Este espaço será dedicado à reflexão de dois conceitos, que à primeira vista parecem conhecidos e complementares: direitos humanos e jurisdição. Em certo sentido, de fato eles se complementam, afinal, se os direitos humanos são direitos e se a jurisdição é a função do Estado de aplicar, de forma imperativa, regras a conflitos jurídicas, podemos concluir que sem direito não há jurisdição e sem jurisdição não há direitos. Este esquema de pensamento é antigo e leva consequências bem conhecidas: direitos humanos são direitos justamente porque podem ser demandados perante órgãos jurisdicionais que têm a função de resolver conflitos de forma definitiva. Disso resulta que os juízes e os juristas assumem uma função singular no sistema democrático: cabe a eles, só a eles, dizer e decidir quem tem qual direito e em que situações o direito de alguém se sobrepõe ao de outros.
Para atingir esse objetivo foram criadas inúmeras teorias e instrumentos de controle da aplicação das normas que tratam, ou afetam, o conteúdo dos direitos humanos. Os nomes e as formas de exposição são variados, mas conhecidos: teoria dos valores, direitos de defesa, função de proteção, controle de insuficiência, colisão, efeito horizontal, entre outros, são conceitos e noções que procuram guiar quem se aventura a navegar em meio ao mar de incertezas e conflitos dos direitos humanos. Afinal, aplicar esses direitos pela via jurisdicional significa operacionalizar esses conceitos e buscar, com isso, atribuir efeitos concretos para suas normas de proteção. Por muito tempo este sistema de significação foi construído e aplicado em diferentes partes do mundo. Europa, Estados unidos da américa, Canadá, África do Sul, Israel, América latina, todos vincularam direitos humanos às teorias de sua aplicação, abrindo, assim, caminho para a sua utilização jurisprudencial. E, por isso, durante décadas os direitos humanos, suas teorias e significados, foram compreendidos e aplicados por meio da chave de compreensão da jurisdição.
Hoje alguns fatores têm gerado a problematização desse sistema de compreensão. Primeiro se percebeu que o conflito de direitos humanos é persistente, mesmo depois de ocorrer uma resposta jurisdicional a seu respeito. Não faltam exemplos, nesse sentido, de decisões jurisdicionais a respeito da proteção de direitos humanos contestadas por órgãos internos ou internacionais, que utilizam o mesmo arsenal teórico, mas chegam a conclusões diferentes sobre o mesmo tema. Com a multiplicação de respostas divergentes, não só os direitos humanos, mas a própria jurisdição, entram em situação de constante dúvida e contestação prática. E, como consequência, ambos perdem credibilidade e força persuasiva. De forma paradoxal, a proteção dos direitos humanos pela via jurisdicional ocasiona, assim, a instabilidade da própria jurisdição, que, buscando a todo custo garantir aos titulares a fruição de seus direitos, acaba por gerar cada vez mais insegurança e incertezas. Isso faz com que a certeza da garantia do direito fique sempre em suspenso, do que também resulta que a estabilização das expectativas nunca seja realmente alcançada.
Segundo, foi observado que o debate puramente teórico e judicial a respeito da extensão da proteção conferida pelas normas de direitos humanos tem o poder de resfriar o poder contestador e emancipador dessas normas. Aqui, ao contrário do que ocorre com o paradoxo anterior, são as normas de direitos humanos que perdem suas características fundamentais quando são transplantadas para o debate judicial. Direitos humanos, de fato, não são regras de direito comuns. Não se comparam com regras de direito civil, direito comercial, ou tributário. Distinguem-se até mesmo dentro do direito internacional e do direito constitucional, tendo em vista a carga histórica, social e emocional de seus conteúdos. Se essa diferença existe, não se deveria admitir que a linguagem e o ritual jurídico formalista tratem situações e regras diferentes da mesma forma e com o mesmo resultado: aquele ganha, este perde.
Não é tudo, pois os movimentos sociais e políticos, que utilizam os direitos humanos como instrumentos de mobilização e contestação, podem ser diluídos pela perspectiva de que as reivindicações dos direitos humanos não devem ocorrer em espaços públicos e por meio de movimentos sociais, mas sim em processos judiciais, iniciados e julgados por profissionais da área jurídica, acostumados com o rito e a linguagem dos tribunais. Ocorre aqui um duplo paradoxo, pois os direitos humanos, que nasceram para emancipar e garantir o poder para o cidadão confrontar o poder estatal, tornam-se instrumentos de ampliação do poder do Estado, materializado no processo judicial. Mais do que isso, uma vez apropriada como instrumento de tomada de decisão, a norma de garantia de direitos humanos se volta contra seu próprio titular, fazendo com que ele aliene de bom grado a força contestatória dessas normas em troca da pretensa a estabilização de suas expectativas, o que, como já foi observado, dificilmente irá ocorrer. Como resultado, os direitos humanos podem ser descaracterizados pela jurisdição que procurou lhes conferir eficácia.
Abaladas de ambos os lados, as relações entre direitos humanos e jurisdição necessita de revisão e reanálise. Com a contribuição de diversos pesquisadores que abordam este tema, a finalidade deste espaço será justamente esta: avaliar de que modo, com base em quais pressupostos e parâmetros, a aplicação jurisdicional dos direitos humanos deve ocorrer em um ambiente cada vez mais conflituoso e polarizado. Nesse sentido, não só temas clássicos e conhecidos como as funções dos direitos humanos, o processo de internalização dos parâmetros de proteção internacional, o diálogo das cortes, enfim, as diferentes formas de eficácia desses direitos, serão abordados; temas concretos e contemporâneos também serão objeto de atenção nesta jornada, que, espero, será de aprofundamento e esclarecimento para todos.