A pergunta que não deve ser de cunho apenas retórico mas de impacto retumbante é: o que é a democracia? A resposta que se apresenta sob aparente simplicidade – o governo do povo [dēmokratía, de δῆμος dêmos ‘povo’ + κράτος kratía ‘força, poder’] – traz em essência toda uma complexidade estruturada e a ela latente. Então façamos como Cícero – “quando se quer por ordem e método numa discussão, é preciso dar início definindo a cada coisa de que se debate, para se ter dela uma ideia clara e precisa.”[1]
De antemão, existe um desvio semântico quando da tradução do grego, pois democracia etimologicamente não corresponde a “governo” do povo mas a poder, autoridade, domínio do povo.[2] E há extrema relevância nessa observação pois em essência não há na palavra democracia ponto de partida[3] aglutinativo indicativo de regime político mas de imperatividade.
Imperatividade de que povo? De que região? De que modo expressa?
Indagações como essas transpassaram os tempos e de forma lenta e gradual a roda-vida da história passou a fazer marcações que sob aspectos interdisciplinares à sociologia, antropologia, ciência política, direito… identificaram a essencialidade própria de qualquer democracia, qual seja, sua interna complexidade pluriversa.
Se na constituição interna da democracia identificamos a necessidade de sub-repartições, passemos às mesmas. Todo e qualquer povo, se há um povo (uma reunião de pessoas, caracterizada sobremaneira por suas diferenças) também há permanência (localização no tempo e no espaço), sob características próprias (língua, costumes, tradições, aspirações…). Então, há povo, há território, há cultura… e o somatório de todas essas características constituem uma Nação. Nação como experiência (um viver em comum-unidade social)[4], como conciliação, existência em comunitarismo regido pelo jogo institucional estatal.
E viver em comunidade pressupõe formas e regimes de governo. Para que a democracia se apresente como regime de governo em seus atuais trajes houve a necessidade de uma revolucionária mudança de paradigma, onde o ideal democrático incorporou-se à consciência coletiva como valor, arrefecendo desejos (controlados pela lei) e promovendo respostas racionalmente adequadas à convivência humana sobre as bases da solidariedade, estabilidade institucional, igualdade e diversidade.[5] Assim, só é possível democracia sob o olhar da limitação, da controlabilidade, noutras palavras, impôs-se necessário a presença da lei. A lei como médium: a) a garantir a força do povo como um todo, não apenas da maioria, mas também e de igual medida da minoria; b) a garantir a autopreservação institucional contra populismos; c) a garantir a participação, confiança, igualdade, liberdade, pluralismo, divergência, diálogo e consenso[6]. Afinal, quando se reclama a soberania da lei, reclama-se o império (…) da razão.[7]
Essa relação entre força e controle eleva a Nação, reconhecida, ao status de Estado, na conformação original de Estado de Direito, que no caminhar histórico, e aqui não vamos nos alongar, perpassou pelas conformações de Estado Liberal de Direito, Estado Democrático de Direito, Estado Social de Direito até o que reconhecemos hoje como Estado Constitucional de Direito.[8] [9]
Falar em Estado Constitucional pressupõe uma compreensão mínima sobre constitucionalismo, qual seja: “…teoria (ou ideologia) que ergue o princípio do governo limitado indispensável à garantia dos direitos em dimensão estruturante da organização político-social de uma comunidade. Neste sentido, o constitucionalismo moderno representará uma técnica específica de limitação do poder com fins garantísticos.” – Nos ensina Canotilho.[10]
Nesses termos, estabelecemos dentre outras coisas, que democracia e constitucionalismo estruturam-se, de forma comum, sobre poder, limitação, organização… Na realidade, o constitucionalismo decorre do ideal democrático, é consectário deste, e deste pressupõe.
Streck bem já apontou que a democracia é o sistema político talhado no tempo social e a constituição é uma invenção destinada à democracia, porque possui um valor simbólico, já que impede que o próprio regime democrático seja solapado por regras que ultrapassem os limites que ela mesma – a Constituição – estabeleceu para o futuro.[11]
O constitucionalismo é um movimento histórico, primeiramente de caráter mais político, que vai adquirindo dimensão mais jurídica para realizar a secularização e o controle do poder.[12]
Democracia e constitucionalismo devem ser vistos como valor, como ideal. A Democracia Constitucional é produto do processo civilizatório. Sendo o constitucionalismo um meio de racionalização do poder, por conseguinte, a preeminência de uma Constituição é que torna possível a manutenção de um regime democrático estável.[13]
Abboud explica que – “… o Estado Constitucional substituiu a figura do Estado de Direito. Nele, o espaço público, as leis e o direito estão limitados pelas regras constitucionais, que impõe a vinculação material do agir do Estado aos direitos fundamentais. Ou seja, toda estrutura pública está diretamente vinculada e comprometida em relação à liberdade, igualdade, solidariedade e dignidade.”[14]
Assim, virtuosas são as palavras do Imperador Marco Aurélio que, no século II, em suas meditações se regojiza de, por intermédio de seu irmão Severo, ter concebido “a primeira concepção de comunidade democrática com base em leis de equidade, administrada com igualdade direitos, e de uma monarquia cujo principal objetivo é a liberdade de seus integrantes.”[15]
Estabelecidas as premissas até agora postas[16] passamos a tratar da importância do Judicial Review no Estado Constitucional de Direito.
A Segunda Guerra Mundial foi marco paradigmático para composição de uma nova ordem social, jurídica e política. O período do pós-guerra definiu novos papéis para os textos constitucionais, estabeleceu normatividade aos direitos fundamentais e estruturou uma jurisdição constitucional contramajoritária.[17]
Nesse contexto, a jurisdição constitucional adquire uma proeminência de destaque no tratamento das questões constitucionais sob a perspectiva especializada de proteção dos direitos fundamentais. Para além do controle do trâmite formal do processo legislativo (vícios formais da lei), os direitos fundamentais, como aspectos materiais, também passam a ser controlados.
A justiça constitucional nasce da cultura do constitucionalismo, isto é, da concepção de uma democracia estribada sobre um conjunto de valores sociais e sob a marca e o valor da liberdade, exigindo a limitação do governo por meio da Constituição.[18]
Nesse sentido, a jurisdição constitucional se debruça sobre quatro funções primordiais: a) limitar o poder público; b) garantir a existência das minorias e assegurar sua proteção; c) corrigir equívocos e omissões do poder legislativo além de, d) conferir coerência e garantir à preservação da autonomia do direito.[19]
Aqui fincamos, em termos dogmáticos, dois importantes marcos: i) o escopo da jurisdição constitucional é o controle do poder, posto que suas decisões possuem impacto político ficando a seu cargo a interpretação final dos direitos fundamentais constitucionalmente previstos; ii) sua função contramajoritária consolida uma garantia para o pluralismo social tornando efetiva essa garantia e apresentando-se como instrumento hábil para recomposição de grupos desarticulados e autorreferentes reconhecidos no pacto constitucional. Afinal, toda maioria é passível de corromper-se.[20] [21]
Nessa senda, inevitável o reconhecimento histórico, desde Bonham’s case até Marbury vs. Madison, que a Judicial Review of legislation constitui garantia fundamental para a existência, preservação e concretização de uma Constituição escrita. Deste modo, a judicial review funciona como mecanismo fundamental para proteção dos direitos fundamentais, não anulando simplesmente o ato do legislativo, mas interpretando e esclarecendo o teor da legislação.[22]
Dworkin explica que o instituto da revisão judicial da legislação será legítimo na medida em que aprimore a legitimidade política como um todo, ou seja, na medida em que torne mais provável que a comunidade dê consequência a valores como a igualdade e a liberdade.[23] Não seria por demais ousado afirmar que nossa CF/88 ao consagrar dentre os direitos fundamentais, o direito de ação (acesso à justiça) consagrou a própria judicial review como um direito fundamental, possibilitadora, mediadora e garantidora de todos os demais direitos fundamentais. Motta, sobre Dworkin, conclui: “… não há nada de necessariamente antidemocrático na revisão judicial da legislação, contanto que essa se dê da maneira correta.”[24] [25]
Por tudo, a jurisdição constitucional enquanto judicial review tornou-se essencial à preservação da democracia. Um espaço crucial à autonomia do direito, um espaço de proteção e legitimação.
Constitucionalismo, judicial review, jurisdição constitucional, representatividade, direitos fundamentais, liberdades, limitação, controlabilidade, maioria, minoria, poder, povo, corrupção, garantia… miscelânea que caracteriza historicamente uma latência democrática ou uma Democracia latente.
[1] CICERO. Dos deveres. São Paulo: Martin Claret, 2017. p. 33
[2] RAMOS, Gisela Gondin. Princípios jurídicos. Belo Horizonte, MG: Fórum, 2012. p. 317.
[3] Não há ponto de partida mas de tangenciamento, existe de maneira atávica à definição a ideia pressuposta de força controlada, força limitada.
[4] DIAS, Daniella S. O que vem a ser nação no contexto atual? – Revista de Informação Legislativa – Brasília a. 49 n. 196 out./dez. 2012. p. 67-68.
[5] RAMOS, Gisela Gondin. Princípios jurídicos. Belo Horizonte, MG: Fórum, 2012. p. 330-332.
[6] RAMOS, Gisela Gondin. Princípios jurídicos. Belo Horizonte, MG: Fórum, 2012. p. 332-336.
[7] ARISTÓTELES. Política. 6ª ed. São Paulo: Martin Claret, 2015. p. 143.
[8] ABBOUD, Georges. Democracia para quem não acredita. Belo Horizonte, MG: Letramento, 2021. p. 29.
[9] Para aprofundamento, recomendo: STRECK, Lenio Luiz; MORAIS, José Luis Bolzan de. Ciência política e teoria do estado. 5ª ed. Porto Alegre, RS: Livraria do Advogado, 2006. p. 91-108.
[10] CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 7ª ed. Coimbra – Portugal: Almedina, 2003. p. 51.
[11] STRECK, Lenio Luiz. Verdade e consenso. 6ª ed. São Paulo: Saraiva, 2017. p. 115.
[12] ABBOUD, Georges. Democracia para quem não acredita. Belo Horizonte, MG: Letramento, 2021. p. 28.
[13] ABBOUD, Georges. Democracia para quem não acredita. Belo Horizonte, MG: Letramento, 2021. p. 28.
[14] ABBOUD, Georges. Democracia para quem não acredita. Belo Horizonte, MG: Letramento, 2021. p. 30.
[15] AURÉLIO, Marco. Meditações. Jandira, SP: Principis, 2020. p. 10.
[16] Até aqui, com temperamentos e ciente das limitações e precarismos tentamos seguir os ensinamentos de Sócrates em seu diálogo com Fedro sobre textos e discursos: “SÓCRATES: É necessário que um indivíduo conheça a verdade acerca de todas as coisas particulares sobre as quais discursa ou escreve; também é necessário que esteja habilitado a definir todas as coisas separadamente; em seguida, uma vez as haja ele definido, terá que estar em condições de proceder à sua divisão por classes até torná-las indivisíveis. De modo análogo, é preciso que ele compreenda a natureza da alma, descubra a classe de discurso que se ajusta a cada natureza, organize e ordene seu discurso em consonância com isso, proporcionando discursos elaborados e harmoniosos às almas complexas, e simples conversações às almas simples. Enquanto não executar tudo isso, não se capacitará a empregar o discurso com arte, na medida em que se possa controlar metodicamente um discurso, quer com propósitos de ensino, quer com propósitos de persuasão.” in PLATÃO. Fedro (ou do belo). São Paulo: Edipro, 2012. p. 106.
[17] ABBOUD, Georges. Processo constitucional brasileiro. 2ª ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2018. p. 351.
[18] ABBOUD, Georges. Processo constitucional brasileiro. 2ª ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2018. p. 354.
[19] ABBOUD, Georges. Processo constitucional brasileiro. 2ª ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2018. p. 359.
[20] ABBOUD, Georges. Processo constitucional brasileiro. 2ª ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2018. p. 361 passim 364.
[21] Dworkin alerta: “Devemos ter cuidado de não confundir esta concepção maioritária da democracia com alguma teoria agregativa da justiça, como o utilitarismo, que afirma que as leis são justas quando produzem a maior quantidade possível de felicidade média (ou qualquer outra concepção de bem-estar) numa comunidade específica. (…) Não há razões para pensar que um processo eleitoral maioritário produza normalmente um resultado que seja considerado justo segundo qualquer modelo agregativo. Pelo contrário, um processo maioritário pode muito bem produzir – e produziu muitas vezes – leis que prejudicam o bem-estar médio ou total, seja qual for sua concepção. É por isso que os defensores da concepção maioritária pensam que é importante distinguir a democracia da justiça.” in DWORKIN, Ronald. Justiça para ouriços. Coimbra, Portugal: Almedina, 2011. p. 392.
[22] ABBOUD, Georges. Processo constitucional brasileiro. 2ª ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2018. p. 834 passim 889.
[23] MOTTA, Francisco José Borges. Ronald Dworkin e a decisão jurídica. 2ª ed. Salvador, BA: JusPodivm, 2018. p. 110.
[24] MOTTA, Francisco José Borges. Ronald Dworkin e a decisão jurídica. 2ª ed. Salvador, BA: JusPodivm, 2018. p. 112.
[25] “A conceção maioritária não descarta automaticamente um sistema político que atribua aos juízes o poder de impor uma Constituição ao declararem uma legislação nula e inválida. Alguns juristas habilidosos e filósofos afirmaram que o escrutínio judicial, adequadamente concebido e limitado, pode servir a conceção maioritária, tornando mais provável que a legislação reflita a opinião estabelecida da maioria das pessoas. John Hart Ely afirmou, por exemplo, que os juízes devem proteger o poder do povo, salvaguardando a liberdade de explressão e de imprensa dos políticos ansiosos por esconderem a sua corrupção ou estupidez, e Janos Kis, na mesma esteira, disse que juízes podem proteger as pessoas dos governantes que ficam menos entusiasmados com a maioria quando esta constitui uma ameça para a manutenção do seu poder. (…) O escrutínio judicial é uma estratégia possível (e sublinho o facto de ser apenas uma possível) para reforçar a legitimidade de um governo – para proteger a independência ética de uma minoria, por exemplo – e, desse modo, reforçar o direito moral de uma maioria de impor a sua vontade em relação a outras questões.” in DWORKIN, Ronald. Justiça para ouriços. Coimbra, Portugal: Almedina, 2011. p. 392-393.
Muito esclarecedor, estamos precisando.