É PRECISO RECORRER DA DECISÃO DE ADMISSIBILIDADE PARCIAL DO RECURSO ESPECIAL?

É PRECISO RECORRER DA DECISÃO DE ADMISSIBILIDADE PARCIAL DO RECURSO ESPECIALO CPC/2015, embora originariamente tivesse previsto que o juízo de admissibilidade dos recursos extraordinário e especial seria feito uma vez apenas, no STF e no STJ respectivamente, durante o período de vacância, foi alterado pela Lei n. 13.256/2016, que promoveu o retorno à sistemática anterior, prevendo o duplo juízo de admissibilidade desses recursos, pelo tribunal a quo e, se for positivo ou se houver agravo provido, pelo tribunal ad quem.

Diante desse cenário legal, cabe analisar aquelas hipóteses em que o recurso especial é admitido parcialmente no juízo a quo.

Imagine-se que um determinado acórdão de Tribunal de Justiça contenha três capítulos diferentes e é interposto recurso especial em face dele, com impugnação desses três capítulos a partir de três diferentes fundamentos de cabimento do recurso. Analisado o recurso pelo tribunal a quo é ele recebido apenas com relação a dois fundamentos de cabimento (dois capítulos) e inadmitido com relação ao terceiro. A partir disso, cabe questionar: incumbiria à parte recorrente interpor o recurso de agravo (a depender do caso, agravo interno ou agravo em recurso especial) ou poderia o STJ, na fase do seu juízo de admissibilidade, receber o recurso na sua totalidade?

A resposta a esse questionamento parece muito simples: se há dois juízos de admissibilidade, o segundo, do STJ, não está adstrito ao primeiro. Então, uma vez que o recurso tenha sido remetido ao tribunal superior, ainda que com admissibilidade parcial pelo tribunal a quo, caberá ao STJ fazer novo e completo exame dos seus requisitos formais e, se assim entender, poderá recebê-lo no todo.

Entretanto, como costuma acontecer nas questões com respostas aparentemente simples, há divergências e é isso que se buscará analisar neste texto.

A respeito da não vinculação do STJ ao juízo de admissibilidade feito pelo tribunal a quo há vários julgados no tribunal:

“(…) a admissibilidade realizada pela instância a quo não vincula esta Corte Superior, tratando-se de um juízo de duplo controle ou controle bifásico.” (REsp 1.877.338/CE, Rel. Min. Benedito Gonçalves, 1ª Turma, DJe 10/02/2021)

“(…) 4. O juízo de admissibilidade do recurso especial é bifásico, por isso, a decisão proferida pelo Tribunal de origem não vincula esta Corte, que tem competência plena para verificar, novamente, o preenchimento dos pressupostos recursais.” (AgInt no REsp 1.605.431/RS, Rel. Min. Sérgio Kukina, 1ª Turma, DJe 04/02/2019)

“(…) 1. Segundo jurisprudência desta Corte Superior, o juízo de admissibilidade do recurso especial está sujeito a duplo controle, de maneira que a aferição da regularidade formal do recurso pela instância a quo não vincula o Superior Tribunal de Justiça, já que se trata de juízo provisório, recaindo o juízo definitivo sobre este Sodalício, quanto aos requisitos de admissibilidade e em relação ao mérito.” (AgInt nos EDcl nos EDcl no REsp 1.599.447/RJ, Rel. Min. Mauro Campbell Marques, 2ª Turma, DJe 11/06/2018)

Também na doutrina encontram-se lições nesse sentido. Para Araken de Assis, “o STJ não fica adstrito ao juízo positivo: o relator poderá revê-lo e negar seguimento ao especial”[1].  Fredie Didier Jr. e Leonardo Carneiro da Cunha entendem da mesma maneira:

“No tribunal superior é exercido o juízo definitivo de admissibilidade. Admitido que seja o recurso pelo presidente ou vice-presidente do tribunal local, o juízo provisório ali exercido não vincula o tribunal superior, que detém, como dito, o juízo definitivo de sua admissibilidade.”[2]

Nos clássicos comentários ao CPC/1973, Barbosa Moreira já afirmava a não vinculação do tribunal superior:

“Se o admite, não há recurso, mas o pronunciamento do Presidente, irrevogável, não é vinculativo para a Corte, à qual ficará livre conhecer ou não do extraordinário, oportunamente, inclusive acolhendo alguma alegação de inadmissibilidade porventura formulada na impugnação do recorrido e desprezada pelo tribunal a quo”.[3]

De se perceber, pelos trechos dos julgados e pelas lições doutrinárias, que a não vinculação do tribunal superior à decisão sobre admissibilidade do tribunal a quo está sempre fazendo referência a uma decisão positiva de admissibilidade deste último e pressupõe-se, a partir disso, que uma decisão negativa de admissibilidade poderia ser revista pelo STJ no caso de lhe chegar o recurso cabível, qual seja: agravo em recurso especial.

Entretanto, pouco se fala sobre as eventuais decisões de admissibilidade parcial, que é o que se quer analisar aqui.

Luiz Rodrigues Wambier e Eduardo Talamini enfrentam essa questão:

“(…) havendo diferentes capítulos decisórios recorridos, se o recurso houvesse sido admitido no órgão a quo em relação a alguns deles, mas não quanto a outros, ainda assim seria desnecessário o agravo para o tribunal superior (na época, denominado ‘de instrumento’). Já o parágrafo único do art. 1.034 parece restringir a devolução aos fundamentos inadmitidos relativos a um único e mesmo capítulo, em relação ao qual o recurso tenha sido admitido por outros fundamentos. A valer essa leitura restritiva – que não parece ser a mais compatível com os parâmetros de devolução usualmente adotados nem com a economia processual –, haveria a necessidade de agravar da inadmissão do recurso especial ou extraordinário quanto a um capítulo decisório, a despeito de ele haver sido admitido em relação a outro(s). fica a advertência quanto ao risco de que possa vir a prevalecer essa orientação. Mas ela não seria, reitere-se, sistematicamente a mais correta.”[4]

 

Para a compreensão adequada da problemática, é necessário que se analisem os fundamentos determinantes do enunciado 528 da súmula do STF, assim também o art. 1.034, parágrafo único do CPC/2015 e, em alguma medida, o alcance da devolutividade em relação ao juízo de admissibilidade.

O STF, em 1969, consolidou entendimento no enunciado 528 da sua súmula de jurisprudência dominante nos seguintes termos:

“Se a decisão contiver partes autônomas, a admissão parcial, pelo Presidente do Tribunal a quo, de recurso extraordinário que, sôbre qualquer delas se manifestar, não limitará a apreciação de tôdas pelo Supremo Tribunal Federal, independentemente de interposição de agravo de instrumento.”

Com a entrada em vigor do CPC/2015 e a previsão do art. 1.034, parágrafo único, já há quem entenda ter havido a superação desse enunciado de súmula (conforme se pode ver no enunciado 223 do Fórum Permanente de Processualistas Civis – FPPC).

Nos termos do referido dispositivo legal, “admitido o recurso extraordinário ou o recurso especial por um fundamento, devolve-se ao tribunal superior o conhecimento dos demais fundamentos para a solução do capítulo impugnado.”

A questão é saber se essa disposição do CPC/2015 teria o condão de representar a superação do enunciado de súmula 528/STF. Parece-nos que não.

O art. 1.034/CPC está inserido na subseção das disposições gerais a respeito dos recursos extraordinário e especial. Ele é antecedido pelo art. 1.029, que trata das formalidades de interposição; pelo art. 1.030, que dispõe sobre o juízo de admissibilidade pelo tribunal a quo; pelo 1.031, que estabelece regras para os casos de interposição conjunta de RE e REsp; e pelos arts. 1.032 e 1.033, com suas disposições a respeito da fungibilidade recursal.

De se notar que a partir do art. 1.031 o Código começa a tratar dos procedimentos nos tribunais superiores, ao contrário dos artigos anteriores que se referem aos procedimentos no tribunal local.

E isso é importante para compreender a que se referem as disposições do art. 1.034.

O caput do referido artigo dispõe sobre o julgamento do mérito do recurso pelo STJ ou pelo STF após o juízo de admissibilidade. Isso ocorrerá quando for completado o ciclo bifásico do juízo de admissibilidade (tribunal a quo e tribunal ad quem).

O seu parágrafo único, por sua vez, complementa a cabeça do artigo para dispor a respeito do efeito devolutivo do recurso admitido.

Quando ele usa a expressão “admitido o recurso”, é evidente que não está se referindo à admissão que é feita pelo tribunal a quo, pois apenas essa admissão não dá ao tribunal superior a oportunidade de julgar o mérito do recurso. É necessário o novo juízo de admissibilidade, completando-se as duas fases desse procedimento.

Dessa maneira, a devolutividade a que faz referência o parágrafo único do art. 1.034/CPC é referente às questões de mérito do recurso, pois parte do pressuposto de que ele já tenha sido admitido.

Assim, não há que se falar em superação do enunciado de súmula 528/STF, pois este diz respeito à devolutividade das questões relativas à admissibilidade recursal.

Ora, sabendo-se que no recurso há dois planos de análise, o da admissibilidade e o do mérito, não se pode confundi-los.

Aliado a isso, sabendo-se que no caso do RE e do REsp o juízo de admissibilidade não se encerra na atividade do tribunal a quo e depende da atividade do tribunal ad quem, não cabe que se use disposição legal que considera concluído o procedimento bifásico da admissibilidade recursal para aplicação nos casos em que apenas a primeira fase restou concluída.

Assim, partindo do pressuposto que o tribunal ad quem não está adstrito ao juízo de admissibilidade feito pelo tribunal a quo, se este resultou em admissão parcial do recurso especial, haverá a subida dos autos ao STJ, independentemente de agravo, e na segunda fase dessa análise poderá o STJ considerar que o tribunal local equivocou-se ao não receber parcialmente o recurso.

Do contrário, ter-se-ia uma situação bastante estranha e confusa.

Se a inadmissão no tribunal local deu-se com base do art. 1.030, I ou III, o recorrente teria que interpor agravo interno e a subida da parcela admitida do recurso especial teria que aguardar o julgamento daquele recurso.

Por outro lado, se o não recebimento do tribunal a quo baseou-se no art. 1.030, V, caberia ao recorrente interpor agravo em recurso especial, para fazer subir ao STJ aquela parcela do REsp que já subiria de qualquer maneira, tendo em vista a admissibilidade parcial.

Por qualquer ângulo que se analise, percebe-se o completo despropósito de interpretar-se o art. 1.034, parágrafo único/CPC para superar o enunciado de súmula 528/STF.

 

Referências

ASSIS, Araken de. Manual dos recursos, 9ª ed. rev. atual e ampl. São Paulo: RT, 2017.

DIDIER JR., Fredie; CUNHA, Leonardo Carneiro da. Curso de Direito Processual Civil: meios de impugnação às decisões judiciais e processos nos tribunais, vol. 3, 13ª ed. Salvador: JusPodivm, 2016, p. 316.

MOREIRA, José Carlos Barbosa. Comentários ao Código de Processo Civil: arts. 476 a 565, V vol. Rio de Janeiro: Forense, 1974, p. 447

WAMBIER, Luiz Rodrigues; TALAMINI, Eduardo. Curso Avançado de Processo Civil: cognição jurisdicional, vol 2, 16ª ed. São Paulo: RT, 2016, p. 615.

[1] ASSIS, Araken de. Manual dos recursos, 9ª ed. rev. atual e ampl. São Paulo: RT, 2017, p. 971.

[2] DIDIER JR., Fredie; CUNHA, Leonardo Carneiro da. Curso de Direito Processual Civil: meios de impugnação às decisões judiciais e processos nos tribunais, vol. 3, 13ª ed. Salvador: JusPodivm, 2016, p. 316.

[3] MOREIRA, José Carlos Barbosa. Comentários ao Código de Processo Civil: arts. 476 a 565, V vol. Rio de Janeiro: Forense, 1974, p. 447

[4] WAMBIER, Luiz Rodrigues; TALAMINI, Eduardo. Curso Avançado de Processo Civil: cognição jurisdicional, vol 2, 16ª ed. São Paulo: RT, 2016, p. 615.

 

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Autor

  • Professor do Departamento de Direito Processual da UEPG; Coordenador do grupo de pesquisa Observatório Processual do STJ na UEPG; Doutorando em Direito pela UFPR; Mestre em Ciência Jurídica pela UENP; Autor dos Comentários ao Código de Processo Civil pela Editora Juruá; Advogado.



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