Desde a tradicional doutrina processual italiana, sobretudo em Chiovenda, a substitutividade era caracterizada a partir da figura do juiz como sendo aquele emissário responsável por concretizar a vontade da lei diante os conflitos.
Em conjunto com a estatalidade,[1] a lide e a substitutividade, como características afetas aos conceitos tradicionais de jurisdição, registra-se que a substitutividade é o que ainda carrega consigo uma razão de ser importante para a resolução dos conflitos. Isto porque a substitutividade é particularidade que aponta para a necessária existência de um terceiro imparcial[2], alheio aos interesses em conflito, para que promova (ou auxilie a promover) a resolução da controvérsia posta no lugar de uma eventual solução pelas próprias partes, monopolizando este encargo.[3]
O caráter substitutivo é traço marcante não só na jurisdição estatal, mas também em outras modalidades heterocompositivas já tradicionalmente reconhecidas como hábeis à resolução de conflitos, como a arbitragem, a mediação e a conciliação. Esta última, embora tenha raízes históricas como modalidade autocompositiva, entre as próprias partes envolvidas no litígio, admite também a sua condução por um terceiro[4] alheio ao conflito, que cuidará de intermediar o diálogo entre os litigantes, além de sugerir eventuais soluções às partes para a contenda. Inclusive, nos próprios procedimentos judiciais a adoção da conciliação e da mediação não só é resguardada como também é fomentada, para proporcionar a solução dos conflitos de modo mais breve e adequado, de acordo com as questões discutidas no conflito de interesses.
Apesar de ser traço marcante para o funcionamento e concepção da atividade jurisdicional em uma visão tradicional, a substitutividade não compatibiliza com o que se apregoa à uma leitura baseada no paradigma democrático. Isso porque resulta em natural exclusão dos sujeitos envolvidos no litígio como partes da construção do conteúdo decisório que as afetará, inviabilizando o raciocínio sobre mecanismos decisórios mais democráticos e participativos nas atividades públicas ou privadas. Em outras palavras, dentro de uma perspectiva democrática não se pode mais admitir que um terceiro, não parte do conflito, se apodere solitariamente de uma capacidade de impor às partes decisão que impactará na esfera pessoal ou patrimonial de quem contende.
Desde a célebre doutrina de Elio Fazzalari, publicada originalmente na década de 1950,[5] a jurisdição passou a ser visualizada a partir da possibilidade de construção participada dos conteúdos decisórios. Isso, tanto pelo juiz e seus auxiliares do foro quanto, e principalmente, pelas partes envolvidas na contenda, que sofrerão diretamente os efeitos positivos ou negativos da decisão.
Nesse sentido, o jurista italiano enfatiza em sua construção teórica que “participam não somente o juiz, mas também seus auxiliares (o escrivão, o oficial de justiça, eventualmente o perito) e, sobretudo, os sujeitos em cuja esfera jurídica a emanada medida jurisdicional é destinada a incidir, em contraditório entre eles”[6], conformando decisão participada entre todos os sujeitos processuais, como condição de legitimidade da própria decisão. Atrelado a tal questão encontra-se a própria possibilidade, viabilizada pelo artigo 190 do CPC/2015, de que as partes realizem a adequação procedimental de acordo com os objetivos e direitos em discussão na demanda, tornando o procedimento jurisdicional mais adequado às particularidades dos casos concretos sem descuidar do respeito às garantias processuais fundamentais.
Soma-se a isto o fato de que a necessidade de substitutividade abre espaço para que seja discutido o próprio caráter de atividade jurisdicional da atuação referente à jurisdição voluntária, tal como promove boa parcela da doutrina pátria.[7] Afinal, ao ser considerada por estes como administração de interesses privados pelo organismo público jurisdicional do Estado, a jurisdição voluntária acaba escoando para o mesmo caminho de maneira totalmente indevida, inclusive, sendo desconsiderada como atividade jurisdicional propriamente dita, sobretudo quando não identificada a existência de lide a demandar a necessidade do caráter substitutivo da jurisdição.[8]
No entanto, de forma totalmente diversa, a atividade exercida em caráter de jurisdição voluntária é necessária e importante, já que dela depende a própria garantia de que determinada situação jurídica posta pela parte interessada tenha seus efeitos devidamente reconhecidos e valorizados, o que não ocorreria senão pela tutela jurisdicional.
Robson Renault Godinho enfatiza a trivialidade da diferenciação realizada pela doutrina brasileira sobre a jurisdição voluntária e a jurisdição contenciosa, que quase sempre parte da inexistência de interesses antagônicos, gerando suposto déficit de contraditório, ou da suposta incapacidade de formação de coisa julgada material, em vista da suposta ausência de conflito. Segundo o autor, “não há como confundir conflituosidade com exercício do contraditório e consensualidade como ausência de contraditório”, partindo-se da premissa que o contraditório é muito além de mero elemento estruturador do procedimento. Diferentemente, trata-se de “garantia constitucional, cuja observância é obrigatória em todos os processos jurisdicionais ou administrativos”, não sendo possível existir processo sem contraditório.[9]
De igual modo, além de entender que a coisa julgada é aspecto acidental à atividade da jurisdição, Godinho enfatiza que “o que importa para verificar a ocorrência de coisa julgada material, essencialmente, é a presença de contraditório e da cognição exauriente”, além de haver uma série de expedientes realizados na atividade da jurisdição, essenciais à tutela de direitos, que, embora não conformados por coisa julgada, não deixam de refletir atividade da jurisdição.[10] Em síntese, esclarece o autor:
É famosa a frase que define a jurisdição voluntária como não sendo jurisdição nem voluntária. Nossa premissa, entretanto, é outra: a jurisdição voluntária possui natureza jurisdicional e pode ser voluntária, de acordo com as escolhas legislativas acerca de determinado assunto. A desconstrução da famosa sentença antes mencionada, e que será referida novamente mais adiante, é um exemplo de como pode ser prejudicial a mera reprodução de ideias, sem qualquer filtro legislativo e doutrinário, independentemente da qualidade dos autores que elaboraram ou reproduziram a ideia e do valor retórico da frase. Simplesmente não serve mais e, salvo como registro de um pensamento delimitado no tempo e no espaço, esse tipo de repetição de ideias não contribui para a evolução do debate.
A natureza jurisdicional da jurisdição voluntária é ainda hoje um tema controvertido e relevante, mas a possibilidade de se tratar de procedimentos obrigatórios ou necessários, não. Há casos em que somente por via jurisdicional situações jurídicas podem ser efetivadas, como a constituição de curatela, mas há tantas outras que podem ser realizadas judicial ou extrajudicialmente, como a notificação e o divórcio consensual em que inexista filho incapaz ou nascituro. Ou seja: é critério de política legislativa e há mesmo a tendência de diversos temas serem desjudicializados, o que é salutar, já que somente o apego a tradições atávicas pode justificar a manutenção da exclusividade jurisdicional para o registro de testamentos ou a modificação de regime de bens de casamento. Sob a epígrafe ‘jurisdição voluntária’ acomodam-se procedimentos e temas heterogêneos, que variam no tempo e no espaço e dificultam a elaboração de uma abordagem abstrata.[11]
Deste modo, ainda que não haja substitutividade para a resolução de conflito, há a necessária atuação do Estado para fazer valer direitos e situações jurídicas, ou reconhecer a existência ou inexistência de vínculos jurídicos, cujos efeitos não poderiam ser observados pelas partes e tampouco impostos a terceiros.[12]
Em vista do que se apresenta, a centralidade na figura do decisor, ou do terceiro que promoverá o encaminhamento à solução do conflito, demonstra várias razões para não ser mais considerada como característica da jurisdição. A substitutividade exclusiva da vontade das partes pela vontade de um terceiro mostra-se nitidamente incompatível com um paradigma democrático.
Em sentido contrário, uma ideia de jurisdição a partir de premissas democráticas deve ostentar a possibilidade de que todos os envolvidos na contenda, sendo as partes que deduzem ou respondem à pretensão, bem como o juiz ou terceiro alheio a esta disputa de interesses, contribuam pela assunção de iguais cargas de responsabilidade, compartilhando em uma comunidade de trabalho os esforços para a produção de uma decisão[13] que vinculará a todos estes envolvidos e a própria sociedade, diante os efeitos do conteúdo decisório e do caráter democrático de sua construção.
Vencer a tradicional ideia da substitutividade, pura e simples, representará mais uma etapa em torno da compatibilização do processo e da participação de todos os sujeitos processuais como esteio para toda a atividade jurisdicional.
[1] Já trabalhada nesta Coluna em <https://www.contraditor.com/monopolio-jurisdicional-pelo-estado/>
[2] Além da imparcialidade, há quem defenda a necessidade de que se diferenciar esta da impartialidade, que é o caráter de terceiro, alheio ao conflito, a ser identificado no juiz ou decisor. Deste modo, além de não ser parte dentre os sujeitos do processo, não se envolvendo com o caráter material dos interesses das partes (o que denota a impartialidade), a atuação do juiz ou decisor deve ser isenta e independente, baseada no ordenamento jurídico e não em questões alheias ao processo ou (in)conscientemente apresentadas a partir de suas eventuais convicções pessoais. Confira-se: MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz; MITIDIERO, Daniel. Novo Curso de Processo Civil. Teoria do Processo Civil. vol. 1. 3ª. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017, p. 144; NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de Direito Processual Civil. 9ª. ed. Salvador: Juspodivm, 2017, p. 247.
[3] “O caráter substitutivo da atividade estatal manifesta-se em retirar o direito de agir das partes uma em relação à outra, dando lugar ao direito de pedir perante um órgão estatal imparcial. A imparcialidade é a justificativa máxima da existência do Poder Judiciário como meio de aproximar a atividade jurisdicional do ideal de justiça. O próprio fato de ser um terceiro imparcial aquele que decide já reveste a jurisdição de certa respeitabilidade. Por outro lado, contentando-se o Estado com uma decisão pincelada de parcialidade, melhor seria deixar as próprias partes resolverem seus conflitos, com grande economia de tempo e recursos públicos.” (PADILLA, Luiz R. Nuñes. Chiovenda, Jurisdição Voluntária e Processo Penal. Revista de Processo, vol. 81, jan./mar. 1996, p. 233-234.)
[4] Tal como estabelece o artigo 165, §2º, do CPC/2015: “Art. 165. Os tribunais criarão centros judiciários de solução consensual de conflitos, responsáveis pela realização de sessões e audiências de conciliação e mediação e pelo desenvolvimento de programas destinados a auxiliar, orientar e estimular a autocomposição.[…] § 2º O conciliador, que atuará preferencialmente nos casos em que não houver vínculo anterior entre as partes, poderá sugerir soluções para o litígio, sendo vedada a utilização de qualquer tipo de constrangimento ou intimidação para que as partes conciliem.”
[5] Já trabalhada nesta Coluna em <https://www.contraditor.com/gatilho-de-fazzalari/>
[6] FAZZALARI, Elio. Instituições de Direito Processual. Campinas: Bookseller, 2006, p. 138.
[7] Humberto Theodoro Júnior, Cândido Rangel Dinamarco, Arruda Alvim e Araken de Assis adotam uma postura mais inflexível acerca da jurisdição voluntária, não entendendo tais autores tratar-se da verdadeira e própria jurisdição, responsável por resolver as lides a partir da tutela estatal. Ainda, em uma visão mais flexível mais não apontando de forma definitiva sobre o caráter jurisdicional da jurisdição voluntária, cite-se a posição de José Miguel Garcia Medina, Cássio Scarpinella Bueno, Alexandre Freitas Câmara e Daniel Amorim Assumpção Neves, para os quais o caráter voluntário atuaria de modo a compor o caráter essencial da jurisdição contenciosa.
[8] “Não se pode ignorar a importância que, no pensamento de Carnelutti, alcançou a noção de lide. Dela derivam os conceitos fundamentais da Ciência Processual, entre os quais o de jurisdição que seria a função do Estado destinada à composição da lide. Para manter esta conclusão, enfrentou certas dificuldades e se viu forçado a admitir a existência de processos sem lide. É o que se daria naqueles casos, já mencionados, em que o acordo das partes não leva à produção do efeito jurídico desejado, sendo necessário um processo contraditório, embora não exista conflito de interesses. Ocorreria aí uma “divergenza fra struttura e funzione”. Empregam-se os órgãos e procedimentos característicos de uma função para o desempenho de outra, pois, utilizando-se das formas do processo, os órgãos investidos na função processual exercitam função diversa, qual seja a administrativa. Termina por incluir tais hipóteses entre as de jurisdição voluntária.” (OLIVEIRA, Eduardo Ribeiro. Sobre o Conceito de Jurisdição. Revista de Processo, vol. 16, dez./1979, p. 142.)
[9] GODINHO, Robson Renault. Jurisdição Voluntária e Jurisdição Contenciosa: uma distinção artificial no Processo Civil Brasileiro. Civil Procedure Review, vol. 10, n. 01, jan./abr. 2019, p. 40.
[10] GODINHO, Robson Renault. Jurisdição Voluntária e Jurisdição Contenciosa: uma distinção artificial no Processo Civil Brasileiro. Civil Procedure Review, vol. 10, n. 01, jan./abr. 2019, p. 44.
[11] GODINHO, Robson Renault. Jurisdição Voluntária e Jurisdição Contenciosa: uma distinção artificial no Processo Civil Brasileiro. Civil Procedure Review, vol. 10, n. 01, jan./abr. 2019, p. 46-47.
[12] CABRAL, Antônio do Passo. Per un Nuovo Concetto di Giurisdizione. In: BRIGULIO, Antonio et al (Orgs.). Scritti in Onore di Nicola Picardi. vol. 01. Pisa: Pancini Editore, 2016, p. 369.
[13] NUNES, Dierle. Processo Jurisdicional Democrático. Curitiba: Juruá, 2012, passim.