“(…) we cannot freely fashion our own existence, including our laws; we always, and necessarily, do it ‘in indissoluble community with the entire past’; and unless we want unconsciously to be governed by the past, we should explore it in order to understand how we got to where we are” (R. Zimmermann, Roman Law, Contemporary Law, European Law: The Civilian Tradition Today. Oxford: Clarendon, 2001, p. 109)
Tema de inegável relevância no direito brasileiro contemporâneo é a posse. É fato notório, acredito eu, que se trata de um instituto profundamente influenciado pelo direito romano. A bem da verdade, a disciplina contemporânea da posse brasileira deve boa parte da sua estrutura conceitual e normativa a duas forças intelectuais que, em muitos aspectos, eram opostas: de um lado, encontra-se a leitura que os pandectistas da Begriffsjurisprudenz, capitaneados por Savigny, fizeram das fontes romanas, em especial do Corpus Iuris Civilis e das Institutas de Gaio; de outro, a interpretação de caráter sociológico e pragmático que a Interessenjurisprudenz, inicialmente encabeçada por Jhering, fez dessas mesmas fontes.
Devemos às fontes romanas e ao embate entre essas duas forças os traços mais característicos que a posse assume no nosso direito. A atual nitidez da distinção entre posse e propriedade deriva do direito romano clássico (Ulp. 69 ad ed., D. 43, 17, 1, 2; Ulp. 70 ad ed., D. 41, 2, 12, 1; Ven. 1 interdict., D. 41, 2, 52 pr.). O requisito de animus domini para caracterizar a posse ad usucapionem constitui uma concessão feita à teoria subjetiva da posse elaborada por Savigny. Nossa conceituação de posse e a distinção entre posse e detenção foram calcados na teoria objetiva de Jhering.
Esses elementos provenientes do direito romano e dos estudos oitocentistas das fontes romanas, entretanto, não foram os únicos a moldar a posse brasileira. O direito intermédio, amiúde esquecido pela literatura civilista nacional, também deixou a sua marca. É o caso, notadamente, da posse de ano e dia, donde provêm as antigas distinções entre posse nova/posse velha, ação de força nova/ação de força velha.
Não faltaram autores que tratassem do tema na literatura acadêmica europeia. Dois que se destacaram, e cujos textos servem de base para esta coluna, são Guilherme Braga da Cruz e Paulo Merêa. Entre nós, José Carlos Moreira Alves também discorreu sobre o tema, com bastante detalhe, em sua clássica obra acerca da posse.
Apesar das dúvidas e debates que ainda pairam, sabe-se que a posse de ano e dia (annus et dies, unus annus et unus dies) aparece no direito peninsular somente no século XI, expande-se ao longo do século XII (por meio da sua incorporação às cartas forais), desvirtua-se no século XIII (devido ao renascimento do direito romano) e, por fim, consolida-se, com feições muito próximas às atuais, no século XIV. É, portanto, um instituto incorporado ao direito foraleiro peninsular pela via legislativa, introduzido por influência do direito franco.
É Braga da Cruz quem nos brinda com uma noção sumária, quase intuitiva, da posse de ano e dia: “Trata-se duma instituição segundo a qual quem possui alguma coisa, pública e pacificamente, durante o prazo de ano e dia, fica colocado, relativamente a essa coisa, perante terceiros, numa posição jurídica privilegiada, posição que, antes do decurso desse prazo, não podia de modo nenhum invocar”.
A manifestação concreta do instituto, contudo, teve várias nuances. Em primeiro lugar, a posse de ano e dia se restringiu, durante todo o período formativo do instituto, aos bens imóveis, pois vigorava a regra que vedava a sequela dos bens móveis, sintetizada nas fórmulas mobilia non habent sequelam do direito peninsular, Hand muss Hand wahren do direito germânico, meubles n’ont pas de suite do direito francês. Além disso, nem todas as cartas forais que previam essa “posição jurídica privilegiada” necessariamente adotaram o prazo de “ano e dia”. Algumas falam de prazo de um ano, outras de três, seis ou até dez anos.
Apesar dessa variabilidade, a verdade é que o prazo de ano e dia se tornou uma espécie de frase de estilo no direito foraleiro. Com efeito, o prazo de ano e dia também chegou a ser adotado para fixar o tempo de residência após o qual o indivíduo passava a ser considerado parte da comunidade municipal, com todos os direitos e deveres inerentes a essa condição. De modo semelhante, houve cartas forais que adotaram o prazo de ano e dia no âmbito dos direitos fiscal, contratual e até familiar.
O debate doutrinário gira, justamente, em torno do efetivo conteúdo dessa “posição jurídica privilegiada”. A esse respeito, a doutrina especializada se divide em quatro grandes vertentes.
A primeira delas, esboçada por Henrique da Gama Barros, qualifica a posse de ano e dia como uma prescrição aquisitiva de domínio, pois paralisava a ação reivindicatória intentada por terceiros. Tratar-se-ia de instituto semelhante à usucapião romana, mediante o qual o possuidor se tornaria efetivo proprietário da coisa. Poucos, hoje, filiam-se a essa opinião.
A segunda, elaborada por Luís Cabral de Moncada, entende que, após o prazo de ano e dia, ocorria uma “prescrição de posse”, isto é, uma consolidação da posição jurídica do possuidor. Rejeita, portanto, que se tratasse de instituto aquisitivo de domínio. Em essência, haveria uma mera inversão do ônus da prova, pois as fontes da época limitam-se a dizer que o possuidor, uma vez escoado o prazo de ano e dia, não tinha o dever de responder (“non respondeat”) para se defender em eventual ação reivindicatória movida pelo proprietário.
Idealizador da terceira vertente, Braga da Cruz salienta o aspecto histórico do instituto, que teria sua origem no direito franco do século IX. Sua função entre os francos teria sido estabilizar a situação precária do possuidor que exercia a posse legítima, de maneira pública, pelo prazo de ano e dia. Decaíam do direito de atacar a posição jurídica do possuidor somente aqueles que, tendo notícia da posse e estando em condições de reclamá-la, não o fizessem no prazo de ano e dia. Logo, incapazes e ausentes ainda podiam contestar a posse, mesmo após o prazo de ano e dia.
O instituto, conta-nos Braga da Cruz, foi “transplantado” (para usar a célebre expressão de Alan Watson) do direito franco ao direito português com essas feições, motivo pelo qual o autor o conceitua como um prazo de caducidade da ação reivindicatória, prazo esse que corre em favor de quem adquiriu a posse legitimamente e a exerce de maneira pública e ininterrupta. A caducidade operava contra os interessados presentes e capazes, poupando os ausentes e os incapazes. Não se tratava, portanto, de modo de aquisição de direito de propriedade (pois carecia de efeitos erga omnes) nem de mero expediente processual (porque seus efeitos se projetavam além do âmbito processual). Seria, isso sim, causa de caducidade da ação de reivindicação, ressalvadas as pessoas ausentes e incapazes.
Pela quarta vertente, Paulo Merêa nos oferece uma opinião fundada na análise do procedimento da “demanda de raiz”, a ação imobiliária, de caráter simultaneamente possessório e petitório, do direito foraleiro entre os séculos XI e XIII. Inexistia, nessa época, a possibilidade de o juiz formar livremente o seu convencimento. A prova era estritamente formal, consistindo em declarações emitidas por testemunhas (“firmas”) que atestavam diretamente a veracidade dos fatos. O possuidor, ao ser demandado, costumava provar a legitimidade da sua posse chamando à autoria o possuidor anterior, que também podia chamar à autoria o possuidor precedente, e assim sucessivamente. Era, justamente, no quesito da distribuição do ônus da prova que a posse de ano e dia adquiria fundamental importância. Consumado o prazo de ano e dia de posse legítima, pública e ininterrupta, bastava ao possuidor, para vencer a demanda, comprovar o decurso do prazo. Em outras palavras, a posse legítima, após um ano e um dia, tornava-se inatacável, colocando o possuidor numa posição jurídica muito próxima (porém não idêntica, pois não projetava efeitos erga omnes) à do proprietário.
É aqui que Paulo Merêa vislumbra uma distinção fundamental entre o direito foraleiro e o direito romano. A essência da reivindicatio romana está no ataque do reivindicante, que tem o ônus de provar o seu título. Na demanda de raiz, por sua vez, o foco recai na defesa do réu, que tem o ônus de demonstrar a origem legítima da sua posse. Nesse contexto, a fluência do prazo de ano e dia colocava o possuidor numa posição jurídica inatacável, na medida em que eliminava a necessidade de provar a origem da posse e obstava qualquer prova referente a um melhor título.
Bastante convincentes, diante da riqueza de fontes apresentadas e da sua detalhada análise, as teses de Braga de Cruz e de Paulo Merêa. E devo admitir que, embora se diferenciem nas particularidades, não me parecem de todo incompatíveis. De fato, é a caducidade da ação reivindicatória que gera a posição jurídica inatacável do possuidor por mais de ano e dia.
Com o renascimento do direito romano no século XIII, que, a pouco e pouco, se infiltra no direito foraleiro, o instituto perdeu muito das suas características originais. Ao tempo das Ordenações portuguesas, sua importância já havia diminuído sensivelmente. A posse de ano e dia, contudo, encontrou sobrevida no Brasil. O Código Civil de 1916 determinava a manutenção sumária do possuidor se a posse fosse de mais de ano e dia, podendo perder a posse pelos meios ordinários apenas (art. 508 do CC/1916). O possuidor de menos de ano e dia não prevalecia contra quem tivesse título de propriedade, nem contra quem tivesse melhor posse (art. 507, caput, do CC/1916), de acordo com a gradação prefixada na codificação civil (art. 507, parágrafo único, do CC/1916). A ação possessória era sumária se intentada dentro do prazo de ano e dia, ordinária se intentada após esse prazo (art. 523, caput, do CC/1916). O Código de Processo Civil de 1973 instituía procedimento especial para a manutenção e reintegração de posse quando a ação fosse intentada dentro de ano e dia da turbação ou esbulho (art. 924 do CPC/1973).
É verdade que o Código Civil de 2002 não reproduziu os dispositivos do Código Civil de 1916 acerca da posse de ano e dia, com a exceção do art. 576 (correspondente, em linhas gerais, ao art. 1.302, caput, do CC/2002), na seção que regula o direito de construir. O atual Código de Processo Civil de 2015, entretanto, manteve a distinção procedimental fundada no escoamento, ou não, do prazo de ano e dia (art. 558 do CPC/2015), muito embora tenha perdido parte da sua relevância devido à generalização da tutela de urgência (art. 300 do CPC/2015).
Diante do atual quadro da nossa legislação, é interessante notar que a posse de ano e dia, com a sua longa e variegada vida, ainda subsiste, justamente, no seio da codificação processual civil. Nesse sentido, não escapou o legislador às forças da história, que parecem ter reconduzido o instituto ao âmbito processual que lhe próprio.