Como cediço, as medidas provisórias (MP) integram o processo legislativo brasileiro (art. 59 da CRFB/88), e podem ser editadas pelos chefes do Poder Executivo, seja em âmbito federal, estadual ou municipal, desde que em casos de relevância (importância) e urgência (necessidade). Tratam-se, estes dois requisitos, de conceitos jurídicos indeterminados que se sujeitam à discricionariedade desse chefe de poder, sendo que, somente em casos excepcionais, como os de flagrante inconstitucionalidade, poderá haver controle de aferição real de seus preenchimentos por parte do Poder Judiciário.
Embora possuam força legal (art. 62, caput, da CRFB/1988), as medidas provisórias não podem ser confundidas com a lei. Elas são atos normativos com força de lei, mas não lei propriamente dita. Isso porque, apesar da produção de efeitos imediatos após a publicação, a conversão em lei ordinária somente se dá após a aprovação pelo Congresso Nacional, o qual tem o prazo de 60 dias, prorrogáveis por igual período.
Assim, editada uma medida provisória, o seu processo legislativo inaugura as seguintes possibilidades: a) aprovação pelo Congresso Nacional no prazo máximo de 120 dias e conversão em lei ordinária; b) não votação pelo Congresso Nacional no prazo máximo de 120 dias e perda da eficácia por rejeição tácita; c) rejeição pelo Congresso Nacional e consequente perda da eficácia.
Ainda, sobre as medidas provisórias, ressalta-se que, apesar de ser ato privativo do chefe do Poder Executivo, ao Congresso Nacional é permitido fazer modificações em seu texto (art. 62, §12, da CRFB/88).
Apresentado esse rápido panorama, é importante mencionar que houve a edição de um certo número dessa espécie normativa que buscou regulamentar o direito do trabalho nesse período pandêmico causado pela Covid-19 (SAR-Cov2), instituindo o que se convencionou chamar de direito do trabalho emergencial.
Como primeiro marco, em 22 de março de 2020, foi editada a MP 927, que dentre outras disposições para o enfrentamento dos efeitos econômicos decorrentes do estado de calamidade e para a preservação do emprego e renda, tratou do teletrabalho, férias, feriados, banco de horas e diferimento do recolhimento do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço. Ainda, trouxe em seu art. 18 a possibilidade de suspensão do contrato de trabalho sem garantia de remuneração e de renda mínima para o trabalhador; em seu art. 29 o afastamento da COVID-19 como doença ocupacional; e no art. 31 a flexibilização da fiscalização nos ambientes de trabalho. A primeira disposição mencionada foi revogada no dia posterior pela MP 928 e as duas últimas tiveram sua eficácia suspensa pelo julgamento das ADI’s 6342, 6344, 6346, 6352 e 6375, todas do Distrito Federal. No fim, a MP 927 não foi apreciada pelo Congresso Nacional e vigeu apenas até 19/07/2020.
Como segundo marco, menciona-se a MP 936, editada no dia 01/04/2020 e convertida na Lei n. 14.020/2020, instituindo o Programa Emergencial de Manutenção do Emprego e da Renda. Como medidas deste Programa (art. 3º) foram previstos: o pagamento do Benefício Emergencial de Preservação do Emprego e da Renda (BEm); a redução proporcional de jornada de trabalho e de salário de 25%, 50% ou 70%; e a suspensão temporária do contrato de trabalho.
Importante não confundir o BEm com o Auxílio Emergencial. O primeiro, previsto na Lei n. 14.020/2020, é um benefício concedido pelo Governo Federal aos trabalhadores que tiveram redução de jornada e salário ou suspensão temporária do contrato de trabalho, cujo pagamento é feito sob um percentual do seguro-desemprego a que o trabalhador teria direito, caso fosse demitido. O segundo, também pago pelo Governo Federal, foi regulamentado pela Lei n. 13.982/2020 (art. 2º), prevendo o pagamento inicial de R$600,00, por três meses, aos que, cumulativamente, cumprissem determinados requisitos, dentre eles: a maioridade, a inexistência de emprego formal e o não recebimento de benefício previdenciário ou assistencial. Portanto, não só os valores e bases de pagamento são diferentes, mas também os públicos atingidos são distintos.
Sem indicativos científicos do fim da pandemia, houve prorrogações do BEm e do Auxílio Emergencial no ano de 2020 e, ainda, no ano de 2021 tais incentivos continuam sendo pagos. Agora, sob novas regulamentações e valores. O Auxílio Emergencial, neste momento, varia de R$150,00, R$250,00 ou R$375,00 mensais, a depender da condição do beneficiário e o BEm, na data de escrita desta coluna tem o limite máximo de R$ 1.912,00, e está regulamentado pela MP 1045.
É sobre essa MP 1045, do dia 27/04/2021, que se pretende aprofundar o debate. Ela institui o Novo Programa Emergencial de Manutenção do Emprego e da Renda, que diferentemente do primeiro excluí expressamente (artigo 6º, §5º) de seus beneficiários o empregado com contrato de trabalho intermitente a que se refere o art. 443, §3º, da CLT. Agora também, o empregador não precisa recolher a contribuição previdenciária do empregado que tiver seu contrato de trabalho suspenso, pois passa a ser deste a obrigação de contribuir como segurado facultativo.
Além da instituição do Novo Programa, a referida normativa tratou da possibilidade de cancelamento do aviso prévio, de comum acordo entre empregado e empregador; não aplicação do art. 486 da CLT (fato do príncipe) nas hipóteses de paralisação ou suspensão de atividades, por determinação do Poder Público, para enfrentamento da emergência de saúde pública; e suspensão, por 180 dias, dos prazos de defesa e recurso no âmbito de processos administrativos físicos.
Durante sua tramitação no Congresso, conforme procedimentos já mencionados, tal MP foi alvo de abruptas modificações (mais de 400 emendas foram propostas), o que tem gerado debates e celeumas no meio jurídico.
Dentre outras emendas, acatadas pelo Deputado Christiano Áureo do PP-RJ, relator final[1] da MP 1045, que representam retiradas protecionistas trabalhistas, notadamente àqueles que, neste momento, encontram dificuldade de inserção no mercado de trabalho, cita-se a criação de uma forma serviçal sem direitos trabalhistas, por meio do Regime Especial de Trabalho Incentivado (Requip).
Tal programa, marcado pela prestação de serviços, mediante a celebração de um Termo de Compromisso de Inclusão Produtiva (CIP), abrange aqueles que há mais de dois anos não possuem vínculo com a Previdência Social, trabalhadores de baixa renda beneficiados com programas federais de transferência de renda e jovens entre 18 e 29 anos de idade. A remuneração pelo trabalho prestado poderá ser feita por Bônus de Inclusão Produtiva (BIP), que posteriormente poderá ser deduzido das contribuições sociais devidas ao Sistema S, e da Bolsa de Incentivo à Qualificação (BIQ). A jornada máxima permitida pelo programa é de 22 horas semanais, caso em que o beneficiário receberá R$275,00 como BIP e, ao menos, R$275,00, a título de BIQ, totalizando R$ 550,00 mensais.
Essa permissão de celebração de contratos civis, sem quaisquer garantias trabalhistas e previdenciárias, acentuam a exploração vivida no momento pandêmico (em verdade, desde a edição da Lei n. 13.467/2017) pela classe trabalhadora.
Ainda, a MP 1045, após alterações, passou a prever a redução do pagamento de horas extras para trabalhadores com jornadas reduzidas, como jornalistas e bancários. Hoje, o percentual de pagamento é de, no mínimo 50% e o estabelecimento é para que seja de apenas 20%. Não bastasse a possibilidade de redução, é possível que isso seja acordado de modo individual, sem qualquer negociação coletiva.
De fato, percebe-se uma atuação política em detrimento do direito do trabalho. Em novembro de 2019, tentou-se instituir, por meio da MP 905 o denominado Contrato de Trabalho Verde e Amarelo, modalidade de contratação destinada à criação de novos postos de trabalho para as pessoas entre 18 e 29 anos de idade, para fins de registro do primeiro emprego. Tal MP foi revogada por uma nova MP, a 955, de 20 de abril de 2020. Agora, com a MP 1045 cria-se o Programa Primeira Oportunidade e Reinserção no Emprego (Priore), com pontos comuns aos previstos no Contrato de Trabalho Verde e Amarelo. Por isso, a afirmação de que se trata de “novo programa” com conhecidas roupagens.
O Priore é destinado a jovens de 18 a 29 anos de idade em busca do primeiro emprego e a pessoas com 55 anos ou mais de idade, sem vínculo formal por mais de um ano. O prazo máximo de duração prevista para a vigência do programa são 36 meses, contados a partir da vigência da lei resultante da conversão. A contratação de trabalhadores poderá ser por até 24 meses e deverá ser realizada exclusivamente para novos postos de trabalho, com restrição de 25% do total de empregados das empresas, exceto no caso de empresas com até 10 empregados, que poderão ter apenas 3 empregados pelo programa. O Fundo de Garantia do Tempo de Serviço será variável, conforme a classificação da empresa, sendo de 2% para microempresas, 4% para empresas de pequeno porte e 6% para as demais empresas.
Por fim, como terceiro programa previsto na MP 1045 tem-se o Programa Nacional de Prestação de Serviço Social Voluntário, que oferecerá oportunidades para o desenvolvimento de atividades de interesse público, em bastante semelhança ao Requip, para pessoas entre 18 e 29 anos de idade e superior a 50 anos de idade. A adesão a esse programa será voluntária pelos Municípios, mediante celebração de instrumento de parceria. Tais entes terão competência para regulamentar o valor da contraprestação mensal, que não poderá ser inferior ao valor do salário-hora.
Outra emenda na MP 1045 foi a previsão da dupla visita por parte dos auditores-fiscais do trabalho, inclusive em hipóteses de graves violações a direitos fundamentais, como infrações às normas de saúde e segurança no trabalho. Tenta-se reduzir as fiscalizações no meio ambiente de trabalho a meras orientações. Ademais, há a previsão de que os recursos dos empregadores contra os autos de infrações aplicados sejam julgados por uma comissão composta, dentre outros membros, com integrantes das empresas infratoras. Talvez a pretensão seja criar o autojulgamento, cujos resultados podem ser imaginados.
Ressalta-se, mais uma vez, que a MP 1045 foi elaborada para tratar do novo BEm. No entanto, em razão de inúmeras emendas parlamentares pode ser cunhada com uma nova Reforma Trabalhista. Isso porque também inova na duração do trabalho em minas de subsolo; nos prêmios concedidos pelo empregador; na homologação de acordo extrajudicial; nos critérios para a concessão do benefício de justiça gratuita; no exame pericial em ações previdenciárias; e nos programas de alimentação do trabalhador. Não bastasse tudo isso, há proposições sobre Juizados Especiais Cíveis e Criminais e até modificações no Código de Processo Civil, em clara afronta ao disposto no art. 62, §7º, inciso I, b, da CRFB/88.
A essas situações, como as expostas acima, de alterações legislativas estranhas ao assunto primordial do texto, como no caso da MP 1045, editada para autorizar a suspensão de contratos e redução da jornada de trabalho com a consequente redução salarial, denomina-se popularmente de “jabutis”, “contrabando legislativo”, “rabilongos” e outras tantas nomenclaturas possíveis.
São as famosas emendas aversas à temática principal, em momentos oportunos e convenientemente escolhidos para que sejam implementadas. Trata-se de estratégia totalmente ofensiva à higidez do processo legislativo. Inclusive, o Supremo Tribunal Federal (STF), em 2015, manifestou pela proibição e inconstitucionalidade de inserção de “emendas jabutis”, quando do julgamento da ADI n. 5.127, por violação ao devido processo legislativo e ao princípio da Democracia. Afinal, não se pode valer de um rito de tramitação sumária para apreciar temas que deveriam ser propostos pela tramitação ordinária.
A MP 1045 precisa ter sua votação concluída pelo Congresso Nacional até o próximo dia 09 de setembro para que não perca sua eficácia. Por enquanto, já foi aprovado pela Câmara dos Deputados (12/08/2021)[2], mas ainda é necessária a aprovação pelo Senado Federal e, posteriormente, a sanção do Presidente.
Ao constatar todo esse arcabouço normativo editado, concordamos com a preocupação explanada pelos autores Gabriela Neves Delgado e Helder Amorim dos Santos acerca do perigo da naturalização da legislação trabalhistas de emergência na pandemia[3]. Reconhecemos o estado de exceção que o mundo vive, mas alternativas adotadas em determinados contextos, como o atual, não podem ser normalizadas como padrão para o futuro, ainda mais em detrimento de direitos sociais já desmantelados e pouco efetivados. Assim, a previsão na MP 1045 de que após o período de emergência de saúde pública decorrente do coronavírus, será possível a manutenção da extensão da duração do trabalho de atividades com jornadas diferenciadas, mediante o pagamento do adicional de 20% pelas horas adicionais, já representa uma concretização da preocupação explanada: a naturalização do emergencial.
Nesses moldes, são violentamente ultimados os direitos sociais e a busca do efetivo respeito à dignidade da pessoa. Espera-se que as reivindicações dos sindicatos, auditores fiscais do trabalho, magistrados e membros do Ministério Público do Trabalho, bem como de toda a sociedade civil e classe trabalhadora, que se revoltam com tais táticas, sejam considerados pelos constituintes eleitos, quando da análise das novas proposições aviltantes e em clara inconstitucionalidade por afronta à isonomia, à imperatividade do art. 7º, à segurança jurídica (pela notória tentativa de retorno a legislações já revogadas) e a tantas outras disposições constitucionais.
Repele-se todas essas alterações degradantes, que se afastam da promoção do trabalho decente e precarizam as contratações, restringem a atuação sindical e punem empregados, empregos e direitos trabalhistas em meio a uma crise generalizada oriunda da pandemia, momento em que estão mais vulneráveis e deveriam ser protegidos.
[1] Recomenda-se a leitura do relatório final da MP 1045. Disponível: https://www.congressonacional.leg.br/materias/medidas-provisorias/-/mpv/148214. Acesso em 15 de ago. 2021.
[2] Notícia disponível em: https://www.camara.leg.br/noticias/793435-camara-aprova-mp-que-altera-regras-trabalhistas-e-renova-programa-de-reducao-de-jornada/. Acesso em 15 de ago. 2021.
[3] DELGADO, Gabriela Neves; AMORIM, Helder Santos. O perigo de naturalização da legislação trabalhista de emergência na pandemia. Site Jota. Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/o-perigo-de-naturalizacao-da-legislacao-trabalhista-de-emergencia-na-pandemia-06072020. Acesso em 15 de ago. 2021.
Ótimo texto!