Muito se difunde a ideia de que a Teoria Maior da “disregard doctrine” – por estar jungida ao preenchimento de uma das hipóteses do uso abusivo da personalidade jurídica delineadas no art. 50 do CC (desvio de finalidade ou confusão patrimonial) – precisa ser demonstrada pelo credor no processo executivo, mediante prova robusta de efetivos atos materiais de gestão empresarial fraudulenta perpetrada com o uso da autonomia patrimonial da pessoa jurídica.
Esta visão subjetivista e excessivamente conservadora da teoria acaba por tornar a “disregard doctrine” ornamental e sem efeito prático algum, indo na contramão do art. 5º da LINDB, que orienta o julgador a interpretar as normas de forma que atendam ao que é socialmente útil e à efetividade da prestação jurisdicional, pois impõe ao credor uma carga probatória praticamente intransponível, já que, notoriamente, não tem acesso aos registros dos atos de gestão empresarial, notadamente a movimentação bancária, livro-caixa, livros fiscais e contábeis, não tendo condições, portanto, de produzir provas acerca da ocorrência de mau uso da sociedade empresarial.
Cabe destacar que o STJ, em sede de execução fiscal, de cujo microssistema a execução trabalhista se alimenta (art. 889 da CLT), possui entendimento no sentido de que “em execução fiscal de dívida ativa tributária ou não-tributária, dissolvida irregularmente a empresa, está legitimado o redirecionamento ao sócio-gerente” (Tema/Repetitivo 630, REsp 1371128/RS). Esta tese jurídica conecta-se com a Súmula 435 do STJ, que assim dispõe: “Presume-se dissolvida irregularmente a empresa que deixar de funcionar no seu domicílio fiscal, sem comunicação aos órgãos competentes, legitimando o redirecionamento da execução fiscal para o sócio-gerente”.
Consoante exposto no acórdão que originou a tese firmada, “é obrigação dos gestores das empresas manter atualizados os respectivos cadastros, incluindo os atos relativos à mudança de endereço dos estabelecimentos e, especialmente, referentes à dissolução da sociedade. A regularidade desses registros é exigida para que se demonstre que a sociedade dissolveu-se de forma regular, em obediência aos ritos e formalidades previstas nos arts. 1.033 à 1.038 e arts. 1.102 a 1.112, todos do Código Civil de 2002 – onde é prevista a liquidação da sociedade com o pagamento dos credores em sua ordem de preferência – ou na forma da Lei n. 11.101/2005, no caso de falência. A desobediência a tais ritos caracteriza infração à lei”.
A infração à lei mencionada no precedente se insere no alcance da definição legal do desvio de finalidade (§1º do art. 50 do CC), o qual se aproximou sobremaneira da Teoria Menor (art. 28, §5º, do CDC), ao dispor que basta “a utilização da pessoa jurídica com o propósito de lesar credores e para a prática de atos ilícitos de qualquer natureza”.
Portanto, é possível identificar aproximação dos requisitos do art. 50 do CC com os pressupostos de responsabilização patrimonial dos sócios dispostos no art. 28, §5º, do CDC, e art. 135 do CTN.
Nesse compasso, ainda, a Declaração de Direitos de Liberdade Econômica, ao traçar os contornos da confusão patrimonial (§2º do art. 50 do CC), facilitou imensuravelmente no cotidiano forense a aplicação da Teoria Maior da “disregard doctrine”, pois, em seu inciso III (“outros atos de descumprimento da autonomia patrimonial”), contemplou “numerus apertus” das hipóteses consideradas como ausência de separação patrimonial entre pessoa jurídica e pessoa física, remetendo ao operador do direito desvendar na prática as inúmeras possibilidades, para além das regras estanques dos incisos I e II.
E não poderia ser diferente, visto que o legislador não tem condições de prever todas as vicissitudes, controvérsias e situações de fato, reconhecendo, pois, que o sistema jurídico é aberto e incompleto.
Diante disso, atualmente, há forte tendência jurisprudencial encampando a visão objetivista da Teoria Maior, admitindo-se a prova indiciária (indícios e presunções – arts. 369 e 375 do CPC[1]) para demonstrar o abuso na utilização da personalidade jurídica. Sintetizamos as principais premissas decisórias que evidenciam a interpretação voltada à máxima efetividade do sistema de repressão ao abuso da personalidade jurídica.
Os tópicos a seguir confirmam essa nossa alegação.
1. Ocorre desvio de finalidade quando a empresa encerra suas atividades de forma irregular, sem deixar patrimônio capaz de satisfazer as dívidas.
AGRAVO DE INSTRUMENTO. CUMPRIMENTO DE SENTENÇA. DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA. DEMONSTRAÇÃO DO DESVIO DE FINALIDADE. 1 – Na forma do art. 46 da Lei 9.099/1995, a ementa serve de acórdão. Recurso próprio, regular e tempestivo. 2 – Agravo de instrumento. Cumprimento de sentença. Desconsideração da personalidade jurídica. Dissolução irregular da sociedade. Desvio de finalidade configurado. A dissolução da sociedade no curso da execução, de conhecimento da devedora, sem prestar esclarecimento algum ao credor, além de violar as regras da liquidação, mormente o que exige que seja realizado o ativo e solvido o passivo, partilhando o remanescente com os sócios (art. 1.103, inciso IV, Código Civil), revela uma nítida intenção em causar lesão ao credor, na medida que furta-lhe as possibilidades de satisfação do seu crédito, ou eventualmente, minimizar o seu prejuízo participando do rateio da massa em liquidação. Com isso, resta configurado o desvio de finalidade no caso concreto, autorizando a desconsideração da personalidade jurídica (art. 50, Código Civil), não se aplicando, portanto, o entendimento firmado no STJ de que a dissolução irregular da sociedade, por si só, não constitui motivo suficiente para afastar a personalidade jurídica empresarial (AgInt no REsp 1859165/AM) Agravo de instrumento conhecido, mas não provido. 3 – Recurso conhecido, mas não provido. Custas, pelo recorrente. (TJDF – AI 0701026-88.2020.8.07.9000 – Primeira Turma Recursal – Relator Aiston Henrique de Sousa – Data de Julgamento: 16/10/2020)
[…] Conforme salientado pela douta magistrada a quo, as pesquisas realizadas junto aos sistemas Bacenjud e Renajud restaram frustradas, demonstrando que a empresa executada não possui bens em seu nome ou valores em contas bancárias, deixando dívidas sem lastro patrimonial. Nesse contexto, todas as medidas emergenciais devem ser tomadas para garantir a satisfação do crédito pleiteado. […] Portanto, restado demonstrado, por meio de documentos, os requisitos elencados no art. 50 do Código Civil, em especial o encerramento de suas atividades de forma irregular, fazendo desaparecer todo patrimônio, é crível o deferimento da desconsideração da personalidade jurídica”. (TJMG – AI 10707190019968001 – 18ª Câmara Cível – Relator Desembargador Sérgio André da Fonseca Xavier – Data de Julgamento: 15/09/2020).
[…] Segundo os autos do agravo, o oficial de justiça, na execução do mandado de penhora e avaliação, não localizou o representante legal de Sacotem Embalagens Ltda., nem bens do estabelecimento comercial. A presunção de confusão patrimonial dá base imediata ao redirecionamento, que deve ser impugnado pelo responsável tributário. (TRF3 – AI 0017375- 33.2016.4.03.0000 – 3ª Turma – Relator Desembargador Antonio Cedenho – Data de Julgamento: 06/09/2017 – Data de Publicação: 14/09/2017).
2. Configura-se confusão patrimonial a criação de novas empresas pelo sócio em ramo similar à empresa devedora, havendo, inclusive esvaziamento patrimonial destas (seja na hipótese de fraude contra credores, seja sob o prisma da fraude à execução).
[…] os elementos probatórios evidenciam a ocorrência de abuso na utilização da sociedade empresária para evitar o cumprimento da condenação judicial, mediante a adoção de ardis, tais como o estímulo à constituição de empresa atuante no mesmo ramo da sociedade empresária devedora por seus familiares […], com a paralisação das atividades empresariais e, por conseguinte, o completo esvaziamento do patrimônio da executada […], resultando nas reiteradas tentativas frustradas de constrição de bens em seu nome. Assim, estando demonstrada a utilização da separação patrimonial entre a pessoa jurídica e a sua sócia com a finalidade de lesar credores, deve ser mantida a decisão agravada, ao efeito de desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade executada, incluindo a recorrente […] no polo passivo do cumprimento de sentença, a fim de que seu patrimônio pessoal possa ser utilizado para satisfação do crédito a que restou condenada a sociedade empresária […]. (TJRS – AI 0040313-95.2020.8.21.7000 – Décima Segunda Câmara Cível – Relator Desembargador Umberto Guaspari Sudbrack – Data de Julgamento: 18/06/2020).
3. Presume-se uso da pessoa jurídica como escudo para fraude quando, em plena atividade comercial, não possui ativos financeiros em suas contas bancárias, tampouco reúne bens em sua sede capazes de satisfazer a execução.
[…] a devedora se mantém ativa, apesar de suas muitas dívidas já exigidas em juízo, e não movimenta contas bancárias nem consta possuir bens em seu nome. Tais circunstâncias são sugestivas de desvio de finalidade social e abuso de sua personalidade jurídica por seus sócios, porque, se tem atividade econômica fato confirmado pela certidão do oficial de Justiça e aufere renda, seria normal não somente quitar as dívidas contraídas, como também manter dinheiro em caixa e em agência bancária, como também possuir bens, tudo como corolário do giro dos negócios que realiza. (TJSP – AI 2252873-37.2015.8.26.0000 – 23ª Câmara de Direito Privado – Relator Sebastião Flávio – Data de Julgamento: 30/03/2016)
[…] A empresa que não reúne bens suficientes em sua sede e os coloca em nome de terceiros e, também, não possui ativos financeiros, traz a presunção de confusão patrimonial e uso da pessoa jurídica como escudo para fraude. (TJDF – RIC 0761696-15.2019.8.07.0016 – Segunda Turma Recursal – Relator Arnaldo Corrêa Silva – Data de Julgamento: 22/02/2021)
4. Há confusão patrimonial presumida para autorizar a “disregard doctrine” inversa, quando o sócio executado, sem patrimônio, é titular de outra pessoa jurídica, presumindo-se que retira do caixa desta empresa para sua manutenção diária e de sua família, configurando- se confusão patrimonial.
CUMPRIMENTO DE SENTENÇA DEVEDORA – PESSOA FÍSICA – EMPRESA INDIVIDUAL – DESCONSIDERAÇÃO INVERSA. DA PERSONALIDADE. A desconsideração inversa da personalidade jurídica pode ser aplicada mesmo sem efetiva demonstração de transferência de bens do patrimônio particular de sócio controlador-devedor para a pessoa jurídica, bastando restarem frustradas as diligências visando localizar bens e ativos financeiros em nome do sócio, pois se presume que ele retira do caixa da empresa o necessário para sua manutenção e de sua família e esconde seu patrimônio particular em meio ao acervo social, principalmente cuidando- se de empresa individual. Recurso não provido. (TJSP – AI 2150780-88.2018.8.26.0000 – 21ª Câmara de Direito Privado – Relator Desembargador Itamar Gaino – Data de julgamento: 11/06/2019).
Em arremate, a conclusão que extraímos destes julgados é no sentido de que parcela considerável da jurisprudência confere tratamento mais objetivo às hipóteses de abuso da personalidade jurídica, não sendo necessário imiscuir-se em detalhes da dinâmica empresarial, muito menos aprofundar pesquisa patrimonial para trazer à tona os requisitos da Teoria Maior.
[1] CPC. Art. 369. As partes têm o direito de empregar todos os meios legais, bem como os moralmente legítimos, ainda que não especificados neste Código, para provar a verdade dos fatos em que se funda o pedido ou a defesa e influir eficazmente na convicção do juiz.
Art. 375. O juiz aplicará as regras de experiência comum subministradas pela observação do que ordinariamente acontece e, ainda, as regras de experiência técnica, ressalvado, quanto a estas, o exame pericial.