“La prospettiva storica è imprescindibile nello studio dei fenomeni sociali: solo conoscendone genesi e svolgimento essi possono essere pienamente intesi, apprezziati e valutati” (M. Marrone, Istituzioni di diritto romano, 3ª ed., Palermo: Palumbo, 2006, p. 6)
Nossa coluna de hoje é dedicada à reconvenção, instituto firmemente enraizado na nossa tradição jurídica. Normalmente associada ao princípio da economia processual, a reconvenção, pelo menos em tese, torna o processo mais eficiente, pois possibilita que o réu deduza sua pretensão em juízo no mesmo processo em que é demandado. Combina, diz a doutrina, o máximo de garantia jurídico-social com o mínimo consumo de tempo e de recursos, o máximo de rendimento com o mínimo de atividade.
Entre nós, dedicaram-se ao tema vários e ilustres autores. Dois deles merecem especial menção nesta coluna, pois boa parte do que escrevo foi extraído das suas obras. O primeiro é Moacyr Amaral Santos, autor da tese intitulada “Da Reconvenção no Direito Brasileiro”, publicada pela primeira vez em 1958. O outro é o professor José Rogério Cruz e Tucci, que escreveu a obra “Da Reconvenção: Perfil Histórico e Dogmático”, publicada pela editora Saraiva em 1984. A esses textos dirijo a atenção do leitor que queira se aprofundar no tema.
O direito romano, cujo desenvolvimento se estendeu desde a fundação de Roma (754 a.C.) até a morte do imperador Justiniano (565 d.C.), somente conheceu instituto análogo à reconvenção moderna num estágio já tardio do seu direito processual, conhecido como o período da cognição extraordinária (cognitio extra ordinem). É nele (séculos III a VI d.C.) que nasce, a pouco e pouco, uma organização judiciária hierarquizada, em cujo ápice se encontrava o Imperador.
A literatura especializada tende a atribuir o surgimento da reconvenção no direito romano (embora ainda sem o nomen iuris) a duas constituições do imperador Justiniano. A primeira (C. 7, 45, 14, de 530) determinava que o juiz competente para absolver o réu tem competência também para condenar o autor a dar ou a fazer algo (“…ut liceat iudici vel contra actorem ferre sententiam et aliquid eum daturum vel facturum pronuntiare…” = “de tal forma que o juiz esteja autorizado a proferir sentença contra o autor, e a declarar que ele deve dar ou fazer alguma coisa”). Reconhece-se, assim, a autonomia da pretensão reconvencional.
A segunda (Nov. 96, 2, 1, de 539, originalmente promulgada em grego), além de reforçar a competência do mesmo juiz para conhecer ambas as pretensões, fixava em vinte dias, contados da apresentação da petição inicial (libellus), o prazo para que o réu-reconvinte alegasse a incompetência do juiz, sob pena de prorrogação da competência (“Viginti enim dierum indutias dantibus nobis post libelli transmissionem, post quam oportet litem contestari…” = “Damos o prazo de vinte dias após a apresentação da petição inicial, após o qual a lide deve ser contestada…”). A reconvenção torna-se, dessa forma, obrigatória, se a parte não alegasse, tempestivamente, a incompetência do juiz.
Na verdade, a possibilidade de discutir pretensões opostas no mesmo processo não era uma novidade no direito processual romano. Os denominados iudicia contraria eram admitidos no período do processo formulário (séculos II a.C. a III d.C.), fase imediatamente anterior à da cognição extraordinária. A título de exemplo: no processo formulário era possível discutir a pretensão à restituição da coisa ao comodante (actio commodati) paralelamente à pretensão ao reembolso de despesas extraordinárias ao comodatário (actio commodati contraria). O próprio Justiniano, nas primeiras linhas de C. 7, 45, 14, cita um parecer de Papiniano favorável à competência concorrente do juiz da causa para julgar pretensões opostas.
A relevância da legislação justinianeia, embora sutil, é indiscutível. É ela que, pela primeira vez, dá à reconvenção (cuja nomenclatura latina, “reconventio”, somente foi adotada a partir do direito intermédio) caráter marcadamente autônomo e, ainda, amplia o seu escopo. Com efeito, a doutrina especializada tende a crer que o direito justinianeu sequer exigia que houvesse conexão de causas.
Com a morte de Justiniano, o direito romano decai rapidamente. Somente no século XI, após séculos de esquecimento, o estudo das fontes romanas clássicas e bizantinas foi retomado pelos glosadores da Escola de Bolonha. O direito romano passa a ser concebido como um sistema jurídico completo e coerente. Os escritos dos glosadores, apesar de desvinculados da efetiva aplicação do direito, até hoje conservam seu valor, pois o resultado desses estudos constituiu o ius commune, que passou a ser aplicado, de modo supletivo, ao lado dos direitos consuetudinários e legislativos dos diversos principados, senhorios e cidades espalhados pela Europa.
Glosadores, pós-glosadores e comentaristas sistematizaram, no contexto do processo romano-canônico, o instituto da reconvenção. Suas linhas essenciais serviram de modelo para as diversas legislações comunais, de onde passou às legislações contemporâneas.
Nas obras desses juristas, a reconvenção era concebida como uma ação do réu contra o autor no curso da ação principal, a qual podia ser oferecida até a conclusão dos autos para a sentença. Dois princípios fundamentais passaram a reger o instituto. De um lado, o mesmo juiz da ação devia julgar a reconvenção. Entendiam os glosadores que um dos efeitos da reconvenção era a prorrogação da jurisdição, o que impedia ao autor-reconvindo opor exceção de incompetência. De outro lado, a ação principal e a reconvenção tramitavam simultaneamente, devendo as duas causas ser resolvidas numa única sentença. Não se admitia a reconvenção nas causas executivas ou em grau de apelação.
O instituto da reconvenção teve seu campo de incidência alargado pelo direito canônico. Esse alargamento foi intencional: ampliar as hipóteses de admissibilidade da reconvenção contribuía à expansão da jurisdição eclesiástica, que utilizava o instituto para atrair litígios que versavam sobre matéria secular. Com efeito, não constituía pressuposto de admissibilidade da ação reconvencional a identidade com a causa da ação principal, resultando na ampla admissibilidade da reconvenção. Ao final desse processo de assimilação e sistematização, a reconvenção se tornou um instituto tipicamente romano-canônico, contendo elementos de ambos os ordenamentos.
O direito português também imprimiu sua influência no instituto da reconvenção. Ao lado do renascimento do direito romano promovido pela Universidade de Bolonha (1088), a fundação da Universidade de Coimbra (1289) foi um fator decisivo. O direito romano justinianeu, junto com as glosas de Acúrsio e de Bártolo, passou a dominar a cenário jurídico português. Foi sob o influxo do direito romano que as Ordenações Afonsinas (1446) modelaram a reconvenção, o mesmo ocorrendo nos textos das Ordenações Manuelinas (1521) e das Ordenações Filipinas (1603).
Nas Ordenações Afonsinas, o forum reconventionis estava previsto no Livro III, Título XXIX (“Das Auçoeĕs e Reconvençoeĕs”). O texto, ressalvadas algumas alterações, foi copiado textualmente e incluído nas Ordenações Manuelinas (Livro III, Título XXIV) e nas Ordenações Filipinas (Livro III, Título XXXIII). A sistematização desses corpos normativos reflete aquilo que já fora sedimentado no direito processual canônico, com base no disposto em C. 7, 45, 14 e em Nov. 96, 2, 1.
Em todas as Ordenações, ação e reconvenção deviam ser processadas conjuntamente. Tratava-se de duas ações, uma proposta pelo autor, outra pelo réu, devendo ambas ser extintas por uma única sentença. Julga-se primeiro o pedido do autor-reconvindo, e depois o do réu-reconvinte, devendo este contestar primeiro ao libelo, para que depois o autor-reconvindo possa contestar a reconvenção. Para que não ficasse desnaturada, a reconvenção devia ser apresentada antes da dilação probatória, pois após esse momento processual a ação principal e a reconvencional seguiriam cada uma seu próprio curso. O réu-reconvinte não podia demandar o autor-reconvindo perante outro juízo que não o prevento. Ao autor-reconvindo, por sua vez, era vedado declinar o forum reconventionis uma vez apresentada a reconvenção. O réu-reconvinte, nos casos em que fosse ordinário o procedimento da ação principal e sumário o da reconvenção, podia renunciar ao procedimento sumário e apresentar reconvenção, a qual seria processada pelo rito ordinário. Em qualquer caso, não se admitia a reconvenção em sede de apelação nem perante juízo arbitral.
Quanto às hipóteses de inadmissibilidade da reconvenção, as Ordenações apresentam ligeira divergência. Nas Ordenações Afonsinas, bem como nas Manuelinas, não se admitia a reconvenção em três casos considerados privilegiados: (i) nas ações de esbulho; (ii) nas ações de guarda e codicilo, e (iii) nos feitos criminais. No texto das Ordenações Filipinas, por sua vez, os casos elencados são: (i) ações de restituição da coisa esbulhada; (ii) ações de guarda e depósito, e (iii) acusação de feito crime. Tampouco cabia reconvenção nas causas em que o juiz não tivesse jurisdição para conhecer do litígio, como no caso do Embaixador, que não podia ser demandado enquanto estivesse no exercício do cargo, salvo nos casos em que o juiz tivesse jurisdição para conhecer da ação principal proposta pelo próprio Embaixador.
As Ordenações Afonsinas também são as únicas em que se encontra a regra segundo a qual o réu tem a faculdade de reconvir quando se tratar de acusação criminal, na qual a Justiça deveria agir, ou de ação de reparação de dano. Essa regra foi suprimida nas Ordenações posteriores. Outra regra que aparece apenas nas Ordenações Afonsinas é a que se refere à possibilidade de o leigo reconvir em face de demanda ajuizada por um clérigo perante o juiz leigo, pois nesses casos se entendia que ocorria a prorrogação da jurisdição deste último. O caso é tratado como análogo ao do Embaixador. A disposição reflete o embate, ainda vivo no século XV, acerca da delimitação das jurisdições secular e eclesiástica.
Algumas conclusões podem ser formuladas. Em primeiro lugar, é possível vislumbrar uma forma embrionária de reconvenção já no período do processo formulário romano, na medida em que as partes, em determinados casos e dentro de um âmbito bastante limitado, formular pedidos contrapostos no mesmo processo, desde que houvesse conexão de causas, como ocorria no caso dos iudicia contraria.
A reconvenção propriamente dita, por sua vez, nasce no período da cognição extraordinária com a promulgação, pelo imperador Justiniano, de duas constituições (C. 7, 45, 14 e Nov. 96, 2, 1) que ampliam seu escopo e a tornam autônoma e, sob certas circunstâncias, obrigatória.
A sistematização da reconvenção, bem como o alargamento do seu âmbito de aplicação, coube aos glosadores e aos canonistas medievais, que nela viram um instrumento processual de grande utilidade para a expansão da jurisdição eclesiástica em face da secular, resultando num instituto tipicamente canônico-romano.
As Ordenações Afonsinas recepcionaram o instituto da reconvenção nos moldes em que fora concebido pelo direito romano e sistematizado pelo direito canônico, sendo transplantado, com poucas alterações, ao texto das Ordenações Manuelinas e das Ordenações Filipinas. Foram estas as fontes que serviram de base ao legislador que adaptou a reconvenção ao direito pátrio.
* Acoluna Direito Romano Contemporâneo é produzida pelos professores Bernardo Moraes e Tomás Olcese e por estudiosos convidados, todos interessados no Direito Romano e suas conexões com o Direito Contemporâneo.