Introdução
Inegavelmente, a pandemia resultante do Covid-19 provocou consequências nas mais diversas áreas da ação humana, desde o relacionamento social, métodos e cuidados com a saúde e, por óbvio, no Direito, exigindo-se a adoção de medidas normativas que pudessem fazer face às necessidades desse contexto pandêmico. Isto também ocorre no âmbito trabalhista, formando o chamado direito emergencial do trabalho, o que ocorreu em 2020 com a adoção de diversas medidas normativas, bem como em 2021.
Uma das tentativas governamentais foi a Medida Provisória nº 1045, que instituiu o “Novo Programa Emergencial de Manutenção do Emprego e da Renda e dispõe sobre medidas complementares para o enfrentamento das consequências de emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus (covid-19) no âmbito das relações de trabalho”, como consta em sua epígrafe. Buscou, assim, de forma declarada (art. 2º), adotar medidas com vistas a preservar o emprego e a renda, garantir a continuidade das atividades laborais e empresariais e reduzir o impacto social decorrente das consequências da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus.
O presente texto pretende abordar as mudanças realizadas pela Câmara dos Deputados no texto da Medida Provisória nº 1045, que, não obstante originalmente direcionada exclusivamente ao plano das relações de trabalho, coloca em xeque o acesso à justiça de todas as pessoas ao estabelecer requisitos para o reconhecimento da gratuidade da justiça em todos os procedimentos jurisdicionais.
- A tentativa de regulamentação da gratuidade da justiça aprovada na Câmara dos Deputados
Editada a Medida Provisória em 27 de abril, em 16 de junho foi ela prorrogada por mais sessenta dias por ato do Presidente do Congresso Nacional, cujo vencimento ocorrerá em 06/09/2021 – uma vez que, durante o período de recesso do Congresso Nacional, os prazos são suspensos (art. 18, Resolução nº 1, de 2002-CN). Aprovada pela Câmara dos Deputados, foi encaminhada ao Senado Federal contendo diversas alterações: para se ter uma ideia, originalmente o texto continha 25 artigos, ao passo que a versão aprovada na Câmara esse número passou a 95.
Mas, mais que a mudança quantitativa, chamam a atenção as alterações quanto conteúdo da Medida Provisória, com mudanças no âmbito do direito do trabalho[1] como também no plano processual, em clara tentativa regular o instituto da gratuidade da justiça, buscando conferir-lhe parcial uniformidade[2] nos mais diversos procedimentos jurisdicionais (em todos os ramos do Judiciário). De fato, segundo a versão aprovada pela Câmara dos Deputados, terá direito ao benefício da justiça gratuita: I – a pessoa pertencente a família de baixa renda, assim entendida: a) aquela com renda familiar mensal per capita de até 1/2 (meio) salário mínimo; ou b) aquela com renda familiar mensal de até 3 (três) salários mínimos. Daí, busca-se a alteração do art. 790 da CLT, da Lei nº 5.010/1966, da Lei nº 10.259/2001 e do CPC (arts. 88 – 91). Além disso, para comprovar tais condições, deve ser apresentada a habilitação no cadastro oficial instituído para programas sociais (Cadastro Único), afastando-se ainda a eficácia probatória da declaração de hipossuficiência.
- Inconstitucionalidade formal da tentativa de alteração das regras relativas à gratuidade da justiça
Não se nega a possibilidade de o Poder Legislativo realizar alterações no texto original de uma medida provisória. Esta, quando enviado pelo Chefe do Executivo, está sujeita à avaliação por parte dos Congressistas, desde sua rejeição ou aprovação, bem como pela necessidade de seu salutar aperfeiçoamento. Negar essa possibilidade seria tornar o Legislativo um poder apequenado em suas atribuições.
Todavia, esse espaço conferido ao legislador é limitado. Com efeito, as alterações realizadas pelo Podes Legislativo não podem incluir temas estranhos ao texto original da medida provisória. Se essa conclusão era, anteriormente, um posicionamento doutrinário[3], foi expressamente reconhecida pelo STF na ADI nº 5.127, julgada em 15/10/2015, que entendeu violar “a Constituição da República […], a prática da inserção, mediante emenda parlamentar no processo legislativo de conversão de medida provisória em lei, de matérias de conteúdo temático estranho ao objeto originário da medida provisória”. No mesmo sentido é o art. 4º, § 4º, da Resolução nº 1/2002, do Congresso Nacional[4]. De fato, a prática de inserção de temas estranhos configura aquilo que se chama, em tom jocoso, mas expressivo, de contrabando legislativo, e caracteriza uma violação (a) à separação de poderes, (b) ao processo legislativo e (c) ao processo democrático de deliberação. Assim, na análise de um texto de lei resultado de conversão de uma medida provisória, inexoravelmente impõe-se a realização de um cotejo analítico de suas disposições, para identificar a necessária relação entre esses diplomas normativos.
Ocorre que o texto aprovado pela Câmara dos Deputados, ao regular o instituto da gratuidade da justiça, não guarda nenhuma pertinência temática com qualquer dispositivo originário na Medida Provisória nº 1045/21, resultando de forma flagrante a sua inconstitucionalidade formal, por violação ao princípio da congruência entre a medida provisória e o texto legal resultante de sua conversão. Essa impertinência temática é tão flagrante quando se rememora a vedação, constitucionalmente estabelecida, à veiculação de matéria processual nas medidas provisórias (art. 62, § 1º, I, “b”). A partir do modelo constitucional, em hipótese alguma o texto de conversão de uma medida provisória pode contemplar matérias de ordem processual, como se verifica na versão aprovada.
- Inconstitucionalidade material da pretendida regulação da gratuidade da justiça
Identificada em Cappelletti e Garth como uma das ondas de renovação do processo, a inafastabilidade do acesso ao Judiciário consiste em um direito fundamental, previsto no art. 5º, XXXV, da Constituição Federal, que assegura ao cidadão “um feixe de direitos e garantias que não poderão ser violados por nenhuma das esferas do Poder Público”, como esclarece George Abboud[5]. Como se sabe, o processo tem custos. Ante a impossibilidade material da extinção, por completo, das despesas processuais, devem as partes arcar com os custos necessários para o exercício da tutela jurisdicional. Todavia, parece ser sintomático que a existência desses custos consiste em sério obstáculo no acesso à Justiça, exigindo-se a adoção de medidas que possibilitam o acesso ao Judiciário: “Antes de colocar os necessitados em situação material de igualdade no curso da relação processual, urge lhes fornecer meios mínimos para ingressar na Justiça”[6]. Aos hipossuficientes economicamente é assegurado o direito fundamental da gratuidade da justiça como instrumento de realização do processo enquanto meio democrático do exercício dos direitos e de proteção contra o arbítrio. Assim, “o direito à gratuidade de acesso à justiça, àqueles comprovadamente desafortunados, passa a ser o pilar dos mais importantes do modelo do Estado democrático de Direito”[7].
A proposta de alteração legislativa aprovada na Câmara dos Deputados parece seguir a perspectiva ideológica que sempre orientou o instituto da gratuidade da justiça, qual seja, de uma benesse concedida pelo Estado, como se vê desde as Ordenações Filipinas, que estabelecia a exigência de o litigante prometer realizar uma oração universal[8] em favor da alma de Dom Diniz (Livro III, Cap. LXXXIV, par. X), o que demonstra o caráter paternalista que a gratuidade da justiça tradicionalmente incorporou e que teima em subsistir.
Todavia, é correto afirmar-se que a gratuidade da justiça corresponde à conjunção das liberdades clássicas, inseridas no âmbito dos direitos fundamentais, com os direitos sociais prestacionais por parte do Estado. Essa ubicação caminha na contemporânea concepção do processo enquanto instrumento de proteção contra o exercício arbitrário de posição do poder estatal – seja perante o julgador[9], seja em face do legislador. Em razão disso, a gratuidade não é um favor concedido à parte. Não se trata de um benefício, como se o a autoridade estatal estivesse em uma posição sacrossanta e, do alto de seu Olimpo, de forma misericordiosa, pudesse conceder alguma graça à parte litigante.
Ao revés, a gratuidade da justiça é um direito constitucionalmente previsto. O seu reconhecimento concretiza no plano processual um dos direitos fundamentais responsáveis por possibilitar que haja a solução dos conflitos intersubjetivos, não se restringindo a uma mera promessa.
Sob o pretexto de trazer regras objetivas aplicáveis a todos os órgãos jurisdicionais, a alteração realizada pela Câmara dos Deputados na MP 1045/21 viola o conteúdo protetivo alcandorado no texto constitucional; a tentativa de alteração legislativa busca mudar o polo interpretativo, estabelecendo regras que, na prática, inviabilizam o acesso à justiça, em nítido deficit de proteção de um direito fundamental.
De fato, ao vincular a gratuidade da justiça a quem recebe meio salário-mínimo por mês, e desde que a renda familiar não ultrapasse três salários-mínimos, salta aos olhos a vinculação a um estado de pobreza – tanto que a pessoa deve estar inscrita no Cadastro Único instituído para a concessão de benefícios sociais. Ora, a Constituição Federal não exige esse estado de indigência, condicionando a gratuidade da justiça à insuficiência de recursos (note-se que a Constituição não desconhece o pauperismo, pois no inciso LXXVI do art. 5º, elege esse critério para outras concessões estatais). A tentativa de confinar a gratuidade da justiça à hipótese de pobreza ou de miserabilidade (objeto de refutação por doutrina clássica[10]) viola o conteúdo material fixado pela Constituição Federal, que exige, tão somente, que a pessoa não possua condições de efetuar o pagamento das despesas processuais. A insuficiência de recursos não quer dizer, por óbvio, a pobreza, em sua concepção de falta de recursos inclusive para a sobrevivência, pois o texto constitucional não chega a tal píncaro de restrição.
Outra violação constitucional consiste na tentativa de afastamento da validade da declaração de hipossuficiência. De fato, a Constituição Federal assegura a gratuidade da justiça àqueles que comprovarem a insuficiência de recursos, a exigir a possibilidade de serem fixados critérios de demonstração dessa condição, o que não significa, todavia, autorização para a interdição de alguma espécie de prova. Ora, os direitos fundamentais, em sua mais configuração mais clássica, na sua feição nitidamente liberal, configuram uma proteção contra a atuação desproporcional do Poder Público, exigindo-se, sua restrição, uma adequada fundamentação[11].
Por isto, cabe ao legislador infraconstitucional estabelecer formas de concretização das promessas constitucionais, jamais para esvaziá-las, como se verifica na pretendida alteração legal. Ao texto normativo infraconstitucional cabe definir os limites do módulo probatório, reduzindo os limites de exigência dessa prova, a concretizar os comandos constitucionais, concedendo-lhes a eficácia necessária. Como a gratuidade de justiça é um direito fundamental, a legislação infraconstitucional poderia ampliar a forma de sua demonstração, não restringi-la. Qualquer tentativa infraconstitucional de regular a demonstração da insuficiência de recursos, buscando diminuir, senão impedir, a possibilidade de êxito da pessoa em desonerar-se de tal encargo consistiria em retirar, de forma indireta, eficácia do texto constitucional.
Conclusão
Em linha de conclusão, afigura-se correto afirmar, a partir da noção apresentada por Marc Augé – para quem “O não lugar é o espaço dos outros” –, que as alterações normativas acima mencionadas instauram um verdadeiro não-lugar do litigante hipossuficiente, a sua não identificação, o seu não pertencimento no acesso à justiça e à legitimidade da intervenção estatal em sua esfera jurídica. A versão da Medida Provisória nº 1045/21 aprovada na Câmara dos Deputados, além de realizar a inserção de temas estranhos ao texto original enviado pelo Executivo, em clara inconstitucionalidade formal, busca, de maneira insofismável, restringir o acesso à justiça pela criação de entraves desproporcionais à concessão da gratuidade da justiça em todos os ramos do Judiciário. Sem o enfrentamento das causas da grande litigiosidade que atinge o Brasil, busca-se artificialmente a adoção de mudanças para a preservação de um sistema que mantém o desrespeito aos direitos estabelecidos, lançando uma cortina de fumaça em relação aos problemas que levam ao aumento do número de processos.
Referências
ABBOUD, George. Processo constitucional brasileiro. 4ª ed. São Paulo: Thomson Reuters, 2020.
AMARAL JUNIOR, José Levi Mello do. Medida provisória e sua conversão em lei: a emenda constitucional nº 32 e o papel do Congresso Nacional. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004.
ASSIS, Araken de. Processo civil brasileiro: vol. II – t. I. 2ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2106.
AUGÉ, Marc. Não-lugares: introdução a uma antropologia da supermodernidade. Campinas, SP: Papirus, 1994.
MARCELINO JR., Julio Cesar. Análise econômica do acesso à justiça. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2016.
MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 8ª ed. São Paulo: Saraiva, 2013.
SILVA, Nathállia Eugênia Nascimento e.; BARRIENTOS-PARRA, Jorge. A MP 1045: uma legislação emergencial do trabalho em detrimento do trabalhador e suas “emendas jabutis” (In: https://www.contraditor.com/a-mp-1045-uma-nova-legislacao-emergencial-do-trabalho-em-detrimento-do-trabalhador-e-suas-emendas-jabutis/).
SOUZA, Simone; MIRANDA NETTO, Fernando Gama. Gratuidade de justiça em risco. (In: https://www.contraditor.com/gratuidade-de-justica-em-risco/).
[1] Como identificado no texto A MP 1045: UMA NOVA LEGISLAÇÃO EMERGENCIAL DO TRABALHO EM DETRIMENTO DO TRABALHADOR E SUAS “EMENDAS JABUTIS” (In: https://www.contraditor.com/a-mp-1045-uma-nova-legislacao-emergencial-do-trabalho-em-detrimento-do-trabalhador-e-suas-emendas-jabutis/).
[2] Embora no processo do trabalho seja estabelecido ainda um outro requisito: “II – a pessoa física que, durante a vigência do contrato de trabalho mais recente, ainda que não esteja mais vigente, percebeu salário igual ou inferior a 40% (quarenta por cento) do limite máximo dos benefícios do Regime Geral de Previdência Social”.
[3] AMARAL JUNIOR, José Levi Mello do. Medida provisória e sua conversão em lei: a emenda constitucional nº 32 e o papel do Congresso Nacional. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 284. MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 8a ed. rev. e atual., São Paulo: Saraiva, 2013, p. 884-885.
[4] “É vedada a apresentação de emendas que versem sobre matéria estranha àquela tratada na Medida Provisória, cabendo ao Presidente da Comissão o seu indeferimento liminar”.
[5] ABBOUD, George. Processo constitucional brasileiro. 4ª ed. São Paulo: Thomson Reuters, 2020, p. 857.
[6] ASSIS, Araken de. Processo civil brasileiro: vol. II – t. I. 2ª ed. 2106, p. 537.
[7] MARCELINO JR., Julio Cesar. Análise econômica do acesso à justiça. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2016, p. 121.
[8] Evangelho segundo São Mateus. Cap. 6. Vers. 9-13.
[9] Como identificado em texto recente: SOUZA, Simone; MIRANDA NETTO, Fernando Gama. Gratuidade de justiça em risco. (In: https://www.contraditor.com/gratuidade-de-justica-em-risco/).
[10] “Para alcançar a assistência, não é preciso que o indivíduo viva da caridade pública, basta que esteja colocado na contingência de, ou deixar perecer o seu direito por falta de meios para fazê-lo valer em juízo, ou ter que desviar para o custeio da demanda e constituição de patrono os recursos indispensáveis à manutenção própria, e dos que lhe incumbe alimentar, dentro do conceito de família.” (Jorge Americano, Comentários ao código de processo civil do Brasil, v. 1, p. 124-125. Apud ASSIS, Araken. ob. cit. p. 552).
[11] ABBOUD, 2020, p. 863-871.