Um dos temas que tem ganhado cada vez mais relevância nos debates doutrinários nacionais é a (falta de) efetividade na proteção e reparação de acionistas minoritários e investidores, de um modo geral, de companhias brasileiras de capital aberto.
Nesse sentido, a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) organizou um grupo de trabalho para desenvolver um estudo comparado a respeito da proteção e reparação do direito de minoritários em nove países – dentre eles, o Brasil –, e divulgou, em novembro de 2020, um relatório a esse respeito, com indicações de possíveis melhorias na proteção dos interesses dos minoritários no Brasil.[1]
De forma geral, o relatório chegou a conclusões e propostas no sentido de eliminar algumas barreiras legais que, à luz do direito comparado, atrapalham o enforcement do direito dos investidores, como, por exemplo, (i) a necessidade de criação de melhores critérios para definir a legitimidade de acionistas para a propositura da ação reparatória prevista no art. 159, § 5º, da Lei das Sociedades Anônimas (Lei nº 6.404/76 ou “LSA”) que não seja exclusivamente o percentual absoluto de participação societária; ou, ainda, (ii) o incentivo à criação de mecanismos no Brasil como o discovery norte-americano, a fim de compensar a assimetria informacional existente entre acionistas minoritários e administradores, ou minoritários e controladores; ou, ainda, (iii) a diminuição ou regulamentação da confidencialidade em arbitragens individuais ou coletivas que envolvam companhias abertas e, portanto, também um grande número de interessados.[2]
Importante salientar que esses são apenas exemplos pinçados de um longo relatório e de uma extensa lista de recomendações.
Em meio a esse cenário de debate da proteção dos minoritários no país está o problema da falta de engajamento dos acionistas, que, ao lado da assimetria informacional inerente ao mercado de capitais, representam grandes obstáculos à efetivação de seus direitos frente a eventuais abusos da companhia, de seus administradores ou controladores.
No ponto, bem explicam Renier Kraakman e outros que “os custos de coordenação entre os representados exacerbam os problemas de agência”[3]. É dizer, a existência de um grande número de acionistas, dispersos, com origens e interesses distintos, dificulta imensamente a reunião deles em torno de propostas comuns, como, por exemplo, o incentivo e a adesão à formulação de questionamentos judiciais ou arbitrais de ilícitos eventualmente cometidos pela companhia, por seus administradores ou controladores.
No âmbito das sociedades anônimas de capital aberto, há uma dificuldade extrema de organização dos minoritários em torno de determinadas demandas e parte desse desafio está até mesmo relacionado à dificuldade em se descobrir a identidade uns dos outros. Isso porque, vale lembrar, nas companhias abertas não são conhecidos os titulares das suas ações, salvo por aqueles que participam ou participaram de determinadas assembleias da companhia e que acabam sendo registrados em atas e boletins de subscrição posteriormente levados a arquivamento.
Nesse diapasão, parece pouco provável que minoritários conseguiriam se engajar e se reunir em número suficiente para, na velocidade e na frequência necessárias, atingir o quórum legal para a propositura de ação uti universi contra o controlador prevista no art. 159, §5º, da LSA, por exemplo.
É em casos como esses, portanto, que se mostra crucial a busca pela lista completa de acionistas da companhia que é autorizada pelo art. 100, § 1º, da LSA.
Segundo referido artigo legal, qualquer pessoa pode requerer à companhia o acesso aos livros de registro e transferências de ações e de registro e transferências de partes beneficiárias, desde que o requerimento seja fundamentado na “defesa de direitos e esclarecimento de situações de interesse pessoal ou dos acionistas ou do mercado de valores mobiliários” (art. 100, § 1º, da LSA).
Em outras palavras, pode o acionista ou qualquer pessoa[4] solicitar diretamente à companhia acesso à sua lista de acionistas, desde que apresente justificativa para tanto nos termos da lei. Tal justificativa não é outra senão a exposição sumária e coerente do direito cuja defesa se persegue e a demonstração perfunctória da necessidade de exibição dos assentos para atingir o fim pretendido. Cuida-se de motivação simples, exigida apenas para evitar o abuso da prerrogativa inserta no art. 100, §1º da LSA – e.g. utilização das informações para obter vantagem negocial ou corporativa sobre a companhia –, que não retira dos livros e de seus registros o caráter notadamente público[5].
De fato, a regra geral no âmbito das companhias abertas e do mercado de capitais é a transparência e, por isso mesmo, o destinatário do requerimento – a companhia –, uma vez declinada justificativa minimamente plausível para sua formulação, não pode perquirir a respeito, examiná-la ou julgar a sua pertinência, com intuito de sonegar aos interessados a certidão requerida. Confira-se, nesse sentido, importantes precedentes da Comissão de Valores Mobiliários (CVM):
“Assim, se por um lado o requerente não pode fazer pedidos genéricos descolados dos critérios acima, por outro lado, a companhia não pode obstar o acesso legítimo às certidões quando cumpridos os requisitos da norma, tampouco arvorar-se na condição de intérprete da legitimidade ou do mérito das justificativas apresentadas”. (CVM, Processo Administrativo nº 0319316/2017, Dir. Rel. Henrique Balduino Machado Moreira, p. 3).
“Em definitivo, parece-me que, à luz do disposto no art. 100, §1º, a entrega da relação de acionistas, com a indicação da participação de cada um no capital social, justifica-se sempre que algum acionista esteja atuando na defesa de um direito que seja inerente ao status socii e, por isso mesmo, de interesse de todos os acionistas. Como se já se observou a respeito, ‘o fornecimento da lista integral dos acionistas nos casos em que o direito violado ou em vias de ser violado é inerente à qualidade de acionista constitui medida de promoção do acesso à Justiça, mostrando-se, por isso mesmo, necessária à ‘defesa de direitos’, a que alude o art. 100, §1º. Com maior razão, a entrega da lista impõe-se quando a defesa do direito exigir o preenchimento de quórum mínimo estabelecido na lei ou no estatuto”. (CVM, Processo Administrativo nº SP2016/0174, Dir. Rel. Henrique Balduino Machado Moreira, p. 6).
Ainda que assim seja, o que se vê, na prática, é bem diferente. As companhias, de um modo geral e sem qualquer fundamentação plausível, negam sumariamente os requerimentos que recebem e, assim, relegam os interessados a uma via crucis antes de conseguir acessar as informações que lhe são de direito.
De início, são obrigados a apresentar recurso à CVM, nos termos do próprio art. 100, § 1º, da LSA, notadamente à Superintendência de Supervisão de Investidores Institucionais (art. 16 do Anexo I do Decreto nº 6.382/2008), para demonstrar a ilegalidade do indeferimento sofrido no âmbito interno da companhia.
Na sequência, caso fracassado o recurso à CVM, são ainda os interessados obrigados a acionar o Poder Judiciário, às suas próprias expensas e riscos, e isso quando não há cláusula compromissória arbitral no Estatuto Social da companhia, a obrigar os interessados a iniciar um procedimento arbitral.
Tudo isso, vale lembrar, apenas e exclusivamente para acessar uma lista de acionistas que, em tese, possibilitaria a estes uma chance de mobilização dos interessados para exercer seu direito de enforcement. Em muitos casos, a briga é tamanha apenas para que se tenha acesso aos livros da companhia que ações judiciais ou procedimentos arbitrais se tornam inviáveis pelo simples transcurso do prazo decadencial ou prescricional para tanto.
Daí porque entendemos que não só está a companhia evidentemente obrigada a fornecer os livros solicitados e a oferecer a menor resistência possível aos requerimentos formulados nesse sentido, desde que minimamente fundamentados, nos termos do art. 100, § 1º, da LSA, como também, para além de recorrer à CVM, poderiam os acionistas cogitar responsabilizar a companhia por eventuais danos sofridos com a sua negativa ilegal ao requerimento apresentado, em especial quando a demora a que são submetidos impede os acionistas de exercer o seu direito de ação em face da própria companhia, de seus administradores ou controladores.
Para além de todos os problemas já relatados pela OCDE[6], o desafio ora narrado é, sem sombra de dúvidas, mais um grande obstáculo a que são e serão submetidos os investidores no Brasil na busca pela real efetivação de seus direitos.
[1] Disponível em: https://www.oecd.org/corporate/shareholder-rights-brazil.htm, acesso em 14/01/2022.
[2] OCDE (2020). Private Enforcemente of Shareholders Rights a comparison of selected jurisdictions and policy alternatives for Brazil. Disponível em https://www.oecd.org/corporate/shareholder-rights-brazil.htm, pp. 122, 124 e 131 e ss., acesso em 14/01/2022.
[3] KRAAKMAN, Reinier et al. Anatomia do Direito Societário: uma abordagem comparada e funcional. São Paulo: Editora Singular, 2018, trad. Mariana Pargendler, p. 80.
[4] Uma vez atendido o requisito da justificação do requerimento formulado, não se descarta que associações de investidores ou mesmo o Ministério Público possam realizar tais solicitações, eis que a lei não faz qualquer limitação ou distinção quanto às qualidades pessoais dos requerentes – falando, expressamente, em “qualquer pessoa”.
[5] Comissão de Valores Mobiliários (CVM), Processo Administrativo nº SP 2015/0208, Dir. Rel. Henrique Balduino Machado Moreira, p. 2
[6] OCDE (2020). Private Enforcemente of Shareholders Rights a comparison of selected jurisdictions and policy alternatives for Brazil. Disponível em https://www.oecd.org/corporate/shareholder-rights-brazil.htm, acesso em 14/01/2022.