Ao Glauco Gumerato Ramos
I
Reforçar a imparcialidade judicial é o fundamento do «juiz de garantias» [CPP, art. 3º-B, introduzido pela Lei 13.964/2019]. Reforçar não é criar algo, mas intensificar algo que já é. E sempre houve a) o dever judicial de imparcialidade (imputável ao juiz para que seja isento no processar e no julgar) e, correlatamente, b) o dever de imparcialidade judicial (imputável ao legislador para que estabeleça condições institucionais que garantam um processar e um julgar isentos). O juiz cumpre o dever (a), por exemplo, quando, assumindo-se impedido ou suspeito, ordena a remessa imediata dos autos ao seu substituto legal. Já o legislador cumpre o dever (b), por exemplo, quando cria lei que impede o juiz da investigação criminal – contaminado por prisões e provas sobre as quais decidiu – de instruir e julgar. De fato, existe o risco de que a comparticipação do juiz na formação da opinio delicti o incline a ratificar essa impressão inicial e, por conseguinte, a proferir sentença condenatória. Isso porque, muitas vezes, ele antecipa juízos sobre o cometimento do crime [fumus commissi delicti] e sobre a periculosidade do investigado [periculum libertatis] e, com isso, tende a confirmar esses juízos preliminares (sobre o viés de confirmação, v., e. g., nosso Levando a imparcialidade a sério. Salvador: Juspodivm, 2018, p. 156 et seqs.). Daí a necessidade de reinforcement à imparcialidade judicial destacando-se o juiz-da-investigação do juiz-do-processo.
Todavia, não se pode olvidar que no Brasil da mesma forma sempre houve a) o dever ministerial de imparcialidade (imputável ao promotor para que acuse de maneira isenta) e, portanto, b) o dever de imparcialidade ministerial (imputável ao legislador para que estabeleça condições institucionais que garantam uma acusação isenta). Logo, se é preciso separar o juiz-do-inquérito do juiz-do-processo, igualmente é preciso separar o promotor-da-investigação do promotor-da-acusação. Enfim, é preciso que o legislador reforce a imparcialidade ministerial instituindo o «promotor de garantias» (o que também foi defendido pelo Desembargador Federal do TRF da 3ª Região PAULO GUSTAVO GUEDES FONTES em recente entrevista ao Conjur: <https://www.conjur.com.br/2020-jan-19/entrevista-paulo-fontes-desembargador-trf>). Tanto o juiz quanto o promotor devem estar desenviesados ao fim da instrução criminal: o primeiro, para eventualmente absolver; o segundo, para eventualmente pedir a absolvição do acusado e recorrer em favor dele (cf., p. ex., CPPM, art. 54, parágrafo único: «A função de órgão de acusação não impede o Ministério Público de opinar pela absolvição do acusado, quando entender que, para aquêle efeito, existem fundadas razões de fato ou de direito»). Entretanto, também no âmbito extrapenal se deve separar o promotor-do-inquérito-civil do promotor-da-ação-civil-pública: o MP deve estar desenviesado para ocasionalmente pedir in fine o julgamento de improcedência da própria demanda que propôs e recorrer em favor do demandado (possibilidade admitida, v. g., por: VITORELLI, Edilson. Novo CPC comentado. t. I. Coord. Sérgio L. A. Ribeiro. SP: Lualri, 2017, p. 273). É nessa imparcialidade – exigida do MP tanto no penal quanto no civil – que reside o fundamento para «sentar-se no mesmo plano e imediatamente à direita dos juízes singulares ou presidentes dos órgãos judiciários perante os quais oficiem» [LC 75/1993, art. 18, I, a; sentido similar: Lei 8.625/1993, art. 41, XI]. Não é mero melindre institucional, nem excentricidade topológica.
II
A imparcialidade do Ministério Público é princípio implícito, que transpassa várias regras do direito positivo brasileiro vigente atual. Para desempenhar com independência e, portanto, com imparcialidade o seu mister, o promotor necessita das garantias da vitaliciedade, da inamovibilidade e da irredutibilidade de subsídios [CF/1988, art. 128, § 5º, I; LC 75/1993, art. 17; Lei 8.625/1993, art. 38]. Ademais, a ele estão vedados: a) o recebimento, a qualquer título e sob qualquer pretexto, de honorários, percentagens ou custas processuais; b) o exercício da advocacia; c) a participação em sociedade comercial, na forma da lei; d) o exercício, ainda que em disponibilidade, de qualquer outra função pública, salvo uma de magistério; e) o exercício atividade político-partidária; f) o recebimento, a qualquer título ou pretexto, de auxílios ou contribuições de pessoas físicas, entidades públicas ou privadas, ressalvadas as exceções previstas em lei [CF/1988, art. 128, § 5º, II; LC 75/1993, art. 237, III].
Por fim, deve ele: i) não ter interesse jurídico, moral ou econômico no desfecho da causa; ii) não ter conexão de afeição, aversão ou envolvimento profissional com qualquer dos sujeitos do processo (ascendente, descendente, cônjuge, companheiro, noivo, namorado, amigo íntimo, inimigo, sócio etc.); iii) lutar contra predisposição, preferência, antipatia ou preconceito que nutra por qualquer dos sujeitos do processo em razão de raça, cor, religião, idade, sexo, orientação sexual, estado civil, ideologia política, status socioeconômico, grau de escolaridade etc.; iv) não externar em público predisposição, preferência, antipatia ou preconceito por qualquer dos sujeitos do processo; v) não sofrer interferências nem pressão interna ou externa, direta ou indireta, de ordem política ou técnica, para beneficiar ou prejudicar qualquer dos sujeitos do processo; vi) ser incorruptível e aparentar em sua conduta pública essa incorruptibilidade; vii) tratar os sujeitos do processo com urbanidade e lhaneza, evitando atritos que o indisponham contra eles; viii) integrar órgão com atribuição definida em lei ante factum por critérios impessoais e objetivos, impedindo-se nomeações ad hoc (que é a garantia implícita do promotor natural, reconhecida em várias decisões do STF – cf., p. ex., Pleno, ADI 2874/GO, rel. Ministro Marco Aurélio, j. 28/08/2003); ix) ser substituído por iniciativa sua ou a pedido do interessado caso não queira, não possa ou não consiga atender às exigências anteriores. Não sem razão os motivos de impedimento e suspeição se estendem ao membro do Ministério Público [CPP, art. 112; CPC, art. 148, I]. Tudo isso vai ao encontro das Normas de responsabilidade profissional e declaração de direitos e deveres fundamentais dos promotores, da Associação Internacional dos Promotores, item 3.a: «Los fiscales desempeñarán sus funciones sin temor, favoritismo ni prejuicios. En particular los fiscales deberán desempeñar sus funciones de manera imparcial». <https://www.iap-association.org/getattachment/Spanish/Resources-Documentation/IAP-Standards/UN-Resolution/RESOLUCION_ONU_2008.pdf.aspx>). V., ainda: LC 75/1993, art. 239; CPC, art. 148, I; CPP, art. 112; CPPM, artigos 57 a 59] (para um aprofundamento sobre a imparcialidade do promotor, v. nosso O fundamento do Ministério Público. <https://emporiododireito.com.br/leitura/4-o-fundamento-do-ministerio-publico>).
III
É impossível, porém, ser absolutamente imparcial. No final das contas, é difícil suplantar os caprichos presunçosos do ego, seja o ego superficial inteligível, seja principalmente o ego profundo, indômito às prescrições disciplinares do pensamento metódico. Além disso, é impossível subjugar plenamente o conjunto dos arcabouços pré-compreensivos (convicções próprias, preferências individuais, impulsos, intuições, desejos, medos, iras, aflições, sentimentos, opinião pública, pressão social, preconceitos de classe, crenças religiosas, ideologia político-social, senso de moralidade, propensões teórico-científicas, interesses pessoais corporativos, palpites etc). Daí por que a imparcialidade é o resultado de um embate, de um empenho, de uma tentativa, de uma façanha, de um esforço [gr.: προσπάθεια; lat.: conatus; al.: Bemühung; ing.: effort; fr.: effort; it.: sforzo; esp.: esfuerzo]. Ela decorre de um esforço de objetivação e, portanto, por objetividade. Nesse sentido, imparcialidade é o grau de objetividade com a qual atua o sujeito. Não se trata de uma «virtude», nem de um «estado anímico privilegiado», nem de uma «condição especial de espiritualidade», nem de uma «consciência supraempírica depurada», nem de uma «qualidade inata». Na verdade, o caminho em direção à imparcialidade tende a uma incompletude. É uma terra inexplorada quase sempre só à vista. O produto final desse empreendimento, não raro, é semielaborado, imperfeito, mal-acabado, quando não fracassado. É impossível promover uma «consciência bacteriologicamente asséptica». É inviável alcançar um «grau zero de parcialidade», uma «imparcialidade absoluta», um «ambiente de pura objetividade», uma «isenção completa de pressuposições». Enfim, não se pode elidir a estrutura prévia (posição prévia, visão prévia, concepção prévia) adstrita à circunvisão do sujeito. Aliás, há o risco de que a luta por uma imperturbabilidade plena faça dele apático indiferente ao mundo exterior. Logo, apenas se vê uma imparcialidade possível, viável, factível ou praticável.
Ainda assim, ela não deixa de ser um ideal. O esforço por ela nunca é vão. É o que os anglófonos chamam de worthwhile endeavor [«esforço que vale a pena»]. Por isso, esse esforço não pode ser modesto nem desambicioso, mesmo que condenado a um insucesso parcial. Assim sendo, essa luta prestadia pelo inatingível faz do imperativo de imparcialidade uma agonística. Consiste em esforço angonístico que, colocando o sujeito numa certa distância, lhe propicia uma visão mais global e, assim, o afasta de visões redutoras que acaso possa ter no interior do processo. Nesse sentido, a empresa pela imparcialidade – ainda que às vezes malograda ou só exitosa parcialmente – é imprescindível. A alcançabilidade problemática da isenção total não é salvo-conduto para se desencorajá-la. Fogo que se necessita apagar se amaina com água, não se aviva com mais fogo (para um aprofundamento do tema, v. nosso Imparcialidade como esforço. <https://emporiododireito.com.br/leitura/42-imparcialidade-como-esforco>). Daí por que um dos princípios estruturantes de qualquer regime sobre imparcialidade é a precaução: havendo suspeita de que determinada ação possa quebrá-la, a ação não deve ter lugar, ainda que inexista consenso científico irrefutável sobre essa causação. Na dúvida, não se corre o risco de ver quebrada a imparcialidade.
IV
De todo modo, é necessário maior esforço de objetivação ao promotor que ao juiz. Nem sempre o MP é custos legis e, assim, terceiro ao conflito. Como sujeito acionante, é inevitável que se enviese. E frequentemente isso se dá. Logo, não se pode exigir que promotor e juiz tenham idêntico grau de imparcialidade. O simbolismo fala por si: o juiz ao centro; o promotor à direita; ambos equidistantes da outra parte. Isso significa que o promotor tende a ser mais parcial que o juiz, mas menos parcial que a outra parte. Deve agir todo o tempo com padrão mais elevado que um litigante civil (cf. Comissão de Veneza, European standards as regards the independence of the judicial system: part II – the prosecution service, item V.14: «The prosecutor […] must act to a higher standard than a litigant in a civil matter»). Logo, não lhe compete obter condenações à tout prix. Mesmo que na prática o promotor só atinja uma proto-, para– ou semi-imparcialidade, atuando como um estranho medial entre um «juiz parcial» e uma «parte imparcial», não se pode renunciar ao esforço por objetividade. A parcialidade comezinha não revoga a imparcialidade ansiada. O ser não elide o dever-ser. Segundo EUGÊNIO PACELLI DE OLIVEIRA, «a imparcialidade deverá permear toda a atividade do Ministério Público, em todas as fases da persecução penal, incluindo a fase pré-processual, reservada às investigações» (Curso de Processo Penal. 9. ed. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2008, p. 369. Contra, entendendo que parte imparcial é «disparate lógico»: AROCA, Juan Montero. Proceso penal y libertad. Pamplona: Civitas, 2009, p. 122-123; VELLOSO, Alvarado. Sistema procesal: garantía de la libertad. t. I. Santa Fe: Rubinzal-Culzoni, 2009, p. 433).
Portanto, é preciso que se instituam todos os meios possíveis ao desenviesamento dos promotores (sobre o tema: BURKE, Alafair. Neutralizing cognitive bias: an invitation to prosecutors. NYU Journal & Liberty. v. 2. 2007, p. 512-530). Quando o MP exerce função acionante [= dever-poder de acionar ante a presença dos pressupostos fático-jurídicos], fá-lo sob a suposição metodológica interina de culpabilidade penal/civil do acusado/demandado. Jamais afirma na denúncia/petição inicial com o dedo em riste – tomado pela paixão de um advogado – a existência da ação material que porventura o Estado-juiz tenha de substitutivamente realizar. Tão somente ao final da instrução o MP transita da sub-posição [plano da provisoriedade] para a assunção de uma posição [plano da definitividade], pedindo a condenação/procedência ou a absolvição/improcedência (para uma distinção entre pressuposição, suposição e posição, v. nosso Presunção de inocência civil. RBDPro 100, p. 129-144). Não é de se estranhar que assim seja: sendo o MP curador do direito objetivo, cabe-lhe ao final reconhecer se incidiu ou não a norma de direito material por ele aventada, se há ou não prova do suporte fático da ação material cuja existência foi por ele suposta ao longo da instrução. Tudo isso explica, v. g.: a dispensa de intervenção do MP como custos legis em ação por ele próprio ajuizada; por que o MP não sucumbe e, em consequência, não é condenado em honorários advocatícios; por que o promotor não tem a liberdade de acionar ou não acionar; por que o MP não é órgão de repressão ao crime (afinal, não desempenha função de segurança pública, mas função essencial à justiça); por que o promotor não pode conceder entrevista coletiva e promover workshop para pré-incriminar pessoas.
V
Na atual escalada punitivista, a instituição do «promotor de garantias» chegaria em boa hora. É passado o tempo de se levar a imparcialidade mais a sério no Brasil. A imparcialidade do promotor não é tão óbvia quanto a do juiz. Aliás, é contraintuitiva. Todavia, é tão importante quanto, sobretudo num país em que o Ministério Público goza de incomparável independência funcional. Daí a necessidade de o promotor pré-acionante não ser o promotor acionante, de entre eles haver uma divisão funcional de tarefas, de não se empurrar a contaminação psíquica contraída na fase investigatória para a fase processual. E nenhuma afronta aos postulados fundamentais do garantismo processual há aí. Ao contrário. Reforço de imparcialidade do promotor implica reforço de garanticidade do processo; reforço de garanticidade do processo implica reforço de republicanidade da jurisdição (sobre a relação entre garantismo e republicanismo, v. nosso Processo, jurisdição e república. <https://emporiododireito.com.br/leitura/abdpro-61-processo-jurisdicao-e-republica-ao-ensejo-do-129-aniversario-da-proclamacao-da-republica>). Agrega-se mais um agente estatal à fiscalização contra o arbítrio jurisdicional (conquanto o promotor seja suscetível aos seus próprios arbítrios). É plus garantístico. O promotor parcial fiscaliza apenas os arbítrios jurisdicionais dirigidos a si; em contrapartida, o promotor imparcial fiscaliza os arbítrios jurisdicionais dirigidos tanto a si quanto à parte contrária. Com isso o velho promotor público dá lugar ao novo promotor de justiça (justiça aqui entendida em sentido normativo-formal, i. e., como correta aplicação do direito objetivo, como coincidência entre a regra que incidiu e a regra que se aplicou). É bem verdade que a ideia de imparcialidade ministerial vai de encontro ao modelo duelístico-privatista do adversarialismo processual. É inaceitável ao imaginário coletivo que o acusador justiceiro e holofótico dos filmes hollywoodianos emane neutralidade, isenção, imparcialidade. Contudo, isso mostra que, embora se tanjam em vários pontos, o adversarialismo anglo-saxão e o garantismo processual não são a mesma coisa. De qualquer maneira, a Lei 13.964/2019 deveria ter introduzido, simultaneamente, o «juiz das garantias» e o «promotor das garantias». Não o fez. Foi tímida. Somente deu meio passo. Limitou-se à primeira figura. Limitando-se, porém, abriu caminho à segunda. Deu o start para o adensamento de garanticidade do direito procedimental penal brasileiro. Que o «promotor de garantias» não tarde a chegar…