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É PRECISO RECORRER DA DECISÃO DE ADMISSIBILIDADE PARCIAL DO RECURSO ESPECIAL?

É PRECISO RECORRER DA DECISÃO DE ADMISSIBILIDADE PARCIAL DO RECURSO ESPECIALO CPC/2015, embora originariamente tivesse previsto que o juízo de admissibilidade dos recursos extraordinário e especial seria feito uma vez apenas, no STF e no STJ respectivamente, durante o período de vacância, foi alterado pela Lei n. 13.256/2016, que promoveu o retorno à sistemática anterior, prevendo o duplo juízo de admissibilidade desses recursos, pelo tribunal a quo e, se for positivo ou se houver agravo provido, pelo tribunal ad quem.

Diante desse cenário legal, cabe analisar aquelas hipóteses em que o recurso especial é admitido parcialmente no juízo a quo.

Imagine-se que um determinado acórdão de Tribunal de Justiça contenha três capítulos diferentes e é interposto recurso especial em face dele, com impugnação desses três capítulos a partir de três diferentes fundamentos de cabimento do recurso. Analisado o recurso pelo tribunal a quo é ele recebido apenas com relação a dois fundamentos de cabimento (dois capítulos) e inadmitido com relação ao terceiro. A partir disso, cabe questionar: incumbiria à parte recorrente interpor o recurso de agravo (a depender do caso, agravo interno ou agravo em recurso especial) ou poderia o STJ, na fase do seu juízo de admissibilidade, receber o recurso na sua totalidade?

A resposta a esse questionamento parece muito simples: se há dois juízos de admissibilidade, o segundo, do STJ, não está adstrito ao primeiro. Então, uma vez que o recurso tenha sido remetido ao tribunal superior, ainda que com admissibilidade parcial pelo tribunal a quo, caberá ao STJ fazer novo e completo exame dos seus requisitos formais e, se assim entender, poderá recebê-lo no todo.

Entretanto, como costuma acontecer nas questões com respostas aparentemente simples, há divergências e é isso que se buscará analisar neste texto.

A respeito da não vinculação do STJ ao juízo de admissibilidade feito pelo tribunal a quo há vários julgados no tribunal:

“(…) a admissibilidade realizada pela instância a quo não vincula esta Corte Superior, tratando-se de um juízo de duplo controle ou controle bifásico.” (REsp 1.877.338/CE, Rel. Min. Benedito Gonçalves, 1ª Turma, DJe 10/02/2021)

“(…) 4. O juízo de admissibilidade do recurso especial é bifásico, por isso, a decisão proferida pelo Tribunal de origem não vincula esta Corte, que tem competência plena para verificar, novamente, o preenchimento dos pressupostos recursais.” (AgInt no REsp 1.605.431/RS, Rel. Min. Sérgio Kukina, 1ª Turma, DJe 04/02/2019)

“(…) 1. Segundo jurisprudência desta Corte Superior, o juízo de admissibilidade do recurso especial está sujeito a duplo controle, de maneira que a aferição da regularidade formal do recurso pela instância a quo não vincula o Superior Tribunal de Justiça, já que se trata de juízo provisório, recaindo o juízo definitivo sobre este Sodalício, quanto aos requisitos de admissibilidade e em relação ao mérito.” (AgInt nos EDcl nos EDcl no REsp 1.599.447/RJ, Rel. Min. Mauro Campbell Marques, 2ª Turma, DJe 11/06/2018)

Também na doutrina encontram-se lições nesse sentido. Para Araken de Assis, “o STJ não fica adstrito ao juízo positivo: o relator poderá revê-lo e negar seguimento ao especial”[1].  Fredie Didier Jr. e Leonardo Carneiro da Cunha entendem da mesma maneira:

“No tribunal superior é exercido o juízo definitivo de admissibilidade. Admitido que seja o recurso pelo presidente ou vice-presidente do tribunal local, o juízo provisório ali exercido não vincula o tribunal superior, que detém, como dito, o juízo definitivo de sua admissibilidade.”[2]

Nos clássicos comentários ao CPC/1973, Barbosa Moreira já afirmava a não vinculação do tribunal superior:

“Se o admite, não há recurso, mas o pronunciamento do Presidente, irrevogável, não é vinculativo para a Corte, à qual ficará livre conhecer ou não do extraordinário, oportunamente, inclusive acolhendo alguma alegação de inadmissibilidade porventura formulada na impugnação do recorrido e desprezada pelo tribunal a quo”.[3]

De se perceber, pelos trechos dos julgados e pelas lições doutrinárias, que a não vinculação do tribunal superior à decisão sobre admissibilidade do tribunal a quo está sempre fazendo referência a uma decisão positiva de admissibilidade deste último e pressupõe-se, a partir disso, que uma decisão negativa de admissibilidade poderia ser revista pelo STJ no caso de lhe chegar o recurso cabível, qual seja: agravo em recurso especial.

Entretanto, pouco se fala sobre as eventuais decisões de admissibilidade parcial, que é o que se quer analisar aqui.

Luiz Rodrigues Wambier e Eduardo Talamini enfrentam essa questão:

“(…) havendo diferentes capítulos decisórios recorridos, se o recurso houvesse sido admitido no órgão a quo em relação a alguns deles, mas não quanto a outros, ainda assim seria desnecessário o agravo para o tribunal superior (na época, denominado ‘de instrumento’). Já o parágrafo único do art. 1.034 parece restringir a devolução aos fundamentos inadmitidos relativos a um único e mesmo capítulo, em relação ao qual o recurso tenha sido admitido por outros fundamentos. A valer essa leitura restritiva – que não parece ser a mais compatível com os parâmetros de devolução usualmente adotados nem com a economia processual –, haveria a necessidade de agravar da inadmissão do recurso especial ou extraordinário quanto a um capítulo decisório, a despeito de ele haver sido admitido em relação a outro(s). fica a advertência quanto ao risco de que possa vir a prevalecer essa orientação. Mas ela não seria, reitere-se, sistematicamente a mais correta.”[4]

 

Para a compreensão adequada da problemática, é necessário que se analisem os fundamentos determinantes do enunciado 528 da súmula do STF, assim também o art. 1.034, parágrafo único do CPC/2015 e, em alguma medida, o alcance da devolutividade em relação ao juízo de admissibilidade.

O STF, em 1969, consolidou entendimento no enunciado 528 da sua súmula de jurisprudência dominante nos seguintes termos:

“Se a decisão contiver partes autônomas, a admissão parcial, pelo Presidente do Tribunal a quo, de recurso extraordinário que, sôbre qualquer delas se manifestar, não limitará a apreciação de tôdas pelo Supremo Tribunal Federal, independentemente de interposição de agravo de instrumento.”

Com a entrada em vigor do CPC/2015 e a previsão do art. 1.034, parágrafo único, já há quem entenda ter havido a superação desse enunciado de súmula (conforme se pode ver no enunciado 223 do Fórum Permanente de Processualistas Civis – FPPC).

Nos termos do referido dispositivo legal, “admitido o recurso extraordinário ou o recurso especial por um fundamento, devolve-se ao tribunal superior o conhecimento dos demais fundamentos para a solução do capítulo impugnado.”

A questão é saber se essa disposição do CPC/2015 teria o condão de representar a superação do enunciado de súmula 528/STF. Parece-nos que não.

O art. 1.034/CPC está inserido na subseção das disposições gerais a respeito dos recursos extraordinário e especial. Ele é antecedido pelo art. 1.029, que trata das formalidades de interposição; pelo art. 1.030, que dispõe sobre o juízo de admissibilidade pelo tribunal a quo; pelo 1.031, que estabelece regras para os casos de interposição conjunta de RE e REsp; e pelos arts. 1.032 e 1.033, com suas disposições a respeito da fungibilidade recursal.

De se notar que a partir do art. 1.031 o Código começa a tratar dos procedimentos nos tribunais superiores, ao contrário dos artigos anteriores que se referem aos procedimentos no tribunal local.

E isso é importante para compreender a que se referem as disposições do art. 1.034.

O caput do referido artigo dispõe sobre o julgamento do mérito do recurso pelo STJ ou pelo STF após o juízo de admissibilidade. Isso ocorrerá quando for completado o ciclo bifásico do juízo de admissibilidade (tribunal a quo e tribunal ad quem).

O seu parágrafo único, por sua vez, complementa a cabeça do artigo para dispor a respeito do efeito devolutivo do recurso admitido.

Quando ele usa a expressão “admitido o recurso”, é evidente que não está se referindo à admissão que é feita pelo tribunal a quo, pois apenas essa admissão não dá ao tribunal superior a oportunidade de julgar o mérito do recurso. É necessário o novo juízo de admissibilidade, completando-se as duas fases desse procedimento.

Dessa maneira, a devolutividade a que faz referência o parágrafo único do art. 1.034/CPC é referente às questões de mérito do recurso, pois parte do pressuposto de que ele já tenha sido admitido.

Assim, não há que se falar em superação do enunciado de súmula 528/STF, pois este diz respeito à devolutividade das questões relativas à admissibilidade recursal.

Ora, sabendo-se que no recurso há dois planos de análise, o da admissibilidade e o do mérito, não se pode confundi-los.

Aliado a isso, sabendo-se que no caso do RE e do REsp o juízo de admissibilidade não se encerra na atividade do tribunal a quo e depende da atividade do tribunal ad quem, não cabe que se use disposição legal que considera concluído o procedimento bifásico da admissibilidade recursal para aplicação nos casos em que apenas a primeira fase restou concluída.

Assim, partindo do pressuposto que o tribunal ad quem não está adstrito ao juízo de admissibilidade feito pelo tribunal a quo, se este resultou em admissão parcial do recurso especial, haverá a subida dos autos ao STJ, independentemente de agravo, e na segunda fase dessa análise poderá o STJ considerar que o tribunal local equivocou-se ao não receber parcialmente o recurso.

Do contrário, ter-se-ia uma situação bastante estranha e confusa.

Se a inadmissão no tribunal local deu-se com base do art. 1.030, I ou III, o recorrente teria que interpor agravo interno e a subida da parcela admitida do recurso especial teria que aguardar o julgamento daquele recurso.

Por outro lado, se o não recebimento do tribunal a quo baseou-se no art. 1.030, V, caberia ao recorrente interpor agravo em recurso especial, para fazer subir ao STJ aquela parcela do REsp que já subiria de qualquer maneira, tendo em vista a admissibilidade parcial.

Por qualquer ângulo que se analise, percebe-se o completo despropósito de interpretar-se o art. 1.034, parágrafo único/CPC para superar o enunciado de súmula 528/STF.

 

Referências

ASSIS, Araken de. Manual dos recursos, 9ª ed. rev. atual e ampl. São Paulo: RT, 2017.

DIDIER JR., Fredie; CUNHA, Leonardo Carneiro da. Curso de Direito Processual Civil: meios de impugnação às decisões judiciais e processos nos tribunais, vol. 3, 13ª ed. Salvador: JusPodivm, 2016, p. 316.

MOREIRA, José Carlos Barbosa. Comentários ao Código de Processo Civil: arts. 476 a 565, V vol. Rio de Janeiro: Forense, 1974, p. 447

WAMBIER, Luiz Rodrigues; TALAMINI, Eduardo. Curso Avançado de Processo Civil: cognição jurisdicional, vol 2, 16ª ed. São Paulo: RT, 2016, p. 615.

[1] ASSIS, Araken de. Manual dos recursos, 9ª ed. rev. atual e ampl. São Paulo: RT, 2017, p. 971.

[2] DIDIER JR., Fredie; CUNHA, Leonardo Carneiro da. Curso de Direito Processual Civil: meios de impugnação às decisões judiciais e processos nos tribunais, vol. 3, 13ª ed. Salvador: JusPodivm, 2016, p. 316.

[3] MOREIRA, José Carlos Barbosa. Comentários ao Código de Processo Civil: arts. 476 a 565, V vol. Rio de Janeiro: Forense, 1974, p. 447

[4] WAMBIER, Luiz Rodrigues; TALAMINI, Eduardo. Curso Avançado de Processo Civil: cognição jurisdicional, vol 2, 16ª ed. São Paulo: RT, 2016, p. 615.

 

Acompanhe a coluna Observatório Processual do STJ no Contraditor.com.

O PREQUESTIONAMENTO AINDA É UMA QUESTÃO MAL RESOLVIDA

elgo bravo prequestionamento stjAo julgar o REsp n. 1.639.314/MG, a Terceira Turma do STJ, sob a relatoria da ministra Nancy Andrighi, estabeleceu curioso entendimento sobre o prequestionamento ficto previsto no CPC/2015, art. 1.025.

“A admissão de prequestionamento ficto (art. 1.025 do CPC/15), em recurso especial, exige que no mesmo recurso seja indicada violação ao art. 1.022 do CPC/15, para que se possibilite ao Órgão julgador verificar a existência do vício inquinado ao acórdão, que uma vez constatado, poderá dar ensejo à supressão de grau facultada pelo dispositivo de lei.”

Embora esse não tenha sido um recurso especial afetado pela sistemática dos repetitivos e nem o tema tenha sido enfrentado de forma aprofundada pelo tribunal no julgamento, é importante que ele seja analisado e que o entendimento nele estabelecido, a respeito do prequestionamento ficto, seja objeto de reflexões.

O CPC/2015 assim dispõe:

“Art. 1.025. Consideram-se incluídos no acórdão os elementos que o embargante suscitou, para fins de pré-questionamento, ainda que os embargos de declaração sejam inadmitidos ou rejeitados, caso o tribunal superior considere existentes erro, omissão, contradição ou obscuridade.”

Essa disposição, como é sabido, veio para superar o entendimento jurisprudencial que havia se firmado no âmbito do STJ e que se consubstanciou no enunciado n. 211 da súmula do tribunal: “Inadmissível recurso especial quanto à questão que, a despeito da oposição de embargos declaratórios, não foi apreciada pelo Tribunal a quo.”

A jurisprudência do STJ, nesse ponto, divergia da jurisprudência do STF, que havia editado o enunciado de súmula n. 356, segundo o qual: “O ponto omisso da decisão, sobre o qual não foram opostos embargos declaratórios, não pode ser objeto de recurso extraordinário, por faltar o requisito do prequestionamento.”

Nos termos da interpretação do STF, bastaria a oposição de embargos de declaração para que a matéria omissa no acórdão fosse considerada prequestionada.

Já para o STJ, o prequestionamento não derivaria pura e simplesmente da oposição dos declaratórios. Se a omissão persistisse, para que fosse cabível o recurso especial, a parte recorrente teria que fundamentar sua irresignação na violação ao dispositivo legal do CPC/1973 que estabelecia sobre o cabimento dos embargos de declaração.

Essa é a conclusão a que se chega a partir da análise dos julgados que deram origem ao enunciado n. 211 da súmula do STJ, a saber:

“A rejeição destes embargos, se impertinente, determina a subsistência da falta de prequestionamento do tema cujo conhecimento se pretende devolver ao STJ, cumprindo ao recorrente, em se julgando prejudicado, interpor recurso especial calcado em violação aos termos do artigo 535, inciso II do CPC, porquanto a decisão dos embargos não teria suprido a omissão apontada” (Ag Reg. No Ag. de Inst. n. 67.820-SP, Rel. Ministro Demócrito Reinaldo, DJ 25.09.1995).

“Não versada a matéria no julgado recorrido, inadmissível pretender-se tenha havido vulneração da lei. Se, apreciando embargos declaratórios, deixou-se de decidir questão que o deveria ter sido, poderá ter havido contrariedade da lei processual (CPC, art. 535), mas não se há de ter como suprida a exigência do prequestionamento” (Ag Reg. No Ag. de Inst. n. 74.405-PA, Rel. Ministro Eduardo Ribeiro, DJ 03.06.1996).

“Os padrões legais apontados como contrariados, para reexame, não prescindem de prequestionamento. A omissão deve ser suprida pela interposição de embargos declaratórios. Caso insatisfatório a sua apreciação, como condição para o conhecimento do Recurso Especial, impõe-se a alegação de violação ao art. 535, I e II” (Ag Reg. No Ag. de Inst. n. 123.760-SP, Rel. Ministro Milton Luiz Pereira, DJ 24.03.1997).

Esses são excertos de três dos vários julgados que antecederam a edição do enunciado de súmula em questão pelo STJ e dão a exata dimensão do que o motivou: entendia-se que a questão federal a ser definida no âmbito do recurso especial não era aquela que havia sido omitida no julgamento da instância inferior e, sim, a violação aos dispositivos legais que previam o cabimento dos embargos de declaração.

O fato é que o entendimento que prevaleceu então tinha um claro fundo de jurisprudência defensiva[1]. Impunha-se à parte recorrente que, diante da omissão do tribunal a quo, opusesse embargos de declaração, com finalidade de prequestionar a matéria omissa. Havendo insucesso nos embargos, para que o seu recurso especial pudesse passar pelo juízo de admissibilidade, impunha-se à parte recorrente mais um fardo, a alegação de violação ao CPC/1973, art. 535. Para segundo plano ficava a matéria mais importante, aquela sobre a qual não houvera pronunciamento pelo tribunal a quo, mesmo após a oposição dos declaratórios.

Em combate à jurisprudência defensiva dos tribunais superiores, o CPC/2015 estabeleceu uma série de disposições contrafáticas, deixando clara a necessidade de superação dos entendimentos jurisprudenciais que implicassem em estabelecimento de filtros recursais não previstos em lei.

Uma dessas disposições foi justamente a constante do CPC/2015, art. 1025, que previu o prequestionamento ficto para aqueles casos em que os embargos de declaração sejam mal sucedidos.

Se a finalidade era a manutenção da sistemática anterior, não haveria qualquer necessidade de que o CPC/2015 estabelecesse disposição dessa natureza.

A letra do art. 1025 é uma resposta ao enunciado n. 211 da súmula do STJ e uma resposta de natureza negativa, uma revogação do entendimento.

Quando o tribunal a quo se omite e são opostos embargos de declaração mal sucedidos, na sistemática do CPC/2015, “a violação é direta à questão federal omitida, na verdade não julgada ou esclarecida, não à hipótese de cabimento dos embargos de declaração”[2].

Não faz sentido que, nessa nova sistemática, levando em conta que a própria lei considera incluídos no acórdão recorrido os elementos que o embargante suscitou nos declaratórios, tenha o recorrente que alegar violação às hipóteses de cabimento dos embargos de declaração para que a matéria seja considerada prequestionada.

Essa era a ratio da sistemática que se construiu a partir da interpretação das disposições do código revogado, que não possuía um dispositivo semelhante ao art. 1025 do CPC/2015.

Não cabe que, havendo tão drástica mudança legislativa, o STJ continue a lançar mão da antiga ratio para manter a essência da sua jurisprudência defensiva sobre o tema.

Nessa linha é também o entendimento de Nelson Nery Jr. e Rosa Maria de Andrade Nery, para quem:

“O comando do CPC 1025 é direcionado ao tribunal superior, que deverá aplicá-lo quando verificar que o tribunal local desatendeu o disposto no CPC 1022. Exigir-se que o recorrente também aponte ofensa ao CPC 1022 (…) parece prática de voltar-se ao sistema da jurisprudência defensiva, que a ideologia, a filosofia e o sistema do CPC 2015 procuraram abolir.”[3]

O enunciado n. 211 da súmula do STJ merece ser cancelado, assim também a ratio decidendi extraída dos julgados que lhe deram embasamento deve ser considerada superada. Ela não mais se coaduna com o atual sistema legislado.

E não pode o tribunal responsável pela interpretação do CPC/2015 rebelar-se contra o texto legal e manter um entendimento contra o qual o próprio legislador se insurgiu na nova lei.

Parafraseando e distorcendo Lampedusa, as coisas precisam mudar para que mudem de fato e não para que permaneçam como estão.

 

Referências

ASSIS, Araken de. Manual dos recursos, 9ª ed. rev. atual e ampl. São Paulo: RT, 2017.

NERY JR., Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código de Processo Civil Comentado. 18ª ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: RT, 2019

[1] Em sentido contrário, Araken de Assis: “A bem da verdade, a conclusão extraída do verbete n. 211 se mostrava incensurável, no direito anterior, porque a subsistência da omissão vulnerava, de um lado, a hipótese de cabimento dos embargos de declaração, e de outro não se pode considerar, justamente por força da omissão, ‘decidida’ a questão federal” (ASSIS, Araken de. Manual dos recursos, 9ª ed. rev. atual e ampl. São Paulo: RT, 2017, p. 927).

[2] ASSIS, Araken de. Manual dos recursos, 9ª ed. rev. atual e ampl. São Paulo: RT, 2017, p. 927.

[3] NERY JR., Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código de Processo Civil Comentado. 18ª ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: RT, 2019, p. 2286.

Acompanhe a coluna Obsesrvatório Processual do STJ no Contraditor.com

QUAIS “PRECEDENTES” MERECEM CONSIDERAÇÃO NA DECISÃO?

No julgamento do REsp 1.698.774, a 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, em acórdão relatado pela ministra Nancy Andrighy, entendeu que a regra do CPC/2015, art. 489, § 1º, VI, que impõe o dever de fazer a distinção ou demonstrar a superação do entendimento quando o juiz deixar de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte “somente se aplica às súmulas ou precedentes vinculantes, mas não às súmulas e aos precedentes apenas persuasivos, como, por exemplo, os acórdãos proferidos por Tribunais de 2º grau distintos daquele a que o julgador está vinculado”.

Já se asseverou em outra sede:

O entendimento é equivocado por duas razões. Em primeiro lugar, é necessário pontuar que este dispositivo legal especifica no âmbito da lei infraconstitucional o direito fundamental à decisão fundamentada, que é previsto na CF/1988, art. 93, IX e que está intimamente ligado à garantia fundamental do devido processo legal (CF/1988, art. 5º, LIV). A interpretação dada pela 3ª Turma do STJ no caso foi no sentido de restringir a incidência dessas normas fundamentais no caso concreto, o que se configura um equívoco, pois a interpretação de direitos e garantias fundamentais sempre deve ser no sentido de potencializá-los, ampliando-os e não restringindo sua incidência.

 

Em segundo lugar, vale destacar que o dispositivo legal aqui comentado faz referência à necessidade de que o juiz apresente os motivos da distinção ou da superação do entendimento que esteja insculpido em enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte, não fazendo referência aos provimentos vinculantes apenas. O equívoco da decisão acima referida decorre da não realização de uma interpretação sistemática das normas do CPC/2015 sobre o assunto. Se há uma preocupação do legislador com a uniformização e com a estabilidade da jurisprudência dos tribunais (CPC/2015, art. 926), se houve o estabelecimento de uma série de mecanismos para a construção de provimentos vinculantes, o que se quis foi buscar a promoção da igualdade perante as decisões judiciais e da segurança jurídica. Logo, quando uma parte invoca como paradigma uma decisão (precedente), um conjunto de decisões (jurisprudência) ou um enunciado de súmula (resumo da jurisprudência), é porque ela busca a aplicação daquele paradigma ao seu caso concreto. Então, se o juiz do caso entende que aquele paradigma não se aplica, seja ele vinculante ou persuasivo, deve demonstrar isso na sua fundamentação, seja por meio da técnica da distinção, seja por meio da revelação de que aquele paradigma já foi superado.[1]

E são justamente essas duas razões que serão melhor desenvolvidas no texto desta semana.

Na lição de Barbosa Moreira, o Estado de Direito é caracterizado como “Estado que se justifica”, que demonstra as razões pelas quais promoverá a intromissão na vida dos cidadãos, que “é materialmente justificada, quando para ela existe fundamento; é formalmente justificada, quando se expõe, se declara, se demonstra o fundamento”[2].

Um dos fatores que garantem a legitimidade democrática no exercício do poder jurisdicional é justamente a exigência de fundamentação das decisões, que serve de freio para o autoritarismo, já que impõe a apresentação de uma justificativa racional e adequada ao ordenamento jurídico para a decisão do caso concreto.

Como se vê, o ato de fundamentar uma decisão está intimamente ligado aos pilares de sustentação de um Estado Democrático de Direito. E nisso não há qualquer novidade. Mas é preciso tornar o discurso realidade. No campo dos fatos é que se pode aferir a dimensão da importância que a Jurisdição confere à exigência de fundamentação das decisões.

Fazendo parte do catálogo dos direitos fundamentais e atrelado diretamente à garantia do devido processo legal, o direito à fundamentação das decisões judiciais não admite interpretação restritiva.

Não cabe ao Superior Tribunal de Justiça, a pretexto de interpretar regra estabelecida pelo Código de Processo Civil, olvidar-se da fonte constitucional de onde brota a regra especificada no texto infraconstitucional.

Ao interpretar as disposições do CPC/2015, art. 489, § 1º, o STJ não está tratando de pura e simples norma infraconstitucional. Ali há direito/garantia fundamental em lapidação.

Em sendo assim, cabe interpretação baseada no “cânone hermenêutico-constitucional da máxima efetividade”, que “orienta os aplicadores da lei maior para que interpretem as suas normas em ordem a otimizar-lhes a eficácia, mas sem alterar o seu conteúdo”.[3]

Esse cânone “veicula um apelo aos realizadores da constituição para que em toda situação hermenêutica, sobretudo em sede de direitos fundamentais, procurem densificar tais direitos, cujas normas, naturalmente abertas, são predispostas a interpretações expansivas”[4].

O ato interpretativo do STJ na decisão objeto de análise neste texto, entretanto, operou no modo restritivo do direito/garantia fundamental.

Disciplina o texto legal que é nula a decisão que “deixar de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte, sem demonstrar a existência de distinção no caso em julgamento ou a superação do entendimento” (CPC/2015, art. 489, § 1º, VI).

E, como se sabe, as partes podem invocar, como argumentos em suas petições, enunciados de súmula vinculante ou não, entendimentos jurisprudenciais de quaisquer tribunais ou mesmo precedentes oriundos de qualquer órgão jurisdicional.

O que caracteriza um precedente não é o fato de estar previsto na lei como vinculante e, sim, a qualidade da decisão judicial em que ele foi estabelecido. Então, a rigor, qualquer decisão, de primeira instância, de tribunal local, regional ou superior poderá ser considerada um precedente se contiver os predicados de qualidade necessários para ser usada como paradigmática.

E isso, inclusive, é saudável, pois permite que a construção do direito seja não somente operada pelos tribunais superiores, mas também por todo e qualquer magistrado que logre êxito em produzir decisões tão qualificadas que sejam consideradas paradigmas.

Os argumentos baseados em precedentes, em jurisprudência de outros tribunais ou em enunciados de súmula de natureza persuasiva, por fazerem parte do fenômeno jurídico, merecem resposta do julgador e, a rigor, nem mesmo haveria a necessidade dessa previsão específica do CPC/2015, art. 489, § 1º, VI, pois o inciso IV já impõe manifestação sobre “todos os argumentos deduzidos no processo capazes de, em tese, infirmar a conclusão adotada pelo julgador”.

Apesar dessa desnecessidade, e talvez antevendo as resistências ao dever de fundamentação analítica, o legislador foi insistente e cuidou de especificá-lo ainda mais. Isso dá a dimensão da importância que o legislador infraconstitucional atribuiu à regra da fundamentação das decisões judiciais no CPC.

Compreendeu bem a Constituição, o legislador. Talvez essa compreensão ainda não tenha sido alcançada pelo STJ. É preciso evoluir, então.

Quando o inciso VI faz menção a enunciado de súmula, a jurisprudência e a precedente, ele não indica qualquer teor restritivo. Isso significa então que, seja vinculante ou não, esteja previsto no rol do CPC/2015, art. 927 ou não, se houve invocação do provimento jurisdicional como argumento da parte e sendo ele pertinente ao caso, há dever de sobre ele manifestar-se o julgador, seguindo o paradigma invocado ou demonstrando a distinção ou a superação.

O STJ foi na contramão dessa ideia e asseverou que a regra do inciso VI “somente se aplica às súmulas ou precedentes vinculantes, mas não às súmulas e aos precedentes apenas persuasivos, como, por exemplo, os acórdãos proferidos por Tribunais de 2º grau distintos daquele a que o julgador está vinculado”.

E no próprio exemplo usado pelo tribunal verifica-se um contrassenso gritante.

No caso concreto julgado pelo STJ, a ministra relatora asseverou que o TJ/RS, de onde partiu o acórdão recorrido, não estava obrigado a manifestar-se sobre os julgados do TJ/SP e do TJ/DF que foram invocados pela parte nas suas razões de recurso. E isso é bastante curioso justamente porque uma das hipóteses de cabimento do recurso especial para o STJ é a existência de entendimentos conflitantes entre tribunais diferentes.

A CF/1988, art. 105, III, c estabelece que cabe recurso especial quando a decisão recorrida “der a lei federal interpretação divergente da que lhe haja atribuído outro tribunal”. Ora, a hipótese de cabimento aqui referida não faz menção a interpretação divergente estabelecida em “precedente vinculante”. E nem poderia, já que o modelo constitucional de processo não opera com essa categoria.

Um dos fundamentos de cabimento do REsp 1.698.774, inclusive, foi a alínea c do art. 105, III/CF. Ou seja, a parte recorrente justamente buscou no STJ demonstrar que a decisão recorrida estava em dissonância com interpretação dada à lei federal por outros tribunais.

Mas o contrassenso é ainda maior. Para o recebimento do recurso especial exige-se prequestionamento do tema. Diante disso, imagine o leitor que a parte se depara com acórdão de Tribunal de Justiça que não enfrenta julgados de outros tribunais de mesma estatura em sentido contrário ao seu entendimento. Seu primeiro impulso é o de invocar omissão e nulidade do julgado, até mesmo porque para o recebimento de seu recurso na instância superior há a necessidade de que a questão tenha sido apreciada.

Ou seja, para além da exigência mesma da fundamentação analítica, no caso concreto, havia a exigência de provocação de manifestação para que se perfizesse a hipótese de cabimento do recurso de natureza extraordinária.

E, por fim, cabe destacar que essa resistência específica do STJ de dar a extensão devida ao direito/garantia da fundamentação analítica das decisões judiciais é fruto de uma não compreensão do sistema decisório brasileiro e da construção dos significados no direito.

Ao entender que apenas os “provimentos vinculantes” é que merecem ser apreciados nas decisões judiciais, o STJ impõe uma compreensão autoritária do sistema, como se só tivessem importância e merecessem consideração as decisões produzidas pelos tribunais superiores e alguns outros determinados provimentos dos tribunais locais e regionais.

Isso implica em desprestígio do serviço jurisdicional como um todo, pois embora se considerem importantes os provimentos listados no CPC/2015, art. 927, porque, em essência, referem-se a questões repetitivas, não encerram eles a dimensão da construção jurisprudencial brasileira.

Se o CPC/2015, art. 926 exige que os tribunais atuem no sentido de preservar e promover coerência e integridade no direito, não estão eles autorizados a ignorar entendimentos jurisprudenciais ou precedentes produzidos por outros órgãos jurisdicionais, sob pena de se considerar apenas o aspecto interno do conceito de coerência nas decisões judiciais e olvidar-se o seu aspecto externo.

 

Referências

BARBOSA MOREIRA, José Carlos. A motivação das decisões judiciais como garantia inerente ao Estado de Direito. In: BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Temas de direito processual (segunda série). São Paulo: Saraiva, 1980.

COELHO, Inocêncio Mártires. Métodos – Princípios de interpretação constitucional. Revista De Direito Administrativo, 230, p. 163-186, out-dez 2002. Disponível em: http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rda/article/view/46340. Acessado em 07/08/2021.

HELLMAN, Renê. Comentários ao Código de Processo Civil – SuperCPC/JuruáDocs, art. 489. Disponível em: www.juruadocs.com/legislacao/art/lei_00131052015-489. Acesso em: 07/08/2021.

[1] HELLMAN, Renê. Comentários ao Código de Processo Civil – SuperCPC/JuruáDocs, art. 489. Disponível em: www.juruadocs.com/legislacao/art/lei_00131052015-489. Acesso em: 07/08/2021.

[2] BARBOSA MOREIRA, José Carlos. A motivação das decisões judiciais como garantia inerente ao Estado de Direito. In: BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Temas de direito processual (segunda série). São Paulo: Saraiva, 1980, p. 89.

[3] COELHO, Inocêncio Mártires. Métodos – Princípios de interpretação constitucional. Revista De Direito Administrativo, 230, p. 163-186, out-dez 2002. Disponível em: http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rda/article/view/46340. Acessado em 07/08/2021, p. 183.

[4] COELHO, Inocêncio Mártires. Métodos – Princípios de interpretação constitucional. Revista De Direito Administrativo, 230, p. 163-186, out-dez 2002. Disponível em: http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rda/article/view/46340. Acessado em 07/08/2021, p. 183.

COMO (NÃO) JULGAR UM CASO REPETITIVO

Pleno do STJ

Ao final do ano de 2018, a Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça concluiu o julgamento do Recurso Especial n. 1.704.520-MT, afetado pela sistemática dos recursos repetitivos (Tema 988), em que se discutiu se a previsão do art. 1.015 do Código de Processo Civil comportava interpretação extensiva, analógica ou exemplificativa.

O recurso foi relatado pela ministra Nancy Andrighy e, por maioria, nos termos do voto da relatora, reconheceu-se que: “O rol do art. 1.015 do CPC é de taxatividade mitigada, por isso admite a interposição de agravo de instrumento quando verificada a urgência decorrente da inutilidade do julgamento da questão no recurso de apelação”.

O tema despertou acaloradas discussões na doutrina, entretanto, a pretensão neste texto não é a de colocar em xeque a duvidosa tese que prevaleceu no julgamento (o que já se fez em outra sede[1]) e, sim, analisar de que maneira se deu a construção do voto condutor do julgamento.

No texto de estreia desta coluna já se alertava para a impossibilidade de se imaginar o STJ como um tribunal fabricante de teses. Isso porque, pela previsão constitucional (art. 105, III), a competência do tribunal é para o julgamento de causas. A tese será uma consequência do julgamento da causa.

Entretanto, vendeu-se com êxito a ideia de que os tribunais superiores são construtores naturais de precedentes e a isso aliou-se a simplória percepção de que um precedente é traduzido em uma tese.

Acostumados a encapsular teses em enunciados curtos de súmula, os tribunais superiores passaram a combinar essas ideias e a fabricar ementas que traduzam suas teses em poucas linhas, de modo a facilitar a aplicação destas por outros órgãos jurisdicionais, assumindo um papel de “cúpulas plenipotenciárias que usurpam o processo à uma função subserviente à jurisdicionalidade (…), que passa a organizar e definir ao arrepio de qualquer marco legislativo a interpretação do que ‘é’ e ‘será’ o conceito de Direito e tudo o mais que o circunda, proclamando-o através, única e exclusivamente, dos seus precedentes vinculantes elaborados verticalmente”[2].

Nessa lógica, a regra universalizável do “precedente” é aquela que cabe na cápsula de poucas linhas que traduz a tese.

E como a tese é construída?

No caso que se busca analisar, a construção da tese precedeu a análise do caso. E aqui já se adianta a conclusão do texto: a tese foi feita sem caso. É como se houvesse a construção de um edifício sem o estabelecimento de uma base concreta que lhe desse sustentação.

E nesse ponto fica claro que não se pode chamar uma decisão assim de precedente. Isso porque o precedente tal como se dá no Common Law exige um olhar para o passado. A decisão é construída para a solução do conflito, esse é o seu destino imediato e mais importante. Cabe ao tribunal olhar para o passado e dar uma resposta jurídica àquele caso, sem pretensões imediatas de estabelecer ali uma baliza para casos futuros.

Posteriormente, diante de um novo caso, o julgador, conhecedor da história institucional e da ordem jurídica, mais uma vez volta ao passado e encontra lá uma decisão da qual pode ser extraída uma regra geral universalizável e, com base nesse precedente, dá a resposta ao caso que se põe presentemente para sua apreciação. Com isso, garante a coerência da construção jurídica.

E a ratio do precedente é também construída de forma paulatina, a partir da interpretação que se dá nos julgados que o usam como paradigma[3], isso porque, “precedente é um julgamento que ocasiona um ganho hermenêutico e que é tomado como referência individual em casos posteriores”[4].

Já no sistema de Civil Law o olhar é para o futuro. O legislador, quando da produção do texto legal, tem por objetivo regular condutas que ainda não aconteceram e supõe que aquele texto que está sendo construído será devidamente interpretado para dar respostas a essas condutas futuras.

Nesse contexto, o intérprete do direito partirá do texto legal e buscará resolver os conflitos que se lhes apresentam os atores sociais e deve analisar o caso com os seus olhos a ele voltados, ou seja, ao passado. Embora, por uma imposição de cautela, deva reconhecer que as suas decisões poderão impactar casos futuros, não deve já decidir prospectando a força da sua decisão para além do caso concreto. Não cabe ao julgador ambicionar resolver casos futuros.

Isso em um mundo ideal.

Na realidade dura de um Judiciário assoberbado de processos, o desejo de limpar os escaninhos e diminuir a quantidade de feitos sobrepõe-se e, aliado a uma compreensão equivocada do papel do juiz e do conceito de processo, gera uma incompreensão do que seja um precedente.

Quando atualmente no Brasil se fala em precedente, quase sempre se está a tratar de uma decisão que já nasce vinculante, a despeito de sua qualidade, com propósito de resolver casos futuros, de evitar que aquela questão volte ao Poder Judiciário. A sistemática dos provimentos vinculantes parece vocacionada a possibilitar que as teses formuladas pelos tribunais superiores petrifiquem-se e sejam usadas como carimbos que resolvem conflitos múltiplos. Essa compreensão “parte da inocente concepção de que o Poder Judiciário – ao reduplicar as leis mediante a projeção de um agrupamento enunciativo paralelo a elas – é capaz de perpetuar seus entendimentos por meio de textos melhores ou mais perfeitos que os do Poder Legislativo”[5].

E nesse contexto, diferentemente do olhar do julgador no Common Law, aqui o olhar continua voltado ao futuro, como se o juiz-intérprete-construtor-de-teses tivesse o mesmo papel do legislador, de imaginar conflitos futuros e buscar desde já regulá-los.

As teses dos tribunais superiores, desse modo, assemelham-se aos textos legais. E mais grave do que isso é a falta de percepção de que, fixadas as teses, não haverá necessidade de interpretação.

O precedente é essencialmente fruto da interpretação. A análise de uma decisão judicial pretérita à luz do caso concreto de agora para retirar dela uma regra geral universalizável é um complexo processo de interpretação e, no precedente, a tese não vem encapsulada em uma ementa ou num enunciado de súmula. Ao contrário, a regra que dele se extrai baila livremente aos olhos do intérprete que recaem sobre o texto da decisão paradigmática.

Por isso a dificuldade de interpretação. A decisão do precedente não foi construída para casos futuros e, sim, para aquele caso passado. Resolveu-o bem, tão bem que, no presente, foi encontrada e serviu de paradigma após um complexo processo interpretativo para a descoberta da regra universalizável.

Nada disso ocorre quando a decisão é feita para frente, com olhos ambiciosos voltados para situações fáticas que ainda nem ocorreram.

No caso do voto da ministra relatora quando do julgamento do REsp n. 1.704.520-MT, superadas as questões preliminares de natureza procedimental, fez-se um levantamento histórico da recorribilidade das decisões interlocutórias no processo civil brasileiro.

Em seguida, apresentou-se a divergência doutrinária jurisprudencial a respeito da natureza do rol do art. 1.015/CPC. Estabelecidas essas premissas, a relatora passou a examinar a natureza jurídica do rol do art. 1.015/CPC, interpretando as normas constitucionais e as normas infraconstitucionais que regem fundamentalmente o direito processual.

No tópico seguinte, construiu-se a argumentação específica da tese vencedora, no sentido de que o rol do art. 1.015/CPC é taxativo, mas encontra mitigação no conceito de urgência, quando a questão decidida na interlocutória dever ser apreciada pelo tribunal de segunda instância imediatamente. Aqui também a relatora enfrentou o que chama de “potenciais problemas decorrentes dessa conclusão” e buscou dar a eles respostas solucionadoras, inclusive a partir da modulação dos efeitos da decisão, no sentido de que a tese seja aplicada apenas às decisões interlocutórias proferidas após a publicação do acórdão.

Por fim, no item 6 do voto, analisou-se o caso concreto que deu origem ao recurso especial afetado para ser julgado pela sistemática dos repetitivos e, em quatro parágrafos, já nas 57ª e 58ª páginas do voto, deu-se provimento ao recurso, reconhecendo-se o cabimento de agravo de instrumento para discussão sobre a incompetência do juízo.

A estruturação do voto é peça-chave para se compreender de que maneira os tribunais superiores podem (ab)usar do poder a eles conferidos.

Se a norma constitucional atribui competência ao STJ para o julgamento de causas, o ponto de partida do acórdão deve ser a causa, o caso concreto e não o contrário. Partir do caso concreto impõe limites à atividade jurisdicional, limites que não se veem quando o objetivo maior é a construção de uma tese. A tese é vista em si mesma, como sendo ela a finalidade da jurisdição. Não é.

Quando muito, a tese é uma consequência da interpretação da decisão que é construída para o caso concreto. E nem sempre haverá tese, pois nem sempre o caso dará ensejo a uma discussão aprofundada que possa gerar uma resposta jurisdicional paradigmática. Mas mesmo nessas situações o caso é importante e reclama uma resposta específica e bem construída.

Esse é o papel da jurisdição: encontrar a norma para resolver aquele conflito nos estreitos limites daquele caso. Se, por alguma razão, aquela questão jurídica repete-se em milhares de outros casos, trata-se de fato importante a reclamar reflexão pelo Poder Judiciário, inclusive no bojo de procedimentos destinados a coletivizar o julgamento de casos individuais, mas ainda aqui o que motiva o movimento do Judiciário são os casos.

No REsp n. 1.704.520-MT o caso foi apenas um coadjuvante. A tese protagonizou a cena decisória, a pretexto de se construir um “precedente” que orientasse casos futuros e resolvesse pragmaticamente um problema criado pelo texto legal que não contou com a aprovação da doutrina e da jurisprudência.

Na ribalta a tese, na coxia o caso. O avesso.

[1] “Na realidade, o tribunal, ao fixar a tese da taxatividade mitigada, promoveu a repristinação do sistema de recorribilidade das interlocutórias por agravo de instrumento que vigia quando do CPC/1973. A legislação revogada previa que «das decisões interlocutórias caberá agravo, no prazo de 10 (dez) dias, na forma retida, salvo quando se tratar de decisão suscetível de causar à parte lesão grave e de difícil reparação, bem como nos casos de inadmissão da apelação e nos relativos aos efeitos em que a apelação é recebida, quando será admitida a sua interposição por instrumento» (CPC/1973, art. 522). Ou seja, o que definia o cabimento do agravo de instrumento eram os requisitos ensejadores da urgência que, pela decisão do STJ, passaram a definir o cabimento do recurso na vigência do CPC/2015.” (HELLMAN, Renê. Comentários ao Código de Processo Civil – SuperCPC/JuruáDocs, art. 1015 Disponível em: www.juruadocs.com/legislacao/art/lei_00131052015-1015. Acesso em: 04/08/2021).

[2] ROSSI, Julio Cesar. A interpretação do direito é monopólio das Cortes Supremas?. Disponível em: https://emporiododireito.com.br/leitura/60-a-interpretacao-do-direito-e-monopolio-das-cortes-supremas. Acessado em 04/08/2021.

[3] “Tudo isso demonstra que a Corte subsequente, para aplicar um precedente, necessita definir o que realmente a obriga, vale dizer, precisa ter delineada a ratio decidendi do caso já resolvido. Para tanto, deve atentar não só para a linguagem do precedente, para a questão de direito discutida e para os fatos que nele estiveram presentes, mas também para os julgados anteriores e, principalmente, posteriores ao precedente, que possam explicar o significado de declarações contidas no precedente sob interpretação” (MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios. 3ª ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013, p. 246-247).

[4] LOPES FILHO, Juraci Mourão. Os precedentes judiciais no constitucionalismo brasileiro contemporâneo. Salvador: JusPodivm, 2014, p. 127.

[5] COSTA, Eduardo José da Fonseca. Os tribunais superiores são órgãos transcendentais?. In: ____. Processo e Garantia, vol. I. Londrina: Editora Thoth, 2021, p. 22.

Referências

COSTA, Eduardo José da Fonseca. Os tribunais superiores são órgãos transcendentais?. In: ____. Processo e Garantia, vol. I. Londrina: Editora Thoth, 2021.

HELLMAN, Renê. Comentários ao Código de Processo Civil – SuperCPC/JuruáDocs, art. 1015. Disponível em: www.juruadocs.com/legislacao/art/lei_00131052015-1015. Acesso em: 04/08/2021.

LOPES FILHO, Juraci Mourão. Os precedentes judiciais no constitucionalismo brasileiro contemporâneo. Salvador: JusPodivm, 2014.

MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios. 3ª ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013.

ROSSI, Julio Cesar. A interpretação do direito é monopólio das Cortes Supremas?. Disponível em: https://emporiododireito.com.br/leitura/60-a-interpretacao-do-direito-e-monopolio-das-cortes-supremas. Acessado em 04/08/2021.

OBSERVAR O SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA: POR QUÊ?

Fachada do Superior Tribunal de Justiça

A chegada de um novo portal destinado à divulgação de textos jurídicos e à promoção do debate franco de ideias é motivo de júbilo. Sob essa forte marca de abertura ao diálogo, o Contraditor estreia em grande estilo com um time de colunistas dispostos a oferecer reflexões importantes sobre o direito.

Dentre as várias colunas desse portal, o “Observatório Processual do STJ” terá a missão de provocar discussões sobre o papel do Superior Tribunal de Justiça na estrutura do Poder Judiciário brasileiro, dando especial enfoque aos impactos das decisões do tribunal no direito processual civil.

A coluna nasceu a partir de um grupo de pesquisa de mesmo nome coordenado por mim no curso de Direito da Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG), que conta com a participação de professores do Departamento de Direito Processual, assim como de estudantes da graduação e da pós-graduação, advogados e egressos do curso.

Trata-se de um grupo múltiplo que há quase dois anos vem promovendo debates e produzindo textos sobre as decisões do STJ no âmbito do processo civil.

E por que observar o STJ?

O CPC/2015 reforçou o poder dos tribunais superiores, concedendo-lhes a possibilidade de produzir decisões vinculantes, notadamente, no art. 927, ao prever o dever de observância dos acórdãos proferidos no julgamento dos recursos repetitivos, assim como dos enunciados de súmula, ainda que não sejam os vinculantes.

A iniciativa legislativa não passa incólume às justas críticas da doutrina, pois não se pode cogitar de efeito vinculante de provimentos judiciais fora daquelas hipóteses em que a própria Constituição disso tratou.

Mas, apesar das críticas, parece ter-se formado no senso comum daqueles que operacionalizam o sistema jurídico a ideia de que os provimentos listados no art. 927 do CPC têm efeito vinculante. E dificilmente os tribunais superiores vão dizer o contrário, pois isso implicaria em diminuição dos seus próprios poderes.

E desse caldo cultural é que exsurge a necessidade de acompanhar o desenvolvimento da jurisprudência e a atuação do STJ na interpretação da lei processual. Quanto mais poder um órgão jurisdicional adquire ou conquista, maior é o dever da comunidade jurídica de fiscalizar o exercício desse poder, de modo que a instituição seja constrangida e que as suas decisões sejam estudadas e, sempre que for necessário, criticadas.

Há que se questionar se ao STJ é dado o poder de firmar teses sobre o direito infraconstitucional. A Constituição Federal, em seu art. 105, disciplina sobre a competência do tribunal e esta pode ser dividida de três formas: competência originária (inc. I), competência recursal ordinária (inc. II) e competência recursal extraordinária (inc. III).

A discussão sobre o poder de firmar teses é baseada no terceiro tipo de competência, a recursal extraordinária, quando a Constituição disciplina sobre o recurso especial e suas hipóteses de cabimento.

Cabe ao STJ, nos termos da letra constitucional, em recurso especial, julgar determinadas causas. Ao estabelecer dessa forma, o legislador constitucional impôs ao tribunal um limite bastante preciso: a construção da decisão, em sede de recurso de natureza extraordinária, deve partir da análise do caso concreto e serve para resolver aquele caso concreto específico.

Embora se possa intuir que pela sua posição na estrutura do Poder Judiciário o STJ, ao julgar um caso, estabelecerá balizas para outros julgamentos por outros órgãos jurisdicionais, não se pode olvidar que a sua função primeira é a de julgar a causa e não construir uma tese.

A tese é consequência do julgamento da causa. Tese sem causa é puro exercício arbitrário do poder jurisdicional, pois a razão de ser do Poder Judiciário é a entrega da prestação jurisdicional para as partes envolvidas naquele caso que lhe foi levado à apreciação. E essa temática será melhor aprofundada no próximo texto dessa coluna.

O fato é que a autoridade de uma decisão do STJ não deveria decorrer de uma previsão legal que a estabelecesse como vinculante e, sim, da qualidade que dela emanasse.

À medida em que o tribunal constrói democraticamente a decisão, levando em consideração as particularidades da causa e o trabalho desenvolvido pelas partes e magistrados até a fase do recurso especial e, como decorrência disso, fundamenta analiticamente o seu julgado, dando ao caso uma solução adequada, a sua decisão adquire respeitabilidade e torna-se naturalmente um paradigma a ser seguido.

Aliado a isso, a força paradigmática das decisões do STJ há de decorrer da observância da coerência e da integridade da sua própria jurisprudência. Nesse sentido, as viradas jurisprudenciais prejudicam sobremaneira a autoridade das decisões do tribunal.

Cai em descrédito o tribunal quando ele próprio não garante a institucionalidade, ou seja, quando ele estimula, pelo exemplo, a tomada de decisões conforme a consciência que, invariavelmente, implicam em desobediência à própria lei.

Se é do STJ a função de dar a última palavra sobre a interpretação da lei infraconstitucional, o primeiro limite que ele deve compreender é o da legalidade.

Se é do interesse do STJ que as suas decisões sejam consideradas como paradigmas, deve o tribunal institucionalizar a autocontenção na interpretação do texto legal, reconhecendo que não pode atribuir a ele sentidos de forma livre. O texto da lei não está a serviço do tribunal e, sim, o tribunal é o servo da lei, é limitado por ela.

E é a partir desse ponto de vista que neste espaço de debate se buscará observar os movimentos do STJ na interpretação das normas processuais civis e os impactos disso no direito.

Sejam todos bem-vindos ao Contraditor e ao Observatório Processual do STJ!

101. INTIME-SE A PARTE A CONCILIAR, SOB PENA DE MULTA

O Código de Processo Civil de 2015, a pretexto de promover a chamada “justiça multiportas” tratou em seu art. 3º, acertadamente, sobre outros meios de solução de litígios que não o da via jurisdicional: arbitragem (§ 1º) e autocomposição, dando a esta especial atenção ao prever obrigação do Estado de promover, quando possível, a solução consensual dos conflitos (§ 2º) e dos profissionais do Direito (juízes, advogados, defensores públicos e membros do Ministério Público) de estimular a autocomposição, dentro e fora do processo (§ 3º).

As decorrências dessas previsões são múltiplas: 1) a arbitragem não é incompatível com a inafastabilidade da jurisdição, pois decorre da autonomia da vontade das partes; 2) os entes federados estatais (União, Estados, Distrito Federal e Municípios) devem buscar a via autocompositiva para a resolução dos seus conflitos sempre que isso for possível em termos jurídicos; 3) advogados, defensores públicos e membros do Ministério Público têm o dever de buscar a solução consensual dos conflitos em que estiverem atuando, quando houver possibilidade jurídica disso, inclusive têm o dever de apresentar aos seus clientes (quando for o caso) as possibilidades autocompositivas antes da propositura de demandas judiciais; 4) uma vez levado o conflito ao Judiciário, advogados, defensores públicos e membros do Ministério Público têm o dever de estimular a solução consensual quando houver sua possibilidade jurídica; 5) é dever do juiz, uma vez provocado para o exercício da jurisdição, verificando a possibilidade jurídica da autocomposição, em respeito à autonomia da vontade das partes, estimulá-la; 6) e até se poderia cogitar de um dever do Judiciário (instituição) promover medidas de conscientização sobre os benefícios da autocomposição, dentro ou fora do processo, sempre respeitando a autonomia da vontade das partes.

É evidente que a preocupação do legislador ao produzir o texto do CPC/2015, em grande medida, foi com o que se convencionou chamar de “cultura da litigiosidade”.

Segundo o último relatório Justiça em Números, publicado pelo Conselho Nacional de Justiça em 2020, com relação ao ano de 2019, havia quase 80 milhões de processos em trâmite no Poder Judiciário brasileiro[1]. Esses números estratosféricos criam uma série de dificuldades para a gestão do Poder Judiciário e para a adequada prestação de seus serviços.

Por esse motivo, muitas medidas legislativas foram pensadas para frear essa cultura e diminuir a quantidade de processos judiciais em trâmite no Brasil.

O fato, entretanto, é que os conflitos não surgem por causa da lei processual, de modo que a mudança desta para frear o crescimento do número de litígios é uma crença pueril assemelhada àquela de que alterar a técnica cirúrgica evitaria o entupimento das coronárias da pessoa que se alimenta mal e não faz exercícios físicos. O mal está na gordura da picanha. Trocar o fio da sutura não resolverá o problema.

Se o conflito surge na sociedade, é necessário ir até lá investigar as razões do seu surgimento. É preciso ir ao direito material verificar se ali há falhas no regramento da vida social. Se há uma cultura social de litígio, é preciso verificar o seu nascedouro e estancar a sangria na fonte e não no destino final.

O Judiciário é o destino final dos conflitos que nasceram em outro local. Conter litígios no Judiciário é enxugar gelo de uma geleira eterna com panos encharcados.

Apesar disso, o legislador foi mais a fundo na tentativa de enxugar o gelo da litigiosidade com a autocomposição e previu no CPC/2015, art. 334 a audiência de mediação ou de conciliação como obrigatória, em regra.

Não haverá obrigatoriedade da realização da audiência quando o direito discutido não puder ser objeto de transação ou quando as duas partes manifestarem expressamente seu desinteresse na composição consensual (§ 3º).

Em todos os demais casos, a audiência deve ser realizada, ainda quando uma das partes tenha se manifestado no sentido de que não deseja tentar acordo. Se esta parte não comparecer à audiência, cometerá ato atentatório à dignidade da justiça e será sancionada com multa (§ 8º).

E também há quem defenda que aquele que comparece na audiência e não faz proposta ou se recusa a negociar também deve ser penalizado, por comportamento não-cooperativo. Aqui, ao que parece, tem-se uma ideia de aplicação de pena sem previsão do tipo.

Diante disso tudo, a questão que se coloca é: a obrigatoriedade dessa audiência adequa-se ao modelo constitucional de processo?

Quando se fala em modelo constitucional de processo, o que se quer dizer é que há normas constitucionais que instituem o processo como uma garantia das pessoas contra o poder jurisdicional.

O ponto de partida é a previsão da CF/1988, art. 5º, LIV: “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”.

Com Glauco Gumerato Ramos[2], Eduardo José da Fonseca Costa[3] e todos os demais autores desta coluna, entende-se que essa disposição constitucional aniquila a ideia de que o processo é um instrumento do poder jurisdicional para a realização da justiça ou do direito material. O processo é, isso sim, um limite à atuação do poder jurisdicional no caso concreto, que, seguido como método de trabalho, legitima democraticamente a atividade de dizer o direito.

Essa compreensão de que o processo é para as pessoas e não para o Judiciário é fundamental para compreender que o sistema instituído pelo CPC/2015, art. 334, com a obrigatoriedade da audiência de mediação ou de conciliação, não se adequa ao modelo constitucional de processo.

A forma como se instituiu a obrigatoriedade da audiência dá, num primeiro momento, a impressão de que o legislador tinha a intenção de criar uma cultura da autocomposição dentro do Direito Processual. E isso, como se sabe, é uma quimera. Lei processual não cria cultura social.

Então, analisando mais a fundo e reconhecendo que o legislador não é ingênuo, forçosa a conclusão de que a real intenção foi a de reduzir a litigância, obrigando as partes a buscarem a autocomposição, para diminuir o número de demandas nos escaninhos do Poder Judiciário.

Ora, se o processo é das pessoas, como garantia contra o Estado para proteção da liberdade, não pode a lei ou o juiz impor que a solução do conflito já judicializado se dê fora desse âmbito de liberdade.

O devido processo legal, é bom frisar, garante a liberdade das partes durante o processo e depois da prolação da decisão final, impondo ao Judiciário um método de trabalho e ao legislador o respeito a essa noção fundamental.

A imposição de participação na audiência e, de forma mais absurda, a imposição de oferecimento de proposta de acordo, sob pena de multa naquelas hipóteses em que a parte não deseja tentar a autocomposição é ofensa direta à garantia de liberdade instituída pelas normas constitucionais de natureza processual.

A autocomposição é regida, basicamente, pela noção de autonomia da vontade. E essa autonomia não se manifesta apenas no momento das negociações, mas, principalmente, antes delas.

Veja-se que a garantia de liberdade instituída pelo devido processo legal na Constituição e a noção de autonomia da vontade que rege a autocomposição são complementares, porque ambas tratam de, em essência, do exercício do direito fundamental de liberdade das pessoas.

Para que a parte exerça de forma autônoma sua vontade, ela há de ter esclarecimentos suficientes sobre os riscos do litígio. Isso permitirá que ela que possa decidir se deseja entabular qualquer negociação. E a obrigação de prestar esses esclarecimentos é de seu defensor. Não é do juiz da causa e nem do mediador ou do conciliador.

Se o juiz da causa informa a parte sobre os riscos do litígio, corre sério risco de pré-julgar e contaminar-se, deixando de ser imparcial. Ou pior: contaminar-se por estimular a autocomposição naqueles casos em que não deseja proferir sentença.

Convencer uma parte a sentar à mesa das negociações não é tarefa dos sujeitos imparciais: nem do juiz e nem dos auxiliares da justiça.

Avaliação de riscos no processo é atividade eminentemente parcial e deve ser feita pelos respectivos advogados que, dentro dos limites éticos e normativos, devem expor as possibilidades e as eventuais estratégias, deixando que as partes decidam sobre o caminho a ser percorrido.

A advocacia que renuncia a essa prerrogativa está condenada a ser serva do arbítrio judicial.

E o exercício dessa prerrogativa não significa uma reação da antipática “cultura do litígio” à simpática “cultura da paz”. Ele é decorrência da compreensão de que os conflitos levados ao Judiciário são também resolvidos pela adoção de estratégias de luta por partes que estão em polos opostos disputando o mesmo bem da vida.

E reconhecer isso não implica em considerar que a autocomposição é carta fora do baralho. Não. Ela pode ser uma boa estratégia a ser utilizada pelas partes no conflito já judicializado, mas a decisão sobre sentar à mesa de negociações deve ser das partes, no exercício pleno de sua autonomia da vontade, como uma das manifestações da garantia de liberdade que o devido processo legal instituiu.

Há um vício no ponto de partida quando uma das partes, sob ameaça de ser penalizada, é obrigada a sentar à mesa de negociações.

E sobre isso nem cabe o argumento de que, por questões culturais e intelectuais, muitas pessoas sequer sabem que desejam tentar o acordo e o rejeitam sem a noção completa das suas vantagens.

Ora, se são os agentes estatais que precisam desvendar no íntimo dos litigantes que quando eles dizem que não querem negociar, na verdade eles querem, tem-se mais uma razão para se rechaçar o sistema de autocomposição instituído pelo CPC/2015, art. 334, pois ele confia que os auxiliares da justiça e, eventualmente, o juiz, mais do que dotes jurídicos, possuem também dotes premonitórios e psicanalíticos profundos.

Trata-se, como se pode ver, de uma questão de muita fé e de baixíssima densidade jurídica. Fé demais; Direito de menos.

Referências

BRASIL, Conselho Nacional de Justiça. Justiça em Números 2020: ano-base 2019. Disponível em:  https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2020/08/WEB-V3-Justi%C3%A7a-em-N%C3%BAmeros-2020-atualizado-em-25-08-2020.pdf. Acessado em 09/04/2021.

COSTA, Eduardo José da Fonseca. O processo como instituição de garantia. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2016-nov-16/eduardo-jose-costa-processo-instituicao-garantia. Acessado em 09/04/2021.

COSTA, Eduardo José da Fonseca. Processo: garantia de liberdade (freedom) e garantia de liberdade (liberty). Disponível em: https://emporiododireito.com.br/leitura/processo-garantia-de-liberdade-freedom-e-garantia-de-liberdade-liberty. Acessado em: 09/04/2021.

RAMOS, Glauco Gumerato. Ativismo e garantismo no processo civil: apresentação do debate. MPMG Jurídico, Belo Horizonte, v.4, n.18, p.8-13, out./dez., 2009.

[1] BRASIL, Conselho Nacional de Justiça. Justiça em Números 2020: ano-base 2019. Disponível em:  https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2020/08/WEB-V3-Justi%C3%A7a-em-N%C3%BAmeros-2020-atualizado-em-25-08-2020.pdf. Acessado em 09/04/2021.

[2] RAMOS, Glauco Gumerato. Ativismo e garantismo no processo civil: apresentação do debate. MPMG Jurídico, Belo Horizonte, v.4, n.18, p.8-13, out./dez., 2009.

[3] COSTA, Eduardo José da Fonseca. O processo como instituição de garantia. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2016-nov-16/eduardo-jose-costa-processo-instituicao-garantia. Acessado em 09/04/2021.

COSTA, Eduardo José da Fonseca. Processo: garantia de liberdade (freedom) e garantia de liberdade (liberty). Disponível em: https://emporiododireito.com.br/leitura/processo-garantia-de-liberdade-freedom-e-garantia-de-liberdade-liberty. Acessado em: 09/04/2021.