No dia 17 de março de 2023 o Tribunal Penal Internacional, através de sua segunda Câmara de pré-julgamento, emitiu um mandado de prisão em desfavor de Vladimir Vladimirovich Putin e Maria Alekseyevna Lvova-Belova em decorrência de terem, supostamente, incorrido nos crimes de deportação e transferência ilegal de populações em território ucraniano[1]. Com isso, a atuação do tribunal atinge, potencialmente, seu ápice.
Esbarrando em problemas fáticos para se estruturar, o Tribunal Penal Internacional, para além da emissão do referido mandado, está fadado a esperar a atuação de algum dos países signatários do Tratado de Roma para cumprir tal medida uma vez que o tribunal em si não possui mecanismos de aplicação, consequentemente, não consegue agir, na prática, de forma independente[2].
A razão de tal inanição reside nos malabarismos que foram realizados na gênese do tribunal em questão. Visando a ampla adesão da comunidade internacional para a prevenção de crimes de genocídio, contra a humanidade, de guerra e de agressão os países responsáveis pela criação do tribunal encontraram um grande obstáculo político quando propuseram sua ampla competência de julgamento: a recusa da adesão por parte dos Estados Unidos[3].
Se bem analisado, o Estados Unidos constitui um verdadeiro atuante internacional e uma das principais razões para tanto é o seu poderio militar e econômico. Quando esboçando o Estatuto de Roma, os países reconheceram essa condição e para garantir a atuação efetiva do tribunal a necessidade de uma atividade quase que ostensiva seria indispensável. Essa tarefa, ainda que indiretamente, caberia aos Estados Unidos.
Dessa forma, o tratado foi elaborado de forma a “convidar” a participação estado-unidense o que também veio a mitigar, e muito, a própria atuação pretendida. Quando a competência do Tribunal Penal Internacional foi delimitada ao (i) cometimento de crimes por nacionais de países signatários e a (ii) crimes cometidos em território de países signatários[4], levando em consideração que a pretensão inicial era de erradicar violações de direitos humanos no tema em questão, restringe dramaticamente seu campo de atuação e não apenas falha em atrair os Estados Unidos como também não resolve a impossibilidade de julgar Putin e Maria Alekseyevna enquanto eles estiverem em território russo.
Muito embora a competência do tribunal tenha sido, tecnicamente, verificada quando o tipo previsto no artigo 8º, alínea a, incisos VII e VIII ocorreu em território ucraniano e o Procurador do tribunal, conforme previsto no Estatuto, tenha apresentado indícios quanto a ocorrência dos mencionados crimes para a Corte, a Rússia não é signatária do Estatuto de Roma, portanto, em seu território, nada pode o tribunal fazer. Não obstante, o Estados Unidos que potencialmente poderia atuar para, eventualmente, garantir o cumprimento do mandado emitido, não parece ter muito interesse em se mover sob pena de possivelmente incorrer, de alguma forma, na hipótese de competência (ii) elencada acima.
No fim, o Tribunal Penal Internacional é “perverso” ao condicionar sua atuação para terceiros e em especial, os Estados Unidos, visto que nada ele pode fazer para levar eventuais violadores de direitos humanos para suas instalações, assim como provoca receio nessa mesma atuação ao possibilitar o reconhecimento de competência temporária nos termos do artigo 12º, 3[5].
O que gera então, em termos consequenciais, a emissão deste mandado de prisão e desfavor dos supramencionados políticos russos? Parece que essa atuação constitui uma tentativa de respiro imersa em uma boa dose de simbolismo. Embora muitos países tenham reconhecido sua competência e aderido ao Estatuto de Roma, é tortuoso o caminho argumentativo para reconhecer os grandes feitos decorrentes desta confluência, em grande parte, moral. Os efeitos práticos e políticos do tribunal em si são mínimos e poderiam ter sido alcançados sem a sua existência, vide o julgamento de Slobodan Milošević na Iugoslávia. Essa condição catatônica do tribunal, atualmente, levanta calorosas discussões sobre a criação de um tribunal de ocasião para julgar os russos responsáveis pelos crimes citados anteriormente[6].
As dúvidas quanto à atuação deste órgão judicante internacional continuarão a pairar por um bom tempo e, levando em consideração a agenda política mundial, o próximo evento que pode vir a demonstrar o quanto os países signatários estão dispostos a cumprir suas obrigações decorrentes do Estatuto de Roma, bem como a depositar sua fé, por assim dizer, na atuação do Tribunal Penal Internacional, é a reunião dos BRICS que deve acontecer em agosto de 2023, onde é esperada a participação do líder russo, como aconteceu nas últimas edições[7].
A questão fica ainda mais nebulosa quando se sabe que a África do Sul, local em que a reunião deve ocorrer, é signatária do Estatuto de Roma, inclusive, reconhecendo suas responsabilidades em função disso, mas ao mesmo tempo não se manifestando quanto aos fatos ocorridos na Ucrania. É dificultoso o exercício de elaborar possíveis desfechos para tal encontro, contudo, é altamente possível que o simples seja o mais provável: a ausência do líder russo.
Portanto, de forma nada surpreendente, o Tribunal Penal Internacional continua tendo que se debruçar mais sobre si mesmo enquanto instituição capaz de exercer as atividades que se propõe do que efetivamente exercendo-as, o quê, por sua vez, abre espaço para discutir questões das mais diversas sobre como resolver a situação de conflito no território ucraniano, assim como maneiras de responsabilizar os líderes políticos, ainda que através de eventual tribunal de ocasião.
[1] Situation in Ukraine: ICC judges issue arrest warrants against Vladimir Vladimirovich Putin and Maria Alekseyevna Lvova-Belova. International Criminal Court. 2023. Disponível em: https://www.icc-cpi.int/news/situation-ukraine-icc-judges-issue-arrest-warrants-against-vladimir-vladimirovich-putin-and
[2] GOLDSMITH, Jack. The Self-Defeating International Criminal Court. The University of Chicago Law Review. p.89–104. 2003
[3] Ibid.
[4] Rome Statute of the International Criminal Court. 1 julho 2002. https://www.ohchr.org/en/instruments-mechanisms/instruments/rome-statute-international-criminal-court. Acesso em: 7 abril 2023.
[5] GOLDSMITH, Jack. The Self-Defeating International Criminal Court. The University of Chicago Law Review. p.89–104. 2003
[6] With ICC warrant, Putin has officially become a political pariah. Le Monde. 2023. Disponível em: https://www.lemonde.fr/en/opinion/article/2023/03/20/with-icc-warrant-putin-has-officially-become-a-political-pariah_6020025_23.html.
[7] South Africa aware of legal obligations regarding Putin visit. Reuters. 2023. Disponível em: https://www.reuters.com/world/africa/south-africa-aware-legal-obligations-regarding-putin-visit-2023-03-19/.