PRINCÍPIO NÃO É NORMA (17ª PARTE)

Ao Professor Carlos Henrique Soares

 

I

Vige no Brasil um Estado democrático-parlamentar de direito legislado [CF/1988, preâmbulo e artigos 1º, caput, e 5º, II]. Nele, um princípio de moral se torna igualmente um princípio de direito somente se é abraçado, abrigado, aceito, acolhido, admitido, adotado, albergado, assumido, hospedado, incorporado, perfilhado, recepcionado pelo legislador. O ingresso do princípio de moral no direito se faz mediante a sua enunciação escrita em um determinado dispositivo da Constituição ou da lei [= princípio de direito explícito ou expresso], ou mediante a edição legislativa de regras jurídicas nas quais o princípio de moral esteja subentendido [= princípio de direito implícito]. Percebe-se assim que todo princípio de direito é um princípio de moral, mas nem todo princípio de moral é um princípio de direito. Daí por que «princípio de direito imoral» é contradictio in adiecto. O princípio de moral é sempre um prius ético; o princípio de direito, um eventual posterius. Entre o prius e o posterius se interpõe um ato de vontade do legislador. Nesse sentido, princípio de direito (PD) é princípio de moral (PM) que recebeu acolhida legislativa explícita ou implícita (AL) (a contrario sensu, o princípio de direito se apaga ipso facto quando deixa de ser um princípio de moral, ou, mesmo sendo ainda um princípio de moral, quando deixa de receber acolhida legislativa explícita ou implícita). Em termos simbólicos: PD = PM × AL.

Essa equação matemática bastante simples exprime uma lei sociológica, não uma regra jurídica. Trata-se de uma lei determinística que rege a expansão e a contração do conjunto dos princípios jurídicos [corpus principiorum iuris], o qual ocupa a zona de fronteira intersistêmica – de natureza límbica e, portanto, quase nunca investigada – entre o ordenamento jurídico [ordo regularum iuris] e o ordenamento moral [ordo moralis]. É lei que opera no plano do ser, não do dever-ser. O nascimento e a morte dos princípios jurídicos não são regidos por qualquer imperativo exógeno de razão jurídica, moral ou geral prática. É uma lei causal de sociologia geral, cujo entendimento tem escapado aos teóricos do direito e aos juristas dogmáticos e, por isso, obscurecido os estudos sobre a estática e a dinâmica da principiologia jurídica (assim como lhes tem escapado qualquer entendimento sobre a força meramente nomopneica, hipotônica, sugestiva, inspiradora ou recomendatória que os princípios de direito exercem sobre as regras jurídicas, que a principiologia jurídica exerce sobre o ordenamento jurídico, que a dimensão não normativa do direito exerce sobre a sua dimensão normativa, que o soft law exerce sobre o hard law). É necessário compreender como os princípios de moral entram no direito e do direito saem e, uma vez entrados, como influenciam desde fora o sistema das regras jurídicas; para tanto, porém, é necessário sair do direito, distanciar-se dele e analisá-lo sem se estar preso aos círculos paleopositivista e principalmente pós-positivista, hoje dominante na teoria do direito e, por via reflexa, na dogmática jurídica que se cultuam no País. Sem esse exercício ad hoc de sociologismo, instala-se um estado de incompreensão, divorciado da realidade, que mergulha os princípios jurídicos em graves impasses metodológico-conceituais e, assim, facilita a manipulação deles como instrumentos de degradação do Estado democrático parlamentar em um Estado aristocrático judiciário.

 

II

A condição material para existir um princípio de direito é que ele exista antes como um princípio de moral. É a pré-moralidade de todo e qualquer princípio jurídico. Se um «princípio de direito» não é outrossim um princípio de moral, de um princípio de direito não se trata. É somente uma aparência ilusória de princípio de direito. É uma simples quimera jurídico-principiológica. É possível que um princípio de moral não seja também um princípio de direito, mas não é possível que um princípio de direito não seja também um princípio de moral. Ou o princípio é juridicamente porque é moralmente, ou o princípio não é juridicamente porque não é moralmente. Em termos simbólicos: dado que PD = PM × AL, se PM = 0, então PD = 0. Por esse motivo, o conjunto dos princípios de juridicidade [corpus principiorum iuris] não é um capítulo do conjunto dos princípios de moralidade [ordo moralis]. Tampouco existem pontos ou faixas de intersecção entre a principiologia moral e a principiologia jurídica. Desse modo, se o legislador enuncia um princípio de direito que não é antes um princípio de moral, enuncia um nada. O dispositivo enunciativo é oco, inane, inaperto, vão. É enunciação de um nada e, portanto, uma não enunciação. Há um vazio semântico por inexistência do objeto referido. Por conseguinte, o dispositivo não tem força nomopneica, hipotônica, sugestiva, inspiradora, recomendatória. É mudo. É flatus vocis.

Exemplo interessante seria a disparatada tentativa de substituição do princípio da defesa do consumidor [CF/1988, art. 170, V] por um «princípio de desamparo ao consumidor». Ao menos no Brasil, não se considera justo abandonar os consumidores às suas próprias vulnerabilidades (desconhecimento técnico sobre o produto ou serviço, desconhecimento jurídico sobre as consequências daquilo a que se obriga, incapacidade de compreender as informações que lhe são prestadas, inferioridade socioeconômica, etc.), permitindo que o fornecedor os submeta a condições contratuais abusivas. É raro o setor de mercado que funcione sob concorrência perfeita e autorregulação ideal; portanto, infelizmente, nem sempre o fornecedor que inflige práticas abusivas aos seus consumidores os perde. Dessa forma, só existe o princípio jurídico da defesa do consumidor porquanto antes existe o princípio moral da defesa do consumidor. Ora, se o «princípio do desamparo ao consumidor» está em indubitável desacordo com os ditames da moralidade vigente, então o dispositivo que porventura o enunciasse seria a enunciação de um nada, uma não enunciação. Afinal de contas, o mencionado princípio simplesmente não existe na moral e, em consequência, não pode existir no direito. Se não existe um «princípio moral de desamparo ao consumidor», a fortiori não existe um «princípio jurídico de desamparo ao consumidor». Logo, seria inoperante a substituição do princípio pelo seu contraprincípio. Mesmo que o inciso V do artigo 170 da Constituição Federal de 1988 fosse formalmente revogado, a defesa do consumidor prevaleceria como um princípio jurídico implícito. Pudera: ele continuaria sendo um sopro moral dentro do ordenamento jurídico, inspirando nomopneicamente uma quantidade incontável de regras jurídicas – constitucionais, legais e regulamentares – que vigem no ordenamento jurídico brasileiro atual em todos os níveis da Federação.

 

III

Como visto, um princípio jurídico tem duas condições de existência: 1) ser um princípio moral [= condição material anterior]; 2) ser acolhido pelo legislador de maneira explícita ou implícita [= condição formal posterior]. O legislador pode expressar o princípio moral acolhido mediante um dispositivo de lei [= princípio jurídico explícito], ou pode subentendê-lo em uma cadeia finita de regras legais expressas [= princípio jurídico implícito] (obs.: os termos legislador e lei são tomados aqui em sentido amplo, razão pela qual abrangem, respectivamente, as ideias de constituinte e Constituição). Isso significa que o juiz não pode inventar pessoalmente princípios jurídicos segundo o seu senso subjetivo de moralidade. Tampouco pode prospectar princípios per saltum em uma moralidade objetiva externa ao direito, posto que não gravite ao redor dela qualquer desacordo. Os princípios morais aos quais o juiz deve restringir-se são unicamente os princípios morais acolhidos pelo legislador. Mesmo que se trate de um princípio moral valiosíssimo, ele não será por si só um princípio jurídico se não houver recebido a acolhida legislativa. Em termos simbólicos: dado que PD = PM × AL, se AL = 0, então PD = 0. A cordialidade entre vizinhos, a lealdade entre amigos, a gratidão, o altruísmo e a honorificação dos pais pelos filhos são exemplos paradigmáticos de princípios de moral que jamais foram acolhidos pelo legislador e que, em consequência, não são princípios de direito, nada obstante sejam valores fundamentais para uma vida social harmoniosa. Visto que não são princípios de direito, não podem ser usados pelo juiz dworkiniano para o preenchimento de lacunas. Tampouco podem ser usados para a interpretação teleológica de regras jurídicas (mesmo porque, se não são princípios de direito, não inspiram a criação de regras jurídicas que possam ser interpretadas a partir deles). Muito menos podem ser «aplicados diretamente» como se normas fossem, à margem das regras legais expressas, para a resolução de casos práticos. Em um Estado democrático-parlamentar de direito legislado [CF/1988, preâmbulo e artigos 1º, caput, e 5º, II], somente o legislador tem a válvula que controla o fluxo de princípios morais para dentro do direito.

Isso posto, os textos normativos editados pelo Poder Legislativo são a fonte única e exclusiva de revelação dos princípios jurídicos. Por conseguinte, quando o juiz invoca um princípio de direito em sua decisão, ele deve: a) em se tratando de um princípio de direito explícito, mencionar o dispositivo da Constituição ou da lei que o enuncia expressamente; b) em se tratando de um princípio de direito implícito, mencionar os dispositivos que enunciam as regras jurídicas a partir das quais é possível induzir o princípio de direito; c) expor a controle público, na fundamentação, o raciocínio indutivo empreendido in concreto para desvelar o princípio de direito subentendido nessas regras jurídicas; d) mencionar tão apenas dispositivos que integram a legislação brasileira (tendo em vista que, em não raras vezes, princípios jurídicos de direito estrangeiro são estrategicamente importados para a promoção de resultados que seriam  irrealizáveis desde os princípios jurídicos do direito brasileiro). Essa é a melhor fórmula para se impedir a invencionice desenfreada de princípios.

 

IV

Já se disse aqui à exaustão que não existe princípio de direito que também não seja princípio de moral. Isso significa, com outro dizer, que «princípio de direito imoral» é contradictio in adiecto. Se é princípio jurídico, é princípio jurídico necessariamente moral. Não há um «estado ideal de coisas» que não seja igualmente um «estado moral de coisas». Toda idealidade jurídica é uma idealidade moral. Por isso, se é verdade que desde regras jurídicas morais se pode induzir um princípio de direito implícito, é outrossim verdade que desde regras jurídicas imorais não se pode induzir qualquer princípio. Princípios de direito são concretizados por regras jurídicas morais, mas regras jurídicas imorais não concretizam nenhum princípio de direito. Princípios jurídicos inspiram, mas não coagem; sugerem, mas não compelem; recomendam, mas não determinam; sopram, mas não arrastam. Daí por que aqui e ali se localizam no ordenamento jurídico regras que são imorais per se, ou que consentem com imoralidades. Dada a força meramente nomopneica dos princípios de direito, o ordenamento jurídico não é um inteiriço de moralidade pura, conquanto esteja longe de ser um inteiriço de pura imoralidade. Ao contrário: os princípios jurídicos impedem uma dissonância completa entre direito e moral, garantindo nele um jellinekiano ethische Minimum.

Um estudo sobre a principiologia previdenciária pré-constitucional, por exemplo, bem ilustra a impossibilidade de «princípios jurídicos implícitos imorais». A CF/1988 enunciou o princípio explícito da proteção previdenciária simétrica entre as populações urbana e rural [art. 194, parágrafo único, II]. De acordo com o aludido princípio, diante das mesmas contingências (maternidade, morte, velhice, doença etc.), a cobertura previdenciária deve abranger tanto a população urbana quanto a população rural. Pressionado pela força nomopneica desse princípio de uniformidade, o Congresso Nacional o concretizou por meio da edição da Lei 8.213, de 24/07/1991 (que dispõe sobre os Planos de Benefícios da Previdência Social). No entanto, antes dessa lei não havia uma uniformidade de cobertura previdenciária entre as populações urbana e rural. O artigo 22 da Lei 3.807, de 26/08/1960 (a Lei Orgânica da Previdência Social), assegurava à população urbana as seguintes prestações: I – quanto aos segurados: a) auxílio-doença; b) aposentadoria por invalidez; c) aposentadoria por velhice; d) aposentadoria especial; e) aposentadoria por tempo de serviço; f) auxílio-natalidade; g) pecúlio; e h) assistência financeira; II – quanto aos dependentes: a) pensão; b) auxílio-reclusão; c) auxílio-funeral; e d) pecúlio; III – quanto aos beneficiários em geral: a) assistência médica; b) assistência alimentar; c) assistência habitacional; d) assistência complementar; e e) assistência reeducativa e de readaptação profissional. Por sua vez, o artigo 2º da Lei Complementar 11, de 25/05/1971 (que instituiu o Programa de Assistência ao Trabalhador Rural – Prorural) só assegurava à população rural os seguintes benefícios: I – aposentadoria por velhice; II – aposentadoria por invalidez; III – pensão; IV – auxílio-funeral; V – serviço de saúde; VI – serviço de social. Sem embargo, não é possível subentender nessas regras um «princípio de proteção desuniforme entre urbanos e rurais». Antes de 1988, essa discriminação nunca foi um princípio de moral, um «estado ideal de coisas», um objetivo a ser alcançado.

 

V

Viu-se acima como os princípios morais ingressam no direito. Não é difícil saber, contudo, como eles saem. Uma vez que PD = PM × AL, então PD = 0 se PM = 0 ou se AL = 0. Em outros termos, para sair do direito, basta que o princípio jurídico 1) perca espontaneamente a condição de princípio moral, ou 2) seja retirado deliberadamente pelo legislador. Em (1), havendo o apagamento do princípio moral, há o apagamento reflexo e automático do princípio jurídico. Deixando de existir o princípio de moral, o princípio de direito perde de imediato o seu substrato material. Ainda que um dispositivo constitucional ou legal enuncie categoricamente o princípio jurídico, o princípio jurídico deixará de existir se deixar de existir também como um princípio moral. Nesse caso, o dispositivo sofrerá uma perda superveniente de valor semântico. Persistirá na legislação como letra morta, como cadáver insepulto. Entretanto, na vida social, esse apagamento do princípio moral não ocorre de modo abrupto, mas processual, paulatino, progressivo. Dá-se pela força reiterativa de uma desabituação comunitária difusa, sem que se possa identificar um ato de vontade individual ou coletivo que apague o princípio premeditadamente. À medida que se realiza o apagamento moral, uma despotenciação nomopneica gradual desorienta os juízes, que se dividem entre considerar e desconsiderar a existência do princípio de direito. Ou seja, alguns ainda dão importância ao princípio jurídico; outros já o tratam com desprezo. Tudo isso mostra que o grau de mobilidade do conjunto dos princípios de direito [corpus principiorum iuris] é muito maior que o grau de mobilidade do conjunto das regras jurídicas [ordo regularum iuris], donde se conclui a enorme dificuldade justeorética de se estudarem analiticamente a estática e a dinâmica dos princípios.

Por seu turno, em (2), o apagamento do princípio jurídico é provocado intencionalmente pelo legislador, ainda que o princípio moral subjacente continue existindo. 2.1) Se se trata de um princípio de direito implícito, basta ao legislador revogar as regras jurídicas que o concretizam ou densificam. 2.2) Se se trata de um princípio de direito explícito ainda não concretizado ou densificado por regras jurídicas, basta ao legislador revogar o dispositivo constitucional ou legal que o enuncia expressamente. 2.3) Se se trata de um princípio de direito explícito concretizado ou densificado por regras jurídicas, é preciso que o legislador revogue tanto as regras jurídicas que o concretizam quanto o dispositivo constitucional ou legal que o enuncia expressamente. Afinal, se se revoga apenas o dispositivo, o princípio de direito continua existindo subentendido nas regras jurídicas que o concretizam ou densificam; noutras palavras, ele deixa de ser um princípio de direito explícito e se torna doravante um princípio de direito implícito (obs.: como já visto ao longo desta série de artigos, não há hierarquia entre princípio explícito e princípio implícito, assim como não há hierarquia entre princípio explicitado na Constituição e princípio explicitado na lei). Todavia, se se apenas revogam as regras jurídicas concretizadoras ou densificadoras, o princípio de direito continua existindo, embora completamente irrealizado pelo ordenamento jurídico [ordo regularum iuris], como um mero potencial dormente no âmago da principiologia jurídica [corpus principiorum iuris].

Autor

  • Eduardo José da Fonseca Costa

    Juiz Federal em Ribeirão Preto, Especialista, Mestre e Doutor pela PUC-SP, Diretor da Revista Brasileira de Direito Processual, Ex-Presidente da Associação Brasileira de Direito Processual, Membro do Instituto Pan-Americano de Direito Processual



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