O poder constituinte originário estabeleceu limites materiais categóricos às reformas a serem implementadas pelo poder constituído (derivado). Constam no rol expresso no art. 60, § 4.º da Constituição Federal, a vedação à deliberação de proposta de emenda constitucional tendente a abolir: (i) a forma federativa de Estado; (ii) o voto direto, secreto, universal e periódico; (iii) a separação dos Poderes; (iv) os direitos e garantias individuais.
Nota-se que o “projeto constituinte” estabeleceu um núcleo essencial, cláusulas de intangibilidade, ou seja, as conhecidas cláusulas pétreas as quais se qualificam como sendo imunes às reformas em cujos resultados possam caracterizar uma ruptura ou desfiguração dos direitos ou garantias ali estabelecidas.
A questão a ser colocada é a seguinte: quais são os direitos efetivamente protegidos pela limitação às emendas constitucionais?
Algumas considerações iniciais são necessárias.
Em primeiro lugar, ao contrário de supressões ou reformas que excluam ou tendam a abolir os direitos constantes do art. 60, § 4.º da CF, não se revela questionável a inclusão de novos direitos nesse rol protetivo por ato do Parlamento Nacional, tal como o foi, p. ex., a inserção no âmbito dos direitos e garantias fundamentais, do inciso LVIII do art. 5.º da CF ao prever “a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação” e na Emenda Constitucional n.º 72 de 2013, que aumentou os direitos fundamentais sociais dos trabalhadores domésticos (art. 7.º parágrafo único da CF). A inserção de novos direitos fundamentais no ordenamento brasileiro também é perfeitamente admissível através da internalização de tratados internacionais, nos termos do art. 5.º, § 3.º da CF. Na contemporaneidade, o Brasil possui dois tratados internacionais aprovados na forma do texto normativo sobredito, a saber: A Convenção Internacional de Proteção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (Decreto n.º 6.949/2009) e o Tratado de Marraquexe para Facilitar o Acesso a Obras Publicadas às Pessoas Cegas (Decreto n.º 9.522/2018).
Em segundo lugar, o Supremo Tribunal Federal, qualificou como direitos e garantias individuais, p. ex., a anterioridade tributária estabelecida no art. 150, III, b, da CF[1]; isonomia tributária, capitulada no art. 150, II da CF[2] e, a anterioridade eleitoral inserida no art. 16 da CF[3]. Parece-nos, s.m.j., que o STF reconheceu a existência de direitos e garantias individuais para além do rol do art. 5.º da CF.
De volta à indagação, em outras palavras: todos os direitos fundamentais ou somente os direitos e garantais individuais são considerados cláusulas pétreas?
Tema desperta paixões, enaltece ideologias e, sobretudo, dificulta seriamente a identificação do conjunto de direitos protegidos pelo art. 60, § 4.º, IV da CF, contribuindo para tornar problemática a interpretação e o alcance do dispositivo, além de obscurecer sua aplicabilidade (art. 5.º, § 1.º da CF)[4].
Alexandre Coutinho Pagliarini sustenta que, “em uma hermenêutica constitucional acertada (…), quis o Poder Constituinte originário dizer direitos e garantias fundamentais (ou direitos humanos e suas garantias); utilizou-se, todavia, das palavras conjugadas direitos individuais, uso este que é compreensível porque, é verdade, os direitos individuais compõem a primeira geração dos direitos humanos. Por isso, em virtude desse vanguardismo, é bastante comum que a doutrina, a jurisprudência e até mesmo as normas (…) façam uso de uma especificidade historicamente importante (dos direitos individuais) para dar conta de algo mais genérico (dos direitos fundamentais como um todo)”[5].
Virgílio Afonso da Silva após concluir que a salvaguarda contida no art. 60, § 4.º, IV da CF “não se limita aos direitos previstos no art. 5.º”, assevera que “outros direitos individuais também são protegidos”, assim como “dado o caráter expansivo da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal no que diz respeito às cláusulas pétreas, parece haver razões suficientes para pressupor que direitos sociais e direitos dos trabalhadores (ou ao menos uma boa parte deles) seriam considerados direitos individuais pelo Tribunal e, portanto, protegidos pelo art. 60, § 4.º, IV da CF”[6].
Para o jurista “há uma razão conceitual que justifica não restringir os direitos e garantias individuais previsto no art. 60, § 4.º, IV, apenas aos direitos de liberdade do art. 5.º; não há nenhuma ligação necessária e exclusiva entre os conceitos de direito individual e direito de liberdade. Ou seja, há direitos individuais que não são direitos de liberdade”[7].
Dimitri Dimoulis e Leonardo Martins, por outro lado, advertem que “equivocado seria considerar como fundamentais tão somente os direitos protegidos por cláusulas pétreas”. Todavia, comungam do entendimento segundo o qual “o art. 60, § 4.º proíbe a aprovação de proposta de Emenda Constitucional tendente a abolir, entre outros, ´direitos e garantias individuais`(inciso IV)”. Reconhecem que parcela significativa da doutrina nacional afirma que “a despeito do adjetivo ´individuais`, a vedação de reforma abrangeria todos os direitos fundamentais”[8].
Do ponto de vista jurídico-positivo – e não político-jurídico – a “terminologia empregada pelo constituinte indica que o art. 60 CF vale-se de um termo bem mais restrito do que a expressão ´direitos fundamentais`”. Segundo a posição firmada por Dimoulis e Martins, a referência a “direitos individuais exclui os direitos coletivos, os direitos sociais, se entendidos como direitos coletivos, os direitos políticos e os direitos difusos da proteção do art. 60, podendo todas essas espécies de direitos sofrer restrições ou mesmo serem ´abolidas` mediante o procedimento constitucionalmente previsto de reforma. A Constituição Federal atribuiu à expressão direitos fundamentais, que se encontra no Título II, um sentido abrangente, sendo suas espécies os direitos individuais, os direitos coletivos, os direitos sociais, os direitos de nacionalidade, os direitos políticos e os relacionados aos partidos políticos, conforme indicam os vários capítulos do Título II”. Enfatizam, por fim, que “é protegida pela cláusula do art. 60, § 4.º, IV tão somente uma parcela dos direitos fundamentais que, grosso modo, correspondem aos direitos de resistência que podem ser exercidos individualmente”[9].
Considerando a teoria dos stati de Georg Jellinek, no bojo da qual os denominados direitos de defesa ou de resistência (status negativus) qualificam-se como direitos públicos subjetivos oponíveis pelo indivíduo contra o Estado, ou em outros termos, os Direitos de defesa exercidos pelos indivíduos reclamam um não agir, uma abstenção por parte do Poder Estatal[10], parece-nos adequado fixarmos a premissa de que direitos de defesa se restringem ao gênero “direitos fundamentais” da espécie “individuais” (clássicos, de primeira geração ou dimensão).
Nessa perspectiva, os direitos e garantias individuais operam como limites materiais (art. 60, § 4.º, IV da CF) ao poder constituinte derivado e se caracterizam como sendo direitos subjetivos em todo o seu espectro, com exigibilidade plena, contudo, passíveis de restrições, tanto de ordem legislativa quanto judicial e/ou administrativa. A eventual intervenção Estatal no âmbito da proteção constitucional é que merece a atenção no sentido de sua necessidade e adequação.
Vale recordar que a cláusula de proibição é de emendas à Constituição cujo conteúdo venha a abolir os direitos e garantias individuais. Nesse sentido, o STF já decidiu que “as limitações materiais ao poder constituinte de reforma, que o art. 60, § 4.º, da Lei Fundamental enumera, não significam a intangibilidade literal da respectiva disciplina na Constituição originária, mas apenas a proteção do núcleo essencial dos princípios e institutos cuja preservação nelas se protege”[11]. Não há, a priori, empecilhos que inviabilizem a realização de alterações na Constituição, sejam elas relativas aos direitos de defesa, sejam no que pertine a qualquer outro direito fundamental.
Firmamos, assim, o entendimento segundo o qual: (α) os direitos fundamentais que merecem a proteção inserida no art. 60, § 4.º, IV da CF, circunscrevem-se aos direitos de resistência, defesa ou liberdade, considerados esses os direitos e garantias individuais, independentemente de suas localizações topográficas no Texto Constitucional; (β) a salvaguarda, por outro lado, não implica na refratabilidade às reformas, podendo essas se concretizarem (i) em relação aos direitos e garantias individuais, preservando-se os núcleos essenciais da proteção constitucional, o que demandará uma percuciente análise teleológica da pretendida alteração e (ii) em relação aos demais direitos fundamentais não contemplados no referido dispositivo, cuja dicção restritiva se evidencia, o alcance da remodelação ou rearranjo constitucional poderá ser amplo, tolerando, inclusive, ab-rogações.
[1] ADI 939, Relator Sydney Sanches, Tribunal Pleno, julgado em 15/12/1993, DJ 18/03/1994, p. 5165, vol. 1737-02/160, in RTJ 151-03/755.
[2] ADI 3105, Relatora Ellen Gracie, Relator(a) p/ Acórdão Cezar Peluso, Tribunal Pleno, julgado em 18/08/2004, DJ 18/02/2005, p. 5, vol. 2180-02/123, in RTJ 193-01/137 e RDDT n. 140, 2007, p. 202/203.
[3] ADI 3685, Relatora Ellen Gracie, Tribunal Pleno, julgado em 22/03/2006, DJ 10/08/2006, p. 19, vol. 2241-02/193, in RTJ 199-03/957 e RE 633703, Relator(a) Gilmar Mendes, Tribunal Pleno, julgado em 23/03/2011, Repercussão Geral-Mérito, DJe-219, 18/11/2011, vol. 2628-01/65, in RTJ 221-0/462.
[4] “As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata”.
[5] Direitos e garantias fundamentais. Curitiba: interSaberes, 2021, p. 32-33.
[6] Direito constitucional brasileiro. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2021, p. 555.
[7] Op. cit., p. 555.
[8] Teoria geral dos direitos fundamentais. 7. Ed. São Paulo: Thomson Reuteus Brasil, 2020, p. 57.
[9] Op. cit., p. 58.
[10] Como bem adverte Wilson Steinmetz, “os direitos de defesa se distinguem dos direitos a prestações em sentido amplo – direitos fundamentais sociais, direitos à proteção e direitos à organização e ao procedimento –, porque estes exigem do Estado ações, normativas e fáticas, positivas” (DIMOULIS, Dimitri. (Coord. Geral). Dicionário brasileiro de direito constitucional. 2. Ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 142).
[11] ADI 2024, Relator Sepúlveda Pertence, Tribunal Pleno, julgado em 03/05/2007, DJe-042, de 22/06/2007, p. 16, vol. 2281-01/128, in RDDT n. 143, 2007, p. 230-231.