Em colunas anteriores foram apontadas algumas das bases estruturais do ativismo judicial – o neoliberalismo processual[1], o (in)consequencialismo decisório[2], a pedagogia judicial[3] e o instrumentalismo processual[4] -, e como não são compatíveis com o marco teórico processual implementado pela constitucionalidade democrática.
Dessa maneira, é importante destacarmos, ainda, outra perspectiva que se alinha ao ativismo judicial e que também possui conexão com as demais premissas publicistas, qual seja, a Análise Econômica do Direito (AED).
Lecionam Luiz Fux e Bruno Bodart que a AED “constitui seara interdisciplinar, de modo que a Economia não é mero adendo ou conhecimento auxiliar, senão elemento central do estudo do Direito como política pública”.[5] Ainda segundo os juristas, a Análise Econômica do Direito busca examinar os institutos jurídicos a partir da busca e da geração de bem-estar social, por meio de comparações dos interesses em jogo e dos incentivos que irão reger cada grupo de interessados. Argumentam que “essa análise pode iluminar a aplicação de normas jurídicas estabelecidas, instigar reformas ou auxiliar a tarefa de tomadores de decisões, tanto em casos fáceis quanto em casos difíceis”. [6]
Em resumo, para os autores, a AED concentra no exame das normas jurídicas e suas consequências, já que leis e decisões judiciais seriam importantes pelos efeitos causados em relação ao grupo que pretendem atingir.[7]
Helena Freitas, ao fazer uma incursão crítica sobre o princípio da eficiência jurisdicional, demonstra que Richard Posner, um dos percursores da AED, defende o uso da discricionariedade judicial com viés economicista, a fim de que seja avaliado o melhor custo-benefício para maximização da riqueza. Desse modo, a aferição monetária “presta-se a orientar a tomada de uma decisão de modo eficiente, podendo ser fundamentada em normas ou tomada apesar da norma, desde que atenda o critério da maximização da riqueza”.[8]
O que se verifica em uma breve análise dessa perspectiva (que não caberá de modo aprofundado nessa coluna) é que o aspecto econômico das leis e decisões deve servir como baliza e premissa, a fim de que se tenha o melhor custo-benefício para toda a sociedade, com a consequente geração de bem-estar.
No entanto, ao buscar a felicidade e o contentamento da sociedade, a AED preconiza uma tirania do bem-estar[9], na medida em que sua pauta econômica mantém os agentes estatais (juízes, legisladores e administradores) como monopolizadores “da correção material do direito, estando autorizados, inclusive, a deduzirem distorções interpretativas nas normas processuais em prol de uma efetividade (a qualquer preço) dos escopos sociais politicamente prometidos”.[10]
Ou seja, a AED assume a noção de que os agentes estatais seriam os intérpretes e criadores da lei a dizer quais os rumos que a sociedade deve tomar, o que é prejudicial à democracia e à processualidade, na medida em que os atos estatais e decisões judiciais passam a ser proferidos verticalmente sem a participação e fiscalização dos Cidadãos, verdadeiros sujeitos constitucionais.
Nesse ponto, o alerta de Karl Popper é aplicável à crítica à AED, pois de todos os ideais “o de fazer o povo feliz é talvez o mais perigoso. Leva invariavelmente à tentativa de impor nossa escala de valores mais elevados aos outros”.[11]
Logo, leis e decisões pautadas apenas em critérios econômicos para o bem-estar social carecem de qualquer legitimidade já que se pautam em pressuposições daquilo que seria bom ou ruim para a sociedade e aos indivíduos, os quais são excluídos de participação dos espaços processuais de deliberação.
No campo legislativo, podemos apontar que a noção de eficiência é atrelada a um discurso que busca reformas para a suposta “crise” da função jurisdicional, que seria sempre morosa em razão da alta quantidade de procedimentos judiciais em trâmite nos tribunais. Entretanto, esse mote reformador – que se pauta apenas na racionalidade (?) econômica – olvida que o processo é uma instituição de implementação de direitos fundamentais e, por isso, mitigam garantias constitucionais em prol de técnicas que visam apenas acelerar, flexibilizar e suprimir etapas procedimentais.
Como exemplo, podemos mencionar a “PEC da Relevância” que pretende reformar a Constituição para instituir mais um requisito de admissibilidade dos Recursos Especiais: a relevância da questão jurídica debatida.[12] Além disso, também existe proposta doutrinária para a implementação de filtros recursais em Apelação, a fim de que apenas recursos com relevância sejam julgados[13].
E a redução de garantias – que deveriam servir como proteção contra abusos de poder – são liquidadas por reformas inconstitucionais para atendimento de interesses que, em realidade, prejudicam o povo como sujeito de direito.
Já na atividade judicante, a AED se torna perigosa na medida em que permite ao julgador decidir fora da legalidade para atender anseios econômicos. Ou seja, o juiz é livre para utilizar fundamento econômico em sua decisão, mesmo contra a lei.
Podemos citar, como exemplo, julgado do STJ no qual entendeu que o limite da multa de 2% por Embargos de Declaração considerados protelatórios poderia ser elevado por não atingir o escopo sancionador. Vejamos que a redação do artigo 1.026, §2º, do CPC é claro ao dispor que “Quando manifestamente protelatórios os embargos de declaração, o juiz ou o tribunal, em decisão fundamentada, condenará o embargante a pagar ao embargado multa não excedente a dois por cento sobre o valor atualizado da causa”.
Entretanto, essa limitação foi flexibilizada em prol de critérios consequencialistas, econômicos e pedagógicos:
PROCESSUAL CIVIL. EMBARGOS DE DECLARAÇÃO. OMISSÃO. INOCORRÊNCIA. RECURSO PROTELATÓRIO. MULTA. CABIMENTO.
1. Os embargos de declaração têm ensejo quando há obscuridade, contradição, omissão ou erro material no julgado, a teor do disposto no art. 1.022 do CPC/2015.
2. O art. 1.026, § 2º, do CPC/2015 permite a aplicação de multa não excedente a dois por cento do valor atualizado da causa quando interpostos embargos de declaração reputados, fundamentadamente, manifestamente protelatórios.
3.Hipótese em que a embargante reiterou o teor dos argumentos deduzidos no agravo interno, sem explicitar nenhum dos vícios previstos no dispositivo supramencionado, razão por que se consideram protelatórios os presentes embargos.
4. Fixado o valor da causa em um mil reais, o percentual a incidir sobre esse quantum não atingirá o escopo pretendido no preceito sancionador, pelo que cabível o arbitramento daquela multa em R$ 2.000,00 (dois mil reais).
5. Embargos de declaração rejeitados, com imposição de multa.
(EDcl no AgInt no AREsp n. 1.268.706/MG, relator Ministro Gurgel de Faria, Primeira Turma, julgado em 25/10/2018, DJe de 5/11/2018 – Destacamos).
Outro exemplo, advindo agora do STF, diz respeito à fixação de honorários por equidade em ações com valor elevado, proferida antes do recente julgado do STJ, na qual entendeu-se que a fixação de honorários com percentual vinculado ao valor da causa poderia “quebrar” a Fazenda Pública e impedir a prestação de serviços essenciais à sociedade:
EMENTA: EMBARGOS DE DECLARAÇÃO. AÇÃO CÍVEL ORIGINÁRIA. INEXISTÊNCIA DE VÍCIOS DE FUNDAMENTAÇÃO NO ACÓRDÃO EMBARGADO. HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS. FIXAÇÃO POR APRECIAÇÃO EQUITATIVA. ARTIGO 85, § 8º, DO CPC/2015. POSSIBILIDADE. EMBARGOS DE DECLARAÇÃO REJEITADOS. […] 3. Nas hipóteses em que se afigure alto o valor da causa em razão do proveito econômico pretendido pelo autor, é possível o arbitramento dos honorários sucumbenciais com base na equidade, notadamente no caso de parcial procedência da ação, afastando-se a incidência do § 6º do art. 85 do CPC/2015, quando, diante das circunstâncias do caso, o arbitramento dos honorários sucumbenciais vinculados a percentual do valor da causa gerar à parte sucumbente condenação desproporcional e injusta. 4. A fixação dos honorários, nos termos do artigo 85, § 3º, do CPC, nas demandas em que figuram como partes entes que integram a Fazenda Pública, poderia comprometer, de modo grave e/ou irreversível, a continuidade da execução de políticas públicas ou a prestação de serviços essenciais à coletividade, em razão do elevado ônus financeiro. 5. Embargos de Declaração rejeitados. (ACO 637 ED, Rel. Min. Alexandre de Moraes, Tribunal Pleno, j. em 14.06.2021, DJe de 24.06.2021 – Destacamos).
Esses julgados representam a assunção de espaços de exceção em que juízes e tribunais flexibilizam a lei para criar, alterar e suprimir os discursos legais segundo os sensos particulares de justiça e economia. Ora, nas democracias os julgadores não podem se portar como economistas, já que não possuem uma bola de cristal para antever solitariamente os impactos decisórios, como aponta João Carlos Salles de Carvalho:
Não obstante as constatações até então apresentadas, vale lembrar que os juízes não são cientistas sociais ou políticos, muito menos economistas capazes de aferir se determinada linha de decisão trará ou não os impactos estrategicamente desejados na comunidade. Ao revés, o que se tem percebido nas construções jurisprudenciais são decisões metajurídicas que muitas vezes se mostram motivadas por uma espécie de guessing, através do qual os magistrados superficialmente imaginam os impactos de suas decisões na sociedade, assumindo o papel de engenheiros sociais sem, de fato, oportunizarem aos cidadãos uma discussão exaustiva sobre os reflexos que poderão decorrer de um determinado provimento jurisdicional.[14]
E sem contar, ainda, com a constante perquirição de atingimento de metas, em que a flexibilização procedimental reina na produção de decisões e acordos em massa, sempre com o viés da eficiência em seu aspecto meramente quantitativo.
Os juristas-economicistas poderiam fazer a crítica apressada de que defendemos uma litigância exacerbada, no entanto, essa perspectiva se mostra equivocada, pois o que devem ser enfrentados são os reais problemas causadores da conflituosidade, a fim de que sejam eliminados em sua fonte e não por meio de reformas e decisões paliativas pautadas apenas em critérios econômicos.
Enquanto os reais problemas da litigância não forem devidamente enfrentados, as propostas da AED somente servirão para enxugar gelo e implementar uma tirania do bem-estar.
[1] TORRES, Tiago Henrique. “Crise” e estratégias da influência neoliberal mediante reformas processuais. Contraditor: o debate em primeiro lugar. Disponível em: https://www.contraditor.com/crise-e-estrategias-da-influencia-neoliberal-mediante-reformas-processuais/
[2] TORRES, Tiago Henrique. Verdade ou consequência? O que se extrai do neoliberalismo processual. Contraditor: o debate em primeiro lugar. Disponível em: https://www.contraditor.com/verdade-ou-consequencia-o-que-se-extrai-do-neoliberalismo-processual/
[3] MUNDIM, Luís Gustavo Reis. Pedagogia judicial e a multa do artigo 334, §8º, do CPC. Contraditor: o debate em primeiro lugar. https://www.contraditor.com/pedagogia-judicial-e-a-multa-do-artigo-334-%c2%a78o-do-cpc/
[4] CARVALHO, João Carlos Salles. A microfísica do instrumentalismo: as técnicas jurisdicionais não inquiridas por teorias processuais. Contraditor: o debate em primeiro lugar. Disponível em: https://www.contraditor.com/a-microfisica-do-instrumentalismo/; MUNDIM, Luís Gustavo Reis. A impossibilidade do juiz-antena. Contraditor: o debate em primeiro lugar. Disponível em: https://www.contraditor.com/a-impossibilidade-do-juiz-antena/
[5] FUX, Luiz; BODART, Bruno. Processo civil e análise econômica. Rio de Janeiro: Forense, 2019, p. 24.
[6] FUX, Luiz; BODART, Bruno. Processo civil e análise econômica, cit., p. 25.
[7] FUX, Luiz; BODART, Bruno. Processo civil e análise econômica, cit., p. 2.
[8] FREITAS, Helena Patrícia. Eficiência da jurisdição: necessidade de sua (des)construção para efetivação do modelo constitucional de processo. Belo Horizonte: D’Plácido, 2019, p.149.
[9] CARVALHO, João Carlos Salles de. Pedagogia judicial e processo democrático: a fala processual como exercício de cidadania. Belo Horizonte: D’Plácido, 2017, p. 62-74.
[10] CARVALHO, João Carlos Salles de. Pedagogia judicial e processo democrático: a fala processual como exercício de cidadania, cit., p. 74.
[11] POPPER, Karl Raimund. A sociedade aberta e seus inimigos. Trad. Milton Amado. Belo Horizonte: Itatiaia, 1974, p.245. E sabemos do perigo da tomada de decisão com base em valores, pois, no nazismo, o extermínio de judeus teve autorização judicial pautada nos valores do nacional-socialismo. Sobre o tema: MAUS, Ingeborg. O judiciário como superego da sociedade. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010.
[12] A defesa da redução de recursos foi feita pelo Presidente do STJ, Min. Humberto Martins, conforme notícia veiculada no próprio site do tribunal: “O ministro apontou que a corte vem recebendo cada vez mais recursos que discutem questões jurídicas sem repercussão para a sociedade e sem reflexos importantes na uniformização da jurisprudência nacional. Segundo ele, a PEC da Relevância se soma a outros mecanismos legais – como o sistema dos recursos repetitivos – no objetivo de reduzir o excesso de recursos, dar mais velocidade à prestação jurisdicional, fortalecer a jurisprudência e ampliar a segurança jurídica”.
Disponível em: <https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/03112021-Senado-aprova-criacao-de-filtro-de-relevancia-para-admissao-dos-recursos-especiais.aspx>
[13] Já fizemos crítica a essa perspectiva: MUNDIM, Luís Gustavo Reis. Sim, causas devem ser revistas! Contraditor: o debate em primeiro lugar. Disponível em: https://www.contraditor.com/sim-causas-devem-ser-revistas/
[14] CARVALHO, João Carlos Salles de. Pedagogia judicial e processo democrático: a fala processual como exercício de cidadania, cit., p.180-181.
Muito interessante essa vertente econômica nas searas “out “ trabalhistas e previdenciárias . Isso porque nessas sempre predominou decisões de natureza econômica, visando a promover à justiça social e empoderar o poder aquisitivo de trabalhadores . Por outro Norte , é crível a parcialidade quando as demandas envolvem como litigante, o Erário . Parabéns, Dr . Luís Gustavo , ao salientar esse tema que não está adstrito à Justiça Laboral