A NATUREZA JURÍDICA DO PROCESSO
I
A ciência jurídica dogmática se estrutura sobre cadeias conceituais. Trata-se de linhas de conceitos entrelaçados uns aos outros. Conceitos mais complexos são redutíveis a conceitos menos complexos. E de conceitos mais simples em conceitos mais simples se chega aos conceitos elementares ou fundamentais. Cada ramo dogmático da ciência jurídica tem sua própria cadeia conceitual e, portanto, seus próprios conceitos fundamentais. Têm conceitos fundamentais, v. g., as dogmáticas financeira [ex.: orçamento], tributária [ex.: fato gerador], econômica [ex.: atividade econômica], penal [ex.: crime], empresarial [ex.: empresa], ambiental [ex.: poluidor-pagador], administrativa [ex.: serviço público], internacional pública [ex.: soberania]. Todavia, é possível sobressaltar esses conceitos fundamentais e alçar conceitos arquifundamentais. A estes se reduzem todos aqueles. Enfim, aos conceitos arquifundamentais convergem todas as cadeias conceituais dos diferentes ramos dogmáticos (o que faz com que a ciência jurídica como um todo seja uma malha de conceitos). Três são basicamente os conceitos arquifundamentais: 1) norma jurídica (NJ), 2) fato jurídico (FJ) e 3) situação jurídica (SJ). Eles são a trindade na multiplicidade. NJ e FJ atam-se pelo fenômeno da incidência; FJ e SJ, pelo fenômeno da irradiação. Nesse sentido, todo conceito dogmático fundamental tem natureza 1) jurídico-normativa [ex.: regra-matriz de incidência tributária; norma penal incriminadora], 2) jurídico-fática [ex.: fato gerador; crime] ou 3) jurídico-situacional [ex.: obrigação tributária; função punitiva]. Essa arquifundamentalidade conceitual trinitária é o objeto da chamada teoria geral do direito (TGD). A supradogmaticidade da TGD fá-la ocupar uma zona intercalar entre a dogmaticidade e a zeteticidade. Isso explica as longas disputas sobre o status epistemológico da TGD, que tem traços menos dogmáticos (conquanto entre os conceitos fundamentais e arquifundamentais haja um continuum) que zetéticos (pois ao redor das noções de NJ, FJ e SJ eclode um grau significativo de especulação problematizadora). De todo modo, para a TGD, os conceitos de NJ, FJ e SJ são fundamentais; para os diversos ramos dogmáticos, são arquifundamentais.
Note-se que se empregou acima o termo natureza. A expressão natureza jurídica significa justamente isso: o conceito jurídico mais simples (redutor) ao qual se converte o conceito jurídico mais complexo (reduzido). Assim sendo, os conceitos de NJ, FJ e SJ não têm natureza jurídica, já que para além deles não há conceitos mais simples. Eles são o nec plus ultra do corpus dogmático-conceitual. São os redutores irredutíveis, os redutores de todos os redutores, a fronteira dogmático-extradogmático. No entanto, a expressão «natureza jurídica» é simplória. Afinal, é preciso saber o ramo do direito a cujo conceito mais simples ou fundamental se está reduzindo o conceito mais complexo. Logo, é mais exato falar-se em natureza jurídico-administrativa [= conceito mais simples ou fundamental reduzente do direito administrativo], natureza jurídico-constitucional [= conceito mais simples ou fundamental reduzente do direito constitucional], natureza jurídico-trabalhista [= conceito mais simples ou fundamental reduzente do direito do trabalho], natureza jurídico-internacional [= conceito mais simples ou fundamental reduzente do direito internacional], natureza jurídico-geral ou simplesmente natureza jurídica- (com hífen sucedido de vazio, sem especificar qualquer ramo dogmático) [= conceito fundamental reduzente da teoria geral do direito]. Daí por que não existe propriamente «a» natureza jurídica de um instituto (no singular), mas as naturezas jurídicas (no plural). Por isso, não sem razão há quem prefira falar em carácteres jurídicos em lugar de «naturezas jurídicas»: o termo natureza transmite a ideia de «essência», «cerne», «âmago sem o qual algo não pode ser o que é»; logo, transmitindo-a, não pode ser usado no plural. Portanto, um instituto terá tantas carácteres jurídicos quantos os ramos dogmáticos para os quais tenha relevância e, assim, a cujas categorias mais simples ou fundamentais seja redutível. Tome-se o instituto da empresa: a sua poliedria sócio-jurídica o faz relevante, e. g., para as dogmáticas constitucional, administrativa, tributária, ambiental, penal, trabalhista e privada, reduzindo-se em cada uma delas aos respectivos conceitos mais simples ou fundamentais (obs.: um instituto jurídico não tem relevância para todos os ramos dogmáticos; por sua vez, para a TGD todo e qualquer instituto jurídico tem relevância, já que todo e qualquer instituto jurídico é redutível ao conceito de NJ, FJ ou SJ). Eventualmente, um instituto faz sentido para apenas um único ramo dogmático; porém, nada impede no tempo que o ordenamento jurídico se expanda, que novos ramos dogmáticos surjam e que aos seus conceitos mais simples ou fundamentais o instituto se torne redutível.
Daí se vê o estado de penúria epistemológica da processualística brasileira, que não raro atribui a determinados institutos a natureza jurídica de «técnica». Aliás, a palavra se transformou em bordão, que, a depender da sisudez do tom, confere cientificidade à fala. Dizem, aqui e ali, que: a) a tutela de evidência [CPC, art. 311] tem «natureza jurídica de técnica distributiva de ônus temporal»; b) a ampliação de colegiado [CPC, art. 942] tem «natureza jurídica de técnica de julgamento»; c) o IRDR [CPC, art. 976] tem «natureza jurídica de técnica de trato de litigância em larga escala». Decerto nem «natureza jurídica» nem «técnica» lhes são noções conhecidas. Sob o ponto de vista dogmático, o termo «técnica» é verdadeiro non sense. Não tem caráter jurídico-normativo. Não tem caráter jurídico-fático. Não tem caráter jurídico-situacional. Não é regra. Não é princípio. Não é elemento de hipótese de incidência normativa. Não é conteúdo nem objeto de situação jurídica. É uma palavra-curinga, que, por tudo designar, nada designa. Não é termo dogmático. Quando muito é termo pragmático. Mais: termo pragmático-acional. Pode significar qualquer procedimento ou método disponível aos agentes jurídicos como meio hábil à consecução de determinado fim, meta, objetivo ou resultado. Nada impede que o processualista, transitando no plano pragmático-acional, teça reflexões zetéticas e, nelas, discuta a tecnicidade dos institutos processuais; porém, é erro epistemológico grave entrecruzar os planos pragmático-acional e dogmático-analítico para migrar estavanadamente noções de um extremo a outro. Não é problema pragmático-acional desvendar a natureza jurídica ou os carácteres jurídicos de um instituto, senão arquitetar meios de agir jurídicos em função de almejados interesses egoístas ou altruístas. Daí por que a palavra técnica faz sentido num contexto, mas não no outro. Na verdade, o linguajar frouxo é patrimônio cultural da processualística brasileira, que se refere ao processo como «instrumento da jurisdição», embora nunca expresse o conceito dogmático de instrumento (se é que isso é possível). Um bastão metálico pode ser instrumento para fixar pregos, golpear pessoas, quebrar vidros, conduzir animais, travar portas, limpar canos, reger orquestras, triturar grãos, socar pólvora; no entanto, nada disso explica o que ele é (no mesmo sentido: SILVEIRA, Marcelo Pichioli e SOUSA, Diego Crevelin. Entre a alma e o corpo… <https://emporiododireito.com.br/leitura/abdpro-65-entre-alma-e-corpo-o-que-diz-o-garantismo-processual-sobre-as-competencias-legislativas-dos-arts-22-i-e-24-xi-crfb>; PEREIRA, Mateus Costa. Processualidade, jurisdicionalidade e procedimentalidade… <https://emporiododireito.com.br/leitura/3-processualidade-jurisdicionalidade-e-procedimentalidade-i-algumas-reflexoes-sobre-as-origens-da-ciencia-processual-e-do-paradigma-instrumentalista>).
A busca pelos carácteres jurídicos tem enorme importância para institutos novos. Como cediço, essa busca consiste numa operação intelectiva de comparação e assemelhação entre os elementos estruturais do novel instituto e os elementos estruturais do instituto preexistente a que se pretende reduzi-lo. Nesse sentido, trata-se de um trabalho analítico de «filogenia ou filogênese jurídica». Contudo, não se trata de um trabalho estritamente taxionômico-classificatório, mas heurístico-pragmático. Afinal, reduzir o conceito de um instituto novo ao conceito de um instituto velho permite revelar o regime jurídico do instituto novo a partir do regime jurídico do instituto velho. Ora, isso otimiza a decidibilidade de conflitos. Daí por que é precioso expediente de economia mental. Lembre-se do exemplo do contrato de arrendamento mercantil [leasing], inserido no Brasil pela Lei 6.099/1974: reduzi-lo aos vetustos conceitos privados da locação e da venda-e-compra permitiu à comunidade jurídica da época desvendar-lhe os princípios e a regras jurídicas não expressas no referido diploma legal. Todavia, mais do que expediente de economia mental, a perquirição do carácter jurídico é fator de sistematização do direito. A inserção do instituto novo numa cadeia conceitual atende – pelo menos – a três valores: i) tradição (o novo se reduz ao velho); ii) simplicidade (o complexo se reduz ao simples); iii) segurança (o desconhecido se reduz ao conhecido). Isso impede que a inserção cause instabilidades, rupturas e descontinuidades. Ou seja, permite que o direito positivo evolua de maneira contínua e sequenciada, absorvendo o impacto das perturbações sistêmicas. Portanto, percebe-se que – operando a ideia de carácter jurídico – a dogmática atua no sistema de direito positivo desde fora [«from outside»; «ab extra»] e desde dentro [«from inside»; «ab intra»]. Atuando desde fora, funciona como uma (α) metalinguagem, i. e., como um discurso descritivo do discurso normativo; atuando desde dentro, funciona como um (β) componente estruturante do sistema, i. e., como um fator de organização do discurso normativo. Em (α), a dogmática parte do confuso emaranhado textual legislativo para edificar um sistema de conceitos; em (β), parte desse sistema de conceitos para estruturar um sistema de normas.
II
Todas essas reflexões são imprescindíveis para se corrigir um dos mais desajeitados capítulos da processualística. Até hoje, os processualistas formulam mal a pergunta e a resposta sobre o processo e a sua «natureza jurídica» [rectius: os seus carácteres jurídicos]. Deixam de identificar os ramos da ciência do direito para os quais o processo é relevante e, em consequência, deixam de reduzi-lo aos conceitos básicos de cada um desses ramos. Indiscutivelmente, o processo é relevante para a dogmática do direito administrativo, pois a Administração Pública não pode privar quem quer que seja «da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal» [CF, art. 5º, LIV]. Logo, nesses casos, a interposição de um processo entre o administrador e o administrado é obrigatória [= devido processo administrativo] e regulada em lei [= processo administrativo legal]. Todavia, houve quem, mirando o processo em juízo [= perante a jurisdição, não perante a administração], tentasse reduzi-lo ao conceito jusadministrativo fundamental de serviço público. Nada mais equivocado. É inegável que o exercício da função jurisdicional configura uma prestação de serviço público. Não sem motivo incide aí taxa de serviço público forense (a chamada «custa judicial» ou «taxa judiciária») (v., p. ex., STF, Pleno, Rp 1077/RJ, rel. Min. Moreira Alves, j. 28/03/1984, RTJ 112/34). No entanto, não se pode confundir a jurisdição com o processo, o contido com o contentor, o fluxo do serviço com o contrafluxo ao desserviço. Processo não é serviço público, posto que haja em razão dele (sublinhe-se: em razão de, não «a prol de», «em benefício de», «favorável a»). É bem verdade que o serviço público forense só se dá no processo, dentro dele, no seu bojo, haja vista que o processo é elo de comunicação obrigatória entre o Estado-jurisdição [= prestador do serviço público forense] e o cidadão-jurisdicionado [= usuário do serviço público forense] (o que mostra que o serviço se destina ao usuário, não ao prestador, e que o processo garante essa específica destinação). Mas daí tomar o fenômeno pelo seu âmbito de manifestação vai enorme distância. Por isso, o processo não é exatamente «o» serviço público forense. De todo modo, esse serviço somente se presta no processo, mediante o processo e à medida que o processo se desenvolve.
A TGD é decerto o campo da ciência do direito em que as disputas sobre o caráter jurídico do processo mais pululam. Como já dito, os conceitos fundamentais da TGD são a norma jurídica, o fato jurídico e a situação jurídica. Mas é fundamentalmente ao redor das noções de fato jurídico e de situação jurídica que gravitam as referidas disputas. Entretanto, as teorias que divisam no processo um caráter jurídico-fático não são incompatíveis com aquelas que nele enxergam um caráter jurídico-situacional. Ao contrário: elas se necessitam mutuamente. Daí por que, ao fim e ao cabo, são apenas a face e a contraface de uma única e mesma teoria. Para que se possa melhor compreender o fenômeno processual à luz da TGD, é preciso compreender-lhe a dinâmica nos três planos do mundo jurídico identificados por PONTES DE MIRANDA. 1) No plano da existência, o processo é anatomicamente corporificado num procedimento, ou seja, num complexo proteico de fatos jurídicos stricto sensu, atos jurídicos stricto sensu, negócios jurídicos e atos-fatos jurídicos, todos eles coordenados entre si sob os pontos de vista lógico, cronológico e teleológico numa sequência rígida preestabelecida; à medida que esses fatos jurídicos lato sensu são praticados validamente, eles transpassam o 2) plano da validade e, adentrando o 3) plano da eficácia, ali constituem, modificam e extinguem situações jurídicas – simples, complexas unilaterais e complexas bilaterais – as mais diversas (qualificações, faculdades, pretensões, imunidades, poderes formativos, deveres, sujeições, ônus, funções etc.). Nota-se, assim, que: a) o procedimento não é redutível a uma única categoria do plano da existência; b) o emaranhado situacional que é irradiado do desenvolvimento procedimental não é redutível a uma única categoria do plano da eficácia, motivo por que não pode ser resumido apenas a uma mera situação jurídica, ou uma relação jurídica; c) posto que no plano da existência se tenha um procedimento, a tradição entende que o processo só se concretiza num procedimento em contraditório [ELIO FAZZALARI]; d) a sequência de fatos jurídicos stricto sensu, atos jurídicos stricto sensu, negócios jurídicos e atos-fatos jurídicos – que define o procedimento – varia geralmente em função das especificidades do ramo do direito material aplicável e dos fundamentos invocados, conquanto possam a Constituição e a lei estabelecer critérios outros; e) por isso, os procedimentos são adjetiváveis em «civil», «penal comum», «penal militar», «eleitoral», «tributário», «trabalhista» etc.; g) os procedimentos são estabelecidos ordinariamente nas leis infraconstitucionais e excepcionalmente na Constituição.
Em contrapartida, até hoje a discussão sobre a natureza ou o caráter constitucional do processo é praticamente inexistente, não obstante a cláusula do devido processo legal remonte à Magna Charta Baronorum de 1215. Ou seja, quase não há ainda estudos sobre a (ir)redutibilidade do processo às categorias fundamentais da dogmática constitucional. Como cediço, a essência ou o dado invariável do fenômeno constitucional é a limitação normativa – negativa e positiva – do poder. Daí o direito constitucional positivo ocupar a zona friccional entre os sistemas jurídico e político. Essa limitação se faz em dois planos: i) horizontal, outorgando-se garantias aos indivíduos (i.i. garantias negativas = posições jurídicas ativas cujo exercício é tendente a refrear o exercício arbitrário ou abusivo do poder; i.ii. garantias positivas = posições jurídicas ativas cujo exercício é tendente a compelir o exercício obrigatório do poder); ii) vertical, mediante a separação de poderes (embora dela também decorram garantias aos indivíduos sempre que sua inobservância lhes atinja a esfera jurídica). Assim, dois são os blocos categoriais fundamentais da ciência constitucional: 1) as instituições de poder; 2) as instituições de garantia. Voltando-se ao poder jurislativo, existem as 2.1) garantias contrajurislativas [ex.: controle abstrato de inconstitucionalidade; mandado de injunção; «limitações constitucionais ao poder de tributar»; «limitações constitucionais ao poder de punir»]; voltando-se ao poder administrativo, existem as 2.2) garantias contra-administrativas [ex.: ação popular; licitação; concurso público; impessoalidade; eficiência; publicidade]; voltando-se ao poder jurisdicional, existem as 2.3) garantias contrajurisdicionais [ex.: contraditório; ampla defesa; advocacia; juiz natural; reclamação às ouvidorias de justiça]. Ora, tendo como lugar de visibilidade o rol dos «direitos e garantias individuais» [CF/1988, art. 5º, LIV], o processo em juízo ostenta o caráter constitucional de garantia de liberdade contrajurisdicional ou pró-jurisdicionado: α) garantia de liberdade [liberdade = freedom = liberdade em sentido ativo = autonomia individual das partes – ex.: possibilidade de as partes aduzirem o material a ser conhecido pelo juiz; possibilidade de as partes contraditarem-se; possibilidade de as partes provarem as suas razões; possibilidade de as partes indagarem às testemunhas; possibilidade de uma parte inquirir a outra; possibilidade de as partes conciliarem-se; possibilidade de as partes recorrerem]; + β) garantia de «liberdade» [«liberdade» = liberty = liberdade em sentido passivo = espaço de não-interferência pelo juiz – ex.: impossibilidade de o próprio juiz aduzir o material a ser por ele conhecido; impossibilidade de o juiz contraditar as partes; impossibilidade de o juiz provar as razões das partes; impossibilidade de o juiz indagar às testemunhas; impossibilidade de o juiz inquirir as partes; impossibilidade de o juiz conciliar as partes, salvo se eleito por elas como conciliador; impossibilidade de o juiz recorrer das próprias decisões] (para um aprofundamento dessa distinção, v. nosso Processo: garantia de liberdade [freedom] e garantia de «liberdade» [liberty]. <https://emporiododireito.com.br/leitura/processo-garantia-de-liberdade-freedom-e-garantia-de-liberdade-liberty>. Essa divisão equilibrada e bem delimitada de tarefas entre os sujeitos do processo proporciona, a um só tempo, a) a preservação da imparcialidade do juiz, b) o resguardo da plena liberdade de debate entre as partes e c) a contenção de eventuais arbítrios, excessos e desvios cometidos pelo juiz (sobre a ideia de divisão equilibrada de tarefas: SOUSA, Diego Crevelin de. O caráter mítico da cooperação processual. <https://emporiododireito.com.br/leitura/abdpro-10-o-carater-mitico-da-cooperacao-processual-por-diego-crevelin-de-sousa>). Frise-se que a garantia do processo – que é «devida» e «legal» – não se adjetiva de «civil», «penal comum», «penal militar», eleitoral», «tributário», «trabalhista» etc.; logo, os ramos do direito material aplicáveis – em função do qual se constroem os diferentes procedimentos [= corpos] – não interfere no caráter garantístico do processo [= alma].
III
Os carácteres jurídico-constitucional e jurídico-geral do processo já permitem que dele se tenha uma visão global e precisa: a garantia do processo se corporifica num procedimento rígido em contraditório, estruturado numa divisão equilibrada e bem delimitada de tarefas entre juiz e partes e funcionalizado a protegê-las do arbítrio, resguardando-lhes um juiz imparcial e a liberdade de debate. Contudo, trata-se de um conceito a posteriori, histórico e jurídico-positivo (não de um conceito a priori, a-histórico e «lógico-jurídico»), que se tece aqui à luz do sistema de direito constitucional positivo brasileiro atual vigente. Distanciando-se desse conceito, as leis infraconstitucionais brasileiras instituem inconstitucionalmente uma sequência pseudoprocedimentalizada de fatos jurídicos stricto sensu, atos jurídicos stricto sensu, negócios jurídicos e atos-fatos jurídicos por trás dos quais se esconde a vontade descontrolada do Estado-juiz. Todavia, eventualmente se pode cogitar de um conceito universal ante-, pré- ou supra-positivo de processo (jusnaturalista, fenomenológica etc.), ou seja, de um conjunto de elementos que habitam a camada ante-, pré– ou supra-legiferada e que, se não estiverem todos presentes, não farão eclodir propriamente um processo genuíno, mas um «não-processo», uma «aparência de processo», um «processo mutilado», um «modo privativo de processo», ainda que a Constituição e a lei o chamem de processo. De qualquer forma, uma coisa é certa: processo não é instrumento da jurisdição; se é um instrumento da jurisdição, então não é um processo.