47. CONTAMINAÇÃO PSICOLÓGICA POR PROVA INADMISSÍVEL

[CPP, art. 157, § 5º]

A deprimente histeria coletiva provocada pela criação do «juiz de garantias» tem ofuscado outras novidades impactantes trazidas pela Lei nº 13.964, de 24 de dezembro de 2019 (a mal apelidada e pessimamente redigida «Lei Anticrime»). No entanto, a injeção de garantismo jurídico no sistema procedimental penal brasileiro não se limita à repartição de funções entre o juiz da investigação criminal e o juiz do processo penal. Essa é tão somente uma das facetas garantistas da nova lei. A propósito, perdeu-se a oportunidade preciosa de se sepultar a malfazeja «identidade física do juiz» – conhecida também como «plenitude da assistência dos juízes» ou «permanência subjetiva do juiz» -, separando-se entre si as figuras do juiz-instrutor e do juiz-sentenciador e, com isso, debelando-se o «viés de representatividade» [representativeness bias], que sói contaminar quem tem contato com a produção da prova oral (para um aprofundamento do tema, v. nosso Levando a imparcialidade a sério. Salvador: Juspodivm, 2016, p. 130 e ss.). Mais: perdeu-se a chance de se avigorar a imparcialidade judicial por intermédio de um modelo laboral quadripartite: 1) o juiz da investigação criminal + 2) o juiz da instrução criminal + 3) o juiz da sentença penal + 4) o juiz da execução penal. A esse modelo GLAUCO GUMERATO RAMOS dá o nome de procedimento judicial funcionalmente escalonado (Sistema de enjuizamento escalonado… RBDPro 71, p. 65); GUTHRIE, RACHLINSKI e WISTRICH chamam-no de divided decision-making strategy (Blinking on the bench: how judges decides cases. Cornell Law Review. 2007. v. 93, p. 42). Por isso, o chamado «juiz de garantias» é uma medida imparcializante muito bem-vinda, mas ainda bastante tímida. É tão somente o passo primeiro para que no País se comece a levar mais a sério a questão. Ainda assim, a exigência de imparcialidade judicial recebeu um reforço importantíssimo, embora tardio: a adição, pela Lei 13.964/2019, do inusitado § 5º ao artigo 157 do Código de Processo Penal. De acordo com o novo dispositivo legal, «o juiz que conhecer do conteúdo da prova declarada inadmissível não poderá proferir a sentença ou acórdão». É preciso dissecar com cautela a anatomia desse dispositivo, já que ele deflagra uma discreta revolução no modelo brasileiro de proteção à imparcialidade.

II

Há tempos se reclama no Brasil a edição dessa norma jurídica. Afinal de contas, não raro, o juiz que tem contato com uma prova inadmissível elucidativa a eficaciza discricionariamente ou, ainda que a defenestre dos autos, passa a perseguir o mesmo resultado prático da reinclusão mediante supervalorização das provas sub-incriminatórias remanescentes. Assim, deve-se excluir do processo o magistrado que se contaminou, visto que é sobre-humano exigir que ignore uma prova esclarecedora, posto que inadmissível. Trocando em miúdos, o juiz enviesado é isolado e substituído por outro não enviesado. Vários estudos empíricos mostram que: a) os juízes e os jurados têm dificuldade de ignorar a prova inadmissível, conquanto saibam que devam fazê-lo (GUTHRIE, Chris, RACHLINSKI, Jeffrey J. e WISTRICH, Andrew J. Inside the judicial mind. Behavioral law and economics. v. III. Coord. Jeffrey J. Rachlinski. Edward Edgar: Northampton, MA, 2009, p. 26 e ss.); b) ignorar confissão obtida ilicitamente é impossível (idem. Altering attention in adjudication. UCLA Law Review. v. 60. n. 1586, 2013, p. 1610); c) os jurados pouco se deixam influir pelas instruções para que ignorem provas inadmissíveis; na realidade, não raro, ocorre o chamado backfire effect [«efeito de tiro pela culatra»]: eles tendem ainda mais a se apoiar na informação inadmissível tão logo instruídos a ignorá-la (LIEBERMAN, Joel D. e ARNDT, Jamie. Understanding the limits of limiting instructions… Psychology, Public Policy, and Law. v. 6. n. 3, 2000, p. 677-711); d) a reação dos juízes profissionais experientes à prova inadmissível não difere da reação dos jurados leigos e inexperientes (LANDSMAN, Stephan e RAKOS, Richard F. A preliminary inquiry into the effect of potentially biasing information… Behavioral Sciences & Law. v. 12. n. 2, p. 113-126). Para um aprofundamento do tema, v., por exemplo: PEER, Elyal e GAMLIEL, Elyal. Heuristics and biases in judicial decisions. Court Review: The Journal of the American Judges Association. v. 29. Issue 2.2019, p. 114-118; TEICHMAN, Doron e ZAMIR, Elyal. Judicial decision-making: a behavioral perspective. The Oxford Handbook of Behavioral Economics and the Law. Coord. Elyal Zamir et al. New York, NY: Oxford University Press, 2014, p. 664-702.

III

Não sem embasamento científico-comportamental já se havia tentado no Brasil impedir a prolação de sentença por juiz que tenha tido contato com prova inadmissível. Idêntica norma jurídica já havia sido adicionada pela Lei 11.690/2008 como § 4º ao artigo 157 do Código de Processo Penal. Entretanto, o dispositivo legal foi vetado pelo então Presidente da República LUÍS INÁCIO LULA DA SILVA. As equivocadas razões do veto – fincadas sobre o lamentável mantra da «eficiência a todo custo» – se extraem da Mensagem nº 350, de 09 de junho de 2008 (DOU de 10.6.2008): «O objetivo primordial da reforma processual penal consubstanciada, dentre outros, no presente projeto de lei, é imprimir celeridade e simplicidade ao desfecho do processo e assegurar a prestação jurisdicional em condições adequadas. O referido dispositivo vai de encontro a tal movimento, uma vez que pode causar transtornos razoáveis ao andamento processual, ao obrigar que o juiz que fez toda a instrução processual deva ser, eventualmente substituído por um outro que nem sequer conhece o caso. Ademais, quando o processo não mais se encontra em primeira instância, a sua redistribuição não atende necessariamente ao que propõe o dispositivo, eis que mesmo que o magistrado conhecedor da prova inadmissível seja afastado da relatoria da matéria, poderá ter que proferir seu voto em razão da obrigatoriedade da decisão coligada» [sic] (para uma dura crítica ao veto, p. ex.: GOMES, Luiz Flávio. Comentários à Convenção Americana sobre Direitos Humanos: Pacto de San José da Costa Rica. 4. ed. São Paulo: RT, 2013, p. 112 e ss.). Como se vê, «celeridade» e «simplicidade» – cuja consistência normativa é duvidosa – foram alçadas anormalmente a uma condição privilegiada, como se fossem os dois grãos-princípios estruturantes do sistema procedimental penal brasileiro. Pior: a imparcialidade foi rebaixada obliquamente a uma condição subalterna infraprincipial. Aliás, a imparcialidade tem sido o cordeiro no altar sacrificial do gerencialismo processual, que faz do juiz um manager, do procedimento um lego, da informalidade um método, da rapidez um lema, da produtividade uma meta, da causa um número e da parte um CPF.

IV

Assim, o problema da contaminação psicológica teve de aguardar mais de uma década para se resolver no plano legislativo. Todavia, o problema já se resolveria no plano dogmático. Afinal, a garantia constitucional implícita da imparcialidade per se já obriga a substituição do juiz que teve contato com prova inadmissível. Imparcialidade é condição pré-positiva da própria jurisdicionalidade. É razão de ser da jurisdição. É garantia arquifundamental contrajurisdicional (v. nosso As garantias arquifundamentais contrajurisdicionais: não-criatividade e imparcialidade. <https://emporiododireito.com.br/leitura/as-garantias-arquifundamentais-contrajurisdicionais-nao-criatividade-e-imparcialidade>). Daí por que se rege por princípio de precaução: havendo suspeita de que determinada ação cause quebra de imparcialidade, a ação não deve ter lugar, ainda que inexista consenso científico irrefutável sobre essa causação; na dúvida, não se corre o risco de se quebrar a imparcialidade (sobre o tema, v. nosso Imparcialidade como esforço. <https://emporiododireito.com.br/leitura/42-imparcialidade-como-esforco>). Infelizmente, porém, em matéria de imparcialidade o acanhamento não é só da legislação brasileira, senão da doutrina e da jurisprudência. Na doutrina estrangeira, propõem o afastamento do juiz contaminado, p. ex.: ÁLVAREZ LANDETE, J. El proceso debido y la nulidad de la prueba ilícita. Revista del ilustre Colegio de Abogados de Alicante. jun/1991, p. 38; ASENCIO MELLADO, José María. Prueba prohibida y prueba preconstituida. Madrid: Trivium, 1989, p. 86; DE MARINO, R.. Los problemas probatorios como límite al derecho a la prueba. Primeiras Jornadas de Derecho Judicial. Madrid: Secretaría Técnica, 1983, p. 620; ENTRALGO, Jesús Fernández. Prueba ilegítimamente obtenida. La Ley: Revista jurídica española de doctrina, jurisprudencia y bibliografía. n. 1, 1990, p. 1203; SENTÍS MELENDO, Santiago. La prueba: los grandes temas del derecho probatorio. Buenos Aires: EJEA, 1979. p. 228-229; SERRANO, Nicolás González-Cuellar Serrano. Proporcionalidad y derechos fundamentales en el proceso penal. Madrid: Editorial Colex, 334; TROCKER, Nicolò. Processo civile e costituzione – problemi di diritto tedesco e italiano. Milano: Dott. A. Giuffrèa Editore, 1974. p. 633-634.

V

Todavia, não basta excluir-se o juiz apenas no momento da sentença. O § 5º ao artigo 157 do Código diz que o juiz contaminado está impedido de julgar a causa, mas não diz expressamente que está impedido de processá-la. Contudo, o juiz enviesado pode perseguir o mesmo resultado prático da reinclusão da prova ilícita ordenando de ofício provas incriminatórias. Ou seja, ele pode conduzir o procedimento in favor accusationis, ainda que não venha a proferir a sentença. Nesse sentido, a força protetiva da norma é insuficiente. Ela combate a contaminação do modus iudicandi, mas não a contaminação do modus procedendi. Jamais esqueci meu primeiro caso como estagiário: a capacidade de prestar alimentos se provou mediante violação de extrato bancário impresso que a autora furtou da caixa de correio do réu; entretanto, após excluir o documento, o juiz passou a insistir obstinadamente em provas de ofício até demonstrar a aludida capacidade por outros meios. Logo, é preciso afastar o juiz não só no momento da sentença, mas desde o momento da contaminação. É bem verdade que o artigo 3º-A do CPP – também introduzido pela Lei 13.964/2019 – proíbe o juiz de substituir a «atuação probatória do órgão de acusação». Mas a proibição não basta, porque o juiz enviesado pode prejudicar a defesa indeferindo-lhe provas absolutórias ou outros requerimentos. Logo, a motivação da decisão, apresentando-se os pressupostos lógico-probatórios que a embasam, não resolve por si só o problema (sem razão, portanto: PICÓ I JUNOY, Joan. La imparcialidad judicial y sus garantias: la abstención y la recusación. Barcelona: J. M. Bosch, 1998, p. 109). Como se vê, o contato do juiz com a prova inadmissível pode colocar-lhe a perder tanto a imparcialidade in iudicando quanto a imparcialidade in procedendo. Logo, é afastável por contato com prova inadmissível o juiz presidente do tribunal do júri, ainda que o conselho de sentença jamais a conheça (sem razão: AROCA, Juan Montero. Sobre la imparcialidad del juez y la incompatibilidad de funciones procesales. Valencia: Tirant lo Blanch, 1999, p. 329, nota 416). Com maior razão, são afastáveis o juiz-auditor militar e o relator que tenham tido esse contato, pois votam no próprio julgamento que encabeçam.

VI

É importante sublinhar que não faz sentido circunscrever a norma jurídica ao âmbito procedimental penal. No âmbito procedimental civil, o problema da contaminação judicial por contato com prova inadmissível é idêntico. Juiz penal e juiz civil têm a mesma fisiologia mental. Ademais, entre prova inadmissível penal e prova inadmissível civil não há qualquer quid distintivo que torne a primeira mais enviesante que a segunda. Como se não bastasse, não vige qualquer regra de direito positivo que prescreva graus distintos de imparcialidade entre o juiz penal e o juiz civil. Tampouco se tolera que o juiz penal seja imparcial e o juiz civil parcial. Portanto, onde impera a mesma razão, deve-se aplicar o mesmo direito [ubi eadem legis ratio ibi eadem dispositio]. Daí a necessidade de se estender o programa normativo do § 5º do artigo 157 do CPP ao âmbito procedimental civil. Aliás, não há aí qualquer afronta aos limites semânticos do dispositivo: nenhum dos signos linguísticos que lhe compõem a redação lhe limita a aplicação-interpretação ao âmbito penal. Fala-se simplesmente em «juiz», «prova», «sentença» e «acórdão», sem se lhes agregarem os adjetivos penal ou civil. Isso tudo mostra que temas como prova e imparcialidade judicial devem obedecer a um regime unificado, porquanto são temas processuais, não procedimentais. Trata-se de temas fundamentais para a estruturação do processo como garantia de liberdade do cidadão em juízo. Logo, não pode haver tantos regimes jurídicos sobre prova e imparcialidade quantos sejam os diferentes ramos procedimentais (penal comum, penal militar, civil, trabalhista, eleitoral, tributário, administrativo etc.). Existe o direito probatório tout court, não o direito probatório «penal», nem o direito probatório «civil». Igualmente, existe o direito da imparcialidade tout court, não o direito da imparcialidade «penal», nem o direito da imparcialidade «civil». Não se justifica a atual assimetria entre CPP e CPC sobre regras de suspeição e impedimento. Outrossim, nada justifica que o contato com a prova inadmissível crie empeço ao juiz penal, mas não ao juiz civil. Em matéria de prova e imparcialidade, deve haver complementação mútua dos diversos regimes procedimentais entre si.

VII

O afastamento do juiz não se condiciona ao resultado da prova inadmitida. Pouco importa que seja incriminatória ou absolutória: se o juiz conhece de prova inadmissível incriminatória, quebra sua imparcialidade em desfavor do acusado; se conhece de prova inadmissível absolutória, quebra sua imparcialidade em desfavor da acusação. O juiz que tem contato com prova inadmissível não pode sentenciar [CPP, art. 157, § 5º]; a prova obtida por meio ilícito é inadmissível [CF/1988, art. 5º, LVI]; logo, o juiz que tem contato com prova obtida por meio ilícito não pode sentenciar. O raciocínio é insofismável: estrutura-se a partir de duas regras, com hipóteses de incidência e consequências jurídicas bem definidas. Não se trata de princípios; portanto, não se submetem a juízo de ponderação. A regra constitucional não faz admissível da prova ilícita pro reo. Nem faz dela admissível sob determinadas condições, definindo quais sejam. Tampouco a regra infraconstitucional permite que profira sentença o juiz que tem contato com prova inadmissível pro reo. Enfim, nenhum dos dispositivos distingue prova pro accusatione de prova pro reo. Assim, onde o texto não distingue, não cabe ao intérprete distinguir [ubi lex non distinguit nec nos distinguere debemus]. O CPP (art. 157, § 5º) e a CF/1988 (art. 5º, LVI) trazem regras gerais sem exceções. Aliás, nenhuma exceção é extraível por método lógico, teleológico, histórico ou sistemático, senão por reforma constitucional. A admissibilidade da prova ilícita pro reo e a conseguinte inafastabilidade do juiz que com ela haja tido contato decorrem de vontade política bruta inspirada na moral. São criações aristocrático-judiciárias, não democrático-legislativas. Em boa parte, decorrem de incompreensão sobre o papel do processo, que é garantir às partes autonomia de debate sem interferência do juiz, não livrar necessariamente o acusado do cárcere; é garantir-lhes liberdade [freedom] e «liberdade» [liberty], não livramento certo [deliverance]. Entendimento contrário geraria as inconcebíveis figuras da «partialidade positiva pro reo» e, portanto, da «partialidade negativa contra accusatione» (sobre o tema, v. nosso Processo: garantia de liberdade ou garantia de livramento?. <https://emporiododireito.com.br/leitura/abpdro-100-processo-garantia-de-liberdade-ou-garantia-de-livramento>).

VIII

É preciso saber quais as providências cabíveis se, mesmo após ter conhecido de prova inadmissível, o juiz prosseguir no processo e eventualmente chamar os autos à sua conclusão para sentenciar. 1) No âmbito penal: 1.1) se se trata de prova inadmissível pro accusatione, cabe: 1.1.1) impetração de habeas corpus, pois configura indevido constrangimento à liberdade do acusado o processamento e o julgamento por juiz parcial; 1.1.2) impetração de mandado de segurança contra ato do juiz mediante citação da acusação como litisconsorte passiva, já que o acusado tem o direito líquido e certo de ser processado e julgado por juiz imparcial; 1.2) se se trata de prova inadmissível pro accusatis, cabe impetração de mandado de segurança contra ato do juiz mediante citação do acusado como litisconsorte passivo, pois a acusação também tem direito líquido e certo a um julgamento imparcial. 2) No âmbito civil, cabe impetração de mandado de segurança contra ato do juiz mediante citação da parte adversária como litisconsorte passiva. Nos dois âmbitos também se pode cogitar das exceções de impedimento e suspeição. Infelizmente, porém, a Lei 13.964/2019 não diz se o contato do juiz com a prova inadmissível o torna impedido ou suspeito. Frise-se: não há diferença ontológica entre uma coisa e outra. Na sucessão dos códigos, não raro, causa de suspeição vira causa de impedimento e vice-versa. Por isso os critérios distintivos desenvolvidos pela dogmática falham com renitência. Ademais, sendo igualmente reprováveis a sentença do juiz impedido e a sentença do juiz suspeito, melhor seria abandonar a distinção e só se falar em exceção de parcialidade (para uma crítica à distinção: SOUSA, Diego Crevelin. Distinção entre impedimento e suspeição?. <https://emporiododireito.com.br/leitura/23-distincao-entre-impedimento-e-suspeicao>). Na verdade, a diferenciação é puramente imputacional: a lei diz se a causa é de impedimento ou de suspeição. E a relevância do distinguo é uma só: impedimento gera rescindibilidade/revisibilidade; suspeição, não (embora não haja razão substancial para a suspeição também não gerar). Por isso, à míngua de elucidação pela Lei 13.964/2019, é impossível dizer se o contato do juiz com prova inadmissível é causa de impedimento ou de suspeição. Na dúvida, diz-se que é causa de impedimento, pois melhor se protege a imparcialidade.

IX

É preciso saber qual vício inquina a sentença do juiz que haja conhecido de prova inadmissível. i) Se a prova for pro auctore e a sentença de procedência/condenatória, a sentença poderá ser nulificada mediante apelação do réu. ii) Se a prova for pro auctore, mas a sentença de improcedência/absolutória, a sentença será válida, pois não terá havido prejuízo ao réu; ainda assim, poderá o autor apelar com o objetivo de reformar o julgado. iii) Se a prova for pro reo, mas a sentença de procedência/condenatória, a sentença será válida, porque não terá havido prejuízo ao autor; ainda assim, poderá o réu apelar com o objetivo de reformar o julgado. iv) Se a prova for pro reo e a sentença de improcedência/absolutória, a sentença poderá ser nulificada mediante apelação do autor. Em (i) e (iv), não importa que a prova inadmissível não tenha sido referida na sentença: a contaminação psicológica do juiz em si basta à nulidade do julgado, uma vez que há o risco de que o juiz tenha supervalorizado outras provas para suprir a falta da prova excluída. Se em (i) e (iv) tiver havido trânsito em julgado, a nulidade se convola em rescindibilidade/revisibidade. Ou seja, a causa se torna rediscutível ab extra em ação rescisória/revisão criminal (obs.: a ação rescisória é a «revisão criminal» do âmbito civil; a revisão criminal, a «ação rescisória» do âmbito penal). No âmbito civil, cabe ação rescisória, visto que é rescindível a sentença de mérito proferida por juiz impedido [CPC, art. 966, II]. No âmbito penal, cabe revisão criminal. É bem verdade que o artigo 621 do CPP não prevê o impedimento como causa de revisibilidade; mas seria inaceitável o juiz civil impedido produzir julgado rescindível e o juiz penal impedido produzir julgado irrevisível. Daí por que em matéria de imparcialidade – como já dito – deve haver complementação mútua dos diversos ramos procedimentais entre si (cf. STJ, 5ª Turma, RHC 57.488/RS, rel. Ministro Ribeiro Dantas, j. 07/06/2016: «[…] tendo em vista a subsidiariedade do direito penal e a maior gravidade das sanções impostas, seria interpretação desprovida de lógica considerar o impedimento um vício rescisório não seara processual civil, portanto, não sujeito sequer à preclusão máxima da coisa julgada (CPC, art. 495; Novo CPC, art. 975), e, por outro lado, o direito processual penal o submetesse à preclusão endoprocessual, em grave prejuízo ao réu»). Excepcionalmente se admite habeas corpus (cf. STF, 2ª Turma, HC 139.742/DF, rel. Min. Dias Toffoli, j. 06/03/2018).

X

Todo ramo do direito se divide em capítulos temáticos. Eles são resultados de cortes verticais, que repartem o conhecimento e, fracionando-o, o fazem mais digerível. Muitas vezes, contudo, a importância prático-quotidiana de um determinado capítulo temático lhe confere uma dignidade especial, fazendo com que se transforme em um sub-ramo e, por conseguinte, seja estudado em separado por especialistas com dedicação exclusiva. No direito civil, por exemplo, há os tradicionais sub-ramos do direito das obrigações, do direito das coisas, do direito de família e do direito de sucessões. No direito processual, já se fala, por exemplo, no direito probatório, no direito dos recursos, no direito das tutelas sumárias e no direito da execução. Entretanto, torna-se cada vez mais necessário destacar um sub-ramo dogmático, porém mediante um corte horizontal, que traspasse todos os demais sub-ramos: o direito da imparcialidade judicial. Sob o ponto de vista zetético, ele é rico em conexões com a psicologia cognitiva, a economia comportamental, a neurociência, a ciência política e a filosofia. Todavia, sob o ponto de vista dogmático, no Brasil ainda há um longo caminho para que esse novo sub-ramo deixe a pré-história. Os seus princípios ainda são incompreendidos, as suas regras são poucas, a jurisprudência é escassa e a doutrina é nenhuma. Nesse sentido, talvez as inovações trazidas pela Lei 13.964/2019 sejam um start point para um desenvolvimento jurídico-cientifico mais profundo. No entanto, a nova lei somente trouxe leves pinceladas dos modelos de procedimento escalonado e de desenviesamento cognitivo. Mesmo assim, restringiu-as ao procedimento penal. É preciso ainda, portanto, esgotar os dois modelos no ambiente procedimental penal e transmigrá-los por inteiro ao ambiente procedimental civil, saltando da pré-história à história pós-moderna. É preciso, enfim, que todo o direito processual seja refundado sob o signo republicano da imparcialidade judicial. No final das contas, a isto se destina constitucionalmente o processo: garantir a liberdade dos cidadãos em juízo mediante o processamento e o julgamento das causas de modo absolutamente imparcial e dentro do reduto tedioso da Constituição e das leis.

Autor

  • Eduardo José da Fonseca Costa

    Juiz Federal em Ribeirão Preto, Especialista, Mestre e Doutor pela PUC-SP, Diretor da Revista Brasileira de Direito Processual, Ex-Presidente da Associação Brasileira de Direito Processual, Membro do Instituto Pan-Americano de Direito Processual



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