Estudar para concurso público para outorga de delegação de serventias extrajudiciais é uma aventura à parte no amplo universo dos concursos públicos da área jurídica no Brasil. Por quê?
Porque, infelizmente, a matriz curricular dos cursos de graduação em Direito em nosso país não preveem até hoje a disciplina Direito Notarial e Registral como disciplina obrigatória para a formação dos bacharéis. De se consignar que a nova matriz curricular estabelecida pelo Ministério da Educação para os cursos de graduação em Direito, que estão sendo, no momento, colocadas em prática pelas faculdades de Direito país afora tampouco sanam essa grave lacuna na formação profissional.
Com isso, temos duas consequências.
A primeira delas é que formamos profissionais do Direito que simplesmente ignoram toda uma ampla gama de importantes atos da vida civil que podem ser legitimamente praticados perante as serventias extrajudiciais ou, quando menos, desconhecem como atuar adequadamente para praticá-los ou auxiliar/instar os jurisdicionados a tanto, seja no papel de advogados públicos ou privados, promotores de Justiça ou magistrados, o que apenas tem se avolumado com o fenômeno da desjudicialização, que tem conduzido paulatinamente à migração de funções até então exercidas exclusivamente pelo Poder Judiciário também para as serventias extrajudiciais.
A segunda consequência possui relação direta com este trabalho. Os bacharéis em Direito que pretendam prestar concurso público de provas e títulos para a outorga das delegações de serventias extrajudiciais, em regra, se formam sem a base de Direito Notarial e Registral que lhes seria extremamente útil como ponto de partida para o aprofundamento de seus estudos.
Mas isso não torna, em absoluto, essa aventura impossível de ser concluída – e com sucesso. Muito ao contrário. Gostaria, de neste sintético artigo, dar algumas dicas úteis para tornar essa caminhada o mais prazerosa e exitosa possível.
O concurso público para a outorga das delegações das serventias extrajudiciais encontra-se previsto no artigo 236 da Constituição Federal da República Federativa do Brasil de 1988 – que tem o inegável mérito de refundar tais serviços em bases democráticas – e foi sendo paulatinamente implementado pelos tribunais locais nos anos subsequentes. Até então, as serventias extrajudiciais eram geridas por pessoas que as transmitiam a seus descendentes (critério da hereditariedade).
Cumpre aduzir que o artigo 3º da Lei Federal nº 8.935/1994, regulando o artigo 236, da CRFB/1988, por seu turno, prevê que os delegatários das serventias extrajudiciais são profissionais do Direito.
Em um primeiro momento, após a promulgação da CRFB/1988, o tribunal de cada ente federativo tendia a realizar os concursos públicos de provas e títulos com conteúdo programático e perfil de provas substancialmente distintos entre si, o que tornava, na prática, mais desafiador ao candidato prestar concurso para as delegações de serviços extrajudiciais em diferentes unidades federativas. Por exemplo, no estado de Minas Gerais, o candidato deveria, no ato de inscrição, já escolher especificamente para qual serventia extrajudicial pretendia concorrer. Essa peculiaridade acabava por ocasionar a concentração de um alto volume de inscrições em serventias extrajudiciais consideradas, à primeira vista, como “mais atraentes”, acarretando o malefício de reduzir drasticamente, a priori, as chances de que serventias extrajudiciais tidas como menos atraentes pudessem ser ocupadas por profissionais qualificados aprovados no certame, o que é altamente desaconselhável, conforme dispõe o §3º, do artigo 236, da CRFB/1988.
No entanto, em 2009, o Conselho Nacional de Justiça editou a Resolução nº 81, que uniformizou nacionalmente o regramento sobre os concursos de prova e títulos para a outorga das delegações dos serviços extrajudiciais de notas e de registros, inclusive prevendo uma minuta de edital padrão.
Caberá aos tribunais locais declarar a vacância das serventias extrajudiciais, sendo incluídas na proporção de 2/3 para o concurso público de ingresso das atividades – para o qual podem se inscrever bacharel em Direito ou profissional que tenha exercido por, ao menos, dez anos função nas serventias extrajudiciais (artigo 7º, inciso VI, da Resolução) – e 1/3 para o concurso público de remoção – para o qual podem se inscrever os delegatários de serventias extrajudiciais que exerçam delegação por, no mínimo, dois anos, na mesma unidade federativa para a qual pretendam prestar o concurso de remoção[1]. O direcionamento das serventias para o concurso de ingresso ou de remoção respeitará o critério cronológico da data de sua vacância (item 2.1.3 da minuta de edital). Haverá oferta de vagas para candidatos com deficiência (item 2.1.4 da minuta de edital) e candidatos negros (itens 2.1.4.2 e 2.1.4.5. da minuta de edital), podendo o mesmo candidato concorrer como pessoa com deficiência e negra (item 2.1.4.5B).
A referida Resolução nº 81 do CNJ nos traz balizas de suma importância na estratégia a ser traçada pelo estudante que pretende prestar esse concurso.
Em primeiro lugar, a Resolução exige que o concurso público, seja de ingresso ou remoção, compreenda, obrigatoriamente, as seguintes fases: (i) prova objetiva de seleção; (ii) prova escrita e prática; (iii) prova oral e (iv) prova de títulos (item 5 da minuta de edital).
As provas tratarão de vasto conteúdo, a saber: Registros Públicos, Direito Constitucional, Direito Administrativo, Direito Tributário, Direito Civil, Direito Processual Civil, Direito Penal, Direito Processual Penal, Direito Comercial, conhecimentos gerais e Língua Portuguesa, sendo certo que o domínio da Língua Portuguesa será avaliado em todas as fases e provas (item 5.3 da minuta do edital).
A prova objetiva trará questões de múltipla escolha sobre todos os conteúdo indicados acima, sendo vedada a consulta a qualquer material, e serão convocados para a etapa subsequente os candidatos com maior nota na primeira etapa até a proporção de 8 candidatos por vaga (item 5.5 da minuta de edital).
Percebemos que, paulatinamente, a primeira etapa (prova objetiva) para o concurso de ingresso e remoção nas serventias extrajudiciais tem se aproximado do perfil geral da prova objetiva dos demais concursos públicos para carreiras jurídicas. Inicialmente, em especial no estado do Rio de Janeiro, onde exercemos as funções extrajudiciais há mais de 17 anos, havia uma abordagem das disciplinas, em todas as etapas, desde o início do certame, substancialmente voltada para os seus pontos de contato e imbricação com as atividades de notas e registros. Com o tempo, a prova objetiva passou a ser mais generalista, demandando do candidato conhecimentos que, em sua prática profissional, de fato, nem sempre lhe serão muito úteis.
Essa mudança no perfil da prova objetiva, adquirindo caráter mais generalista, beneficia, em certa medida, os candidatos que porventura estejam simultaneamente prestando concursos para carreiras jurídicas distintas, visto que terão chances de êxito nessa etapa razoavelmente equilibradas em relação aos candidatos que estejam se dedicando especificamente para o concurso de outorga das delegações de serviços extrajudiciais. Podemos testemunhar vários alunos que estavam estudando especificamente para concursos de outras carreiras e passaram, com certa tranquilidade, na prova objetiva para a outorga das delegações de serventias extrajudiciais.
O ponto chave está precisamente no domínio de Direito Notarial e Registral que, na prova objetiva, será um diferencial e, nas etapas posteriores, se mostrará essencial.
Para a prova objetiva, que, como a própria expressão já designa, demanda conhecimento mais direto e superficial, sem maiores divagações teóricas ou imersão em questões controvertidas, afigura-se indispensável a leitura atenta das principais leis que regem as atividades notariais e registrais, dentre as quais destaco as Leis Federais nºs 6.015/1973, 7.433/1985, 8.935/1994 e 9.492/1997.
Outra peculiaridade dos concursos para delegação de serventias extrajudiciais consiste na importância capital da leitura da Parte Extrajudicial do Código de Normas da Corregedoria-Geral de Justiça do tribunal da respectiva unidade federativa para a qual o candidato se inscreveu.
Isso porque o Código de Normas de cada tribunal tende a regulamentar, de forma minudente, as leis federais antes indicadas e dispor detalhadamente sobre a prática dos atos notariais e registrais dos delegatários no âmbito territorial daquela unidade federativa. Nesse aspecto, cumpre ressaltar que os Códigos de Normas de cada tribunal tendem, ainda hoje, a trazer regramentos bastante díspares entre si, razão pela qual, de fato, é de todo recomendável que o candidato efetivamente conheça e domine o conteúdo do Código de Normas respectivo.
Há diversos temas que, sendo arguidos em questões idênticas aplicadas em concursos públicos para a outorga de delegação em serventias extrajudiciais, a resposta correta (gabarito) variará conforme a unidade federativa para a qual o candidato estiver prestando o concurso.
Ad exemplum tantum, o Código de Normas do Tribunal de Justiça de São Paulo[2] prevê que a penhora de imóvel ensejaria a averbação na respectiva matrícula do registro de imóveis (artigos 46 e 341), enquanto a normatização do Rio de Janeiro dispõe que se trataria de registro (artigos 520 e 521)[3] – cabendo consignar que, humildemente, consideramos tecnicamente mais acertada a previsão da normativa fluminense; em apertadíssima síntese, tendo em vista que a penhora enseja ato registral principal (registro), e não meramente acessório (averbação).
De igual modo, há unidades federativas que, com absoluta correção, admitem expressamente que a alteração do nome, a requerimento do interessado, no primeiro ano após atingida a maioridade civil, na forma do artigo 56 da Lei Federal nº 6.015/1973, seja realizada diretamente perante o delegatário da serventia extrajudicial, sem a necessidade de intervenção judicial, como o é o caso, por exemplo, dos arts. 34 e 35, do Provimento nº 01/2021 Tribunal de Justiça de São Paulo[4] e do artigo 26, do Código de Normas do Tribunal de Justiça de Pernambuco[5], sepultando quaisquer dúvidas a respeito da admissibilidade da prática extrajudicial do ato, enquanto outros tribunais silenciam a respeito, como é o caso do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro[6].
Nas etapas subsequentes, notadamente na Prova Escrita e Prática e na Prova Oral, há uma maior tendência a que as perguntas de todas as disciplinas e matérias explorem temas que guardem pertinência mais próxima com o Direito Notarial e Registral. Apenas para trazer alguns exemplos ilustrativos, em Direito Tributário, explorar a natureza jurídica dos emolumentos cobrados pelas serventias extrajudiciais para a prática de seus atos (taxa) ou, em Direito Penal, explorar, v.g., o crime de falsidade de documento público (artigo 297, CP).
Para tanto, a base de Direito Notarial e Registral é essencial, visto que, ainda que o candidato não tenha domínio especificamente sobre aquele tema da disciplina específica que está sendo questionada, terá grandes chances de acertar a resposta lançando mão do arcabouço central de Direito Notarial e Registral e o relacionando com as premissas centrais do outro ramo do Direito. Por conseguinte, ter bases sólidas é, no nosso entender, indispensável para que o candidato tenha o instrumental necessário para nunca ser pego desprevenido nas etapas subsequentes do certame.
Em Direito Notarial e Registral, à época em que prestamos o nosso primeiro concurso público para a área, em 2004, havia pouca produção bibliográfica específica no Brasil e, felizmente, desde então, a oferta de material tornou-se mais abundante. No entanto, quantidade não equivale a qualidade. Dessa forma, infelizmente, é recomendável que o candidato, antes de adquirir material de apoio, consulte professores especialistas que o orientem.
De nossa parte, nos estreitos limites do escopo do presente artigo, podemos tranquilamente consignar que autores como Walter Ceneviva, Nicolau Balbino Filho e Luiz Guilherme Loureiro, para citarmos apenas três, são referências indiscutíveis em Direito Notarial e Registral há muitos anos, não por acaso. Logram convergir clareza, didática e profundidade como poucos na área.
Na Prova Prática, a tendência é que a banca inste o candidato a redigir uma peça atrelada à sua futura prática profissional, como, por exemplo, uma escritura pública de compra e venda (ou venda e compra, como os colegas paulistas tendem a designar), um testamento público ou uma escritura declaratória de união estável. Considerando-se que o candidato, nessa etapa, apenas poderá consultar legislação sem qualquer comentário (Item 5.6.1 da Resolução nº 81 do CNJ), é de todo recomendável que ele leia atos extrajudiciais de diferentes espécies, de modo a dominar o seu conteúdo e se sentir apto a redigi-lo, de memória, segundo a melhor técnica. Questões típicas da atividade notarial e registral, tais como consignar expressamente “certifico e dou fé”, costumam ser exigidos pela banca e, portanto, são objeto de pontuação.
A Resolução nº 81 do CNJ, em seu item 5.6, deixa claro que a Prova Escrita e Prática consistirá não apenas na resposta a questões discursivas e na elaboração de peça prática, como dissemos antes, mas ainda na redação de uma dissertação.
Percebemos que a dissertação também tende a instar o candidato a desenvolver raciocínio atrelado a questões que possuam pertinência com o Direito Notarial e Registral, ainda que, à primeira vista, possam não parecer ter relação direta. No momento, nos chamam a atenção temas que estão na ordem do dia, tais como as profundas e rápidas mudanças no Direito da Famílias e o fenômeno da desjudicialização em geral, que acabam por ter impacto no exercício das atividades notariais e registrais.
Por fim, não poderíamos deixar de alertar que, “no dia seguinte”, ou seja, após a aprovação e a escolha da serventia extrajudicial na ordem da classificação final (artigo 11 da Resolução nº 81 do CNJ), quando o candidato efetivamente estiver no exercício de suas funções extrajudiciais, o domínio do Direito Civil como um todo será de grande valia.
A experiência prática angariada ao longo de mais de quinze anos ininterruptos de exercício da delegação nas atividades extrajudiciais nos permite afirmar que o Direito Notarial e Registral é, em última análise, a concretização do Direito Civil em todos os seus sub-ramos em prol da sociedade brasileira, ou seja, as serventias extrajudiciais se voltam a garantir ao usuário que exerça a sua cidadania com a segurança jurídica necessária, praticando os atos da vida civil de modo a legitimamente usufruir os efeitos deles decorrentes, previstos em lei. Dessa forma, conhecer o Direito Civil significa, para o delegatário de serventia extrajudicial, melhor compreender as razões e os efeitos dos atos por ele praticados e, assim, interpretar e aplicar melhor todas as normas que regem diretamente a sua atividade. Há um necessário diálogo entre fontes no que tange ao Direito Civil e ao Direito Notarial e Registral e, devemos acrescentar, cada vez mais também congregando o Direito Processual Civil, em virtude da crescente desjudicialização e do incremento do papel do delegatário de serventia extrajudicial no bojo do próprio processo judicial, haja vista a previsão, dentre outros, da Ata Notarial como meio de prova típico (artigo 384, CPC/15), da possibilidade de averbação premonitória (artigo 828, CPC/15), do protesto de decisão judicial transitada em julgado (artigo 517, CPC/15) e da penhora de imóvel devidamente matriculado por termo nos autos (artigo 845, §1º, CPC/15).
O domínio do Código de Normas editado pelo tribunal da respectiva unidade federativa também será de suma importância para o adequado exercício prático do múnus assumido pelo delegatário.
Por fim, merece destaque que o delegatário de serventia extrajudicial conta com colaboradores, seus auxiliares e escreventes, que são seus empregados segundo o regime celetista, razão pela qual predicados relacionados com gestão de equipe, liderança, pragmatismo, resolução objetiva, rápida e eficaz de problemas e agilidade são primordiais para que o ambiente interno da serventia seja harmonioso, instigante e desafiador, e, de outro lado, os serviços extrajudiciais sejam prestados ao usuário com cordialidade, tecnicidade e eficiência.
Desejamos muito boa sorte a todos que queiram se juntar a nós e que sejam muito bem-vindos à nobre carreira!
[1] Embora transborde a temática do presente artigo, consigno que, pessoalmente, discordo da limitação ao exercício na mesma unidade federativa, para fins de remoção, tendo em vista, a uma não haver previsão legal nesse sentido –o artigo 236 da CRFB/88 não minudencia o tema e o artigo 17 da Lei Federal nº 8.935/1994 exige apenas o exercício por dois anos -, e, a duas haver forte tendência de unificação nacional não apenas dos requisitos para outorga da delegação, por força da Resolução nº 81, em comento, como para a prática dos atos extrajudiciais, diante da crescente regulamentação das atividades extrajudiciais realizada nacionalmente pelo Conselho Nacional de Justiça. Penso, portanto, que seria de todo recomendável pensar na dispensa da restrição regional contemplada na Resolução nº 81.
[2] TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO. Código de Normas. Disponível em: https://api.tjsp.jus.br/Handlers/Handler/FileFetch.ashx?codigo=127865 Consulta realizada em 01/09/2021.
[3] TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO. Código de Normas. Disponível em: http://cgj.tjrj.jus.br/documents/1017893/0/codigo-extrajudicial-atualizado-em-29-12-2020-003.pdf/471adae2-1b04-4906-15b2-5a554ad9a36c?t=1610041514124 Consulta realizada em 01/09/2021.
[4] TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO. Provimento º 01/2021. Disponível em: https://infographya.com/files/PROVIMENTO_CG_n_01_2021.pdf Consulta realizada em 02/09/2021.
[5] TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE PERNAMBUCO. Código de Normas. Disponível em: https://www.tjpe.jus.br/documents/29010/1101020/Codigo+de+Normas+atualizado+at%C3%A9+Prov+16-2019+-+Dje+24.10.2019.pdf/becad42a-aa49-2e16-59f4-7d284a33c335 Consulta realizada em 02/09/2021.
[6] Cumpre consignar que submetemos proposta de enunciado, aprovada na II Jornada de Prevenção e Solução Extrajudicial dos litígios promovida pelo Conselho da Justiça Federal, em agosto de 2021, com o escopo precisamente de uniformizar nacionalmente a interpretação do artigo 56 da LRP, deixando claro ser autorizada a alteração do nome, a requerimento do interessado, diretamente perante o delegatário de serventia extrajudicial do Registro Civil de Pessoas Naturais, independentemente de intervenção judicial. Aguarda-se, no momento, a publicação dos enunciados aprovados na referida Jornada.
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