamental, em conexão com a política. As implicações dessa relação reivindicam uma dimensão de estudos psicológicos.
Direito e política podem ser pensados como dimensões que correspondem, em sua imbricação, aos elementos originários de nossa sociabilidade e a eles deve-se somar um terceiro elemento também dimensional, integrante e fundamental: a nossa psiquê.
Se o sentido do direito e da política vem das relações de troca desde as formas mais rudimentares de nossa sociabilidade, o ocaso da memória também. Basta lembrar da conhecida constatação nietzschiana do homem como ser de esquecimento que aprende a lembrar – ter memória – pelo fato de ser considerado devedor de alguém[3].
Não nos parece viável, portanto, apresentar uma proposta que aposte numa abordagem histórica meramente lógica – histórico-cronológica -, ou mesmo histórico-monumental.
Nietzsche na segunda Consideração extemporânea apresenta a ideia de uma história monumental nos seguintes termos:
“Somente se a Terra iniciasse sempre de novo sua peça de teatro depois do quinto ato, se estivesse firmemente estabelecido que o mesmo nó de motivos, o mesmo deus ex machina, a mesma catástrofe, retornassem a intervalos determinados, poderia o forte desejar a história monumental em toda sua veracidade icônica, isto é, cada fato precisamente descrito em sua especificidade e singularidade: provavelmente, portanto, não antes que os astrônomos se tenham tornado outra vez astrólogos. Até então, a história monumental não poderá usar daquela veracidade total: sempre aproximará, universalizará e por fim igualará o desigual; sempre depreciará a diferença dos motivos e das ocasiões, para, à custa das causas, monumentalizar os effectus, ou seja, apresentá-los como modelares e dignos de imitação: de tal modo que, porque ela prescinde o mais possível das causas, poderíamos denominá-las, com pouco exagero, uma coletânea de ‘efeitos em si’, de acontecimentos que em todos os tempos farão efeito. Aquilo que é celebrado nas festas populares, nos dias comemorativos religiosos ou guerreiros, é propriamente um tal ‘efeito em si’: é ele que não deixa dormir os ambiciosos, que está guardado como um amuleto no coração dos empreendedores, e não a conexão verdadeiramente histórica de causas e efeitos que, completamente conhecida, só provaria que nunca sairá de novo um resultado exatamente igual no jogo de dados do futuro e do acaso”.[4]
Na coluna “Fronteiras do Direito” não pretendemos fazer da história um recurso meramente descritivo e linear, tampouco contar só a história dos vencedores. Buscaremos suas perspectivas e contextos e como o direito se apresenta diante deles.
As primeiras manifestações jurídicas surgem nas comunidades tribais e ordinariamente costuma-se considerá-las como revestidas de caráter religioso, levando-se em conta, principalmente, que as instituições religiosas eram as dotadas de maior autoridade nos grupos sociais nos quais as funções de trabalho individuais e o sentido de vida coletivo ainda não haviam ensejado algo como o Estado.
Nessa ordem, o que se tem é uma conexão entre os fenômenos jurídicos e religiosos a um momento anterior ao da formação da civilização moderna, a um momento no qual os indivíduos prescindiam da crença abstrata de um ente superior, transcendente.
Nesse momento, contudo, nutriam um sentimento diferente acerca do divino e sobrenatural, reconhecidamente um sentimento mágico e não autenticamente religioso. Era justamente nesse processo primevo de humanização que havia a predominância da ancestral de direito pessoal obligatio que vigia nos atos de troca, de escambo – de débito e de crédito; atos que determinam a forma mais antiga das relações humanas nos primórdios dos patamares civilizatórios.
Aqui, os pilares que sustentam a base da nossa investigação se completam. Pensando esses pilares em termos dimensionais temos na origem de nossa sociabilidade as experiências fundamentais do direito, da política, da psicologia e da religião.
Da formação da figura do Estado moderno para os seus desdobramentos, a política ocidental moderna se apresentou, primeiro, como uma sociedade disciplinar formada por sujeitos de obediência que experienciam proibições, mandamento e leis como imperativos que geram loucos e delinquentes. Essa sociedade bem expressa por Michel Foucault tem sua disposição inicialmente ordenada nos séculos XVII e XVIII e firma-se, dali em diante, numa era biopolítica[5].
Posteriormente, no século XX, as experiências sociais retratam o problema de um tempo bacteriológico que movimentou o surgimento de uma era imunológica – bem presenciada, em algum sentido, nos dias de hoje, em razão da pandemia de Covid-19. Essa época estruturou-se na divisão dicotômica do amigo e inimigo, dentro e fora, próprio ou estranho. O risco é sua marca. Um exemplo é a Guerra Fria e como o dispositivo militar do ataque e defesa invoca uma ação imunológica. O que é estranho – mesmo sem ser hostil – é afastado em virtude de sua alteridade.[6]
No século XXI novos contornos se apresentam. O paradigma da sociedade disciplinar – e mesmo de uma sociedade imunológica – sofre uma mudança. Passamos de uma sociedade disciplinar para uma sociedade do desempenho. Nela impera a ideia de positividade: quanto mais produzo, melhor. O sujeito torna-se empresário de si mesmo. Ele continua disciplinado e tem como meta sua máxima produtividade. Do ponto de vista patológico, por definição, ele não é mais bacteriológico nem viral, mas neuronal. A paisagem metodológica é a de doenças como depressão, transtorno de déficit de atenção com síndrome de hiperatividade, síndrome de burnout, dentre outras.[7]
Tudo isso é catalizado pelos incrementos da tecnologia da informação, inteligência artificial e as “big techs” promovendo uma suposta lógica de economia do compartilhamento que, cada vez mais, nos coloca de frente para a necessidade de um máximo desempenho que, se não gerar um infarto do coração, vai gerar um infarto psíquico.
Tais paradigmas causam experiências afetivas que se apresentam como relacionais em nossas vidas. Mesmo que a pandemia de Covid-19 tenha nos retomado a experiência de uma época viral, cuja corrida é para se conseguir a vacina que supera o vírus, é impressionante como o trabalho disciplinado em “home office” e as “lives” têm se tornado uma competição de quem faz e produz mais – e muita das vezes, tendo a si mesmo como concorrente -, tudo no perfeito esquema do supremo desempenho.
Fato é que, desde seu início, as relações humanas são tomadas de dominação e poder e é justamente isto, na matriz do processo da nossa sociabilidade, que envolve as bases da política, do direito, da religião e, inclusive, do processo de desenvolvimento psicológico dos homens.
Os indícios desta investigação fornecem a possibilidade de se deslocar interpretações de conceitos jurídicos fundamentais e permitem uma reflexão diferenciada sobre o relacionamento do direito com o poder e a premente necessidade de ressignificação de conceitos e formas jurídicas.
Tais indícios também revelam que as questões postas como pontos de interlocução em nossa hipótese não são normalmente consideradas como aptas a um tratamento científico, pois não estão de acordo com o padrão ou paradigma predominante na modernidade no direito, a saber, o positivista. O positivismo foi a base na qual se desenvolveu uma crença na possibilidade de se atingir uma verdade definitiva, desde que abdicando de certa dimensão dos problemas que enfrentamos enquanto sujeitos.
Ocorre que é exatamente nessa dimensão subjetiva em que somos atingidos e questionados sobre o valor e sentido de nossa própria existência. Dessa forma, a tarefa a que nos propomos nesta coluna com seus textos é a de ir além deste padrão e compreender que todas as formas do saber são formas de pensamento.
O direito cria conceitos que não são dados prontos e acabados, mas inventados e os demais saberes produzem conhecimentos que são fundamentais na construção dos seus conceitos que, sozinhos, não dão conta de explicarem as mudanças que vivenciamos na contemporaneidade. É por esses caminhos que pretendemos apresentar os textos que traremos aos leitores
Por fim, deixo registrado meu agradecimento, sincero, pela a oportunidade do Portal Contraditor, em especial ao Antonio Carvalho Filho e a Luciana Benassi, de poder apresentar reflexões sobre a teoria e filosofia do direito neste espaço.
[1] BERMAN, Harold. Direito e Revolução, São Leopoldo: Unisinos, 2006, p. 190
[2] ASSMAN, Selvino; PICH, Santiago; GOMES, Ivan Marcelo; VAZ, Alexandre Fernandez. Do poder sobre a vida e do poder da vida: lugares do corpo, biopolítica, Temas e matizes, 2009, v.11, p. 19-27.
[3] Cf. NIETZSCHE, Friedrich W. Genealogia da moral: uma polêmica. Tradução de Paulo Cesar de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. Segunda Dissertação.
[4] Cf. NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Considerações extemporâneas in Os Pensadores (col.), 1974, vol. XXXII, p. 69.
[5] O termo biopolítica instaura um novo modelo de relacionamento humano que ressalta a tomada do poder sobre o homem enquanto ser vivo e que tem no Estado do século XIX sua força catalisadora. Segundo Foucault: […] uma das mais maciças transformações do direito político do século XIX consistiu, não digo exatamente em substituir, mas em completar esse velho direito de soberania – fazer morrer ou deixar viver – com outro direito novo, que não vai apagar o primeiro, mas vai penetrá- lo, perpassá-lo, modificá-lo, e que vai ser um direito, ou melhor, um poder exatamente inverso: poder de ‘fazer’ viver e de ‘deixar’ morrer […]. FOUCAULT, Michel. Aula de 17 de março de 1976 in Em defesa da sociedade, São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 287. Sobre o contexto do conceito de biopolítica e suas formas atualmente, cf. ESPOSITO, Roberto. Bíos: biopolitics and philosophy, Minneapolis: University of Minnesota press, 2008, p. 13-44.
[6] HAN, Byung-Chul. Sociedade do cansaço. Petrópolis/RJ: Vozes, 2015, cap. 1.
[7] HAN, Byung-Chul. Sociedade do cansaço. Petrópolis/RJ: Vozes, 2015, cap. 1.