ARE 1.307.386/RS – O LEITMOVIT DO “TOCDC”

O Judiciário se transformou em Justiça, seja sem mudança estrutural, seja pelo surgimento de seu ersatz semipolítico – a Corte Constitucional teve mudado seu viés

Manoel Gonçalves Ferreira Filho

 

– I –

Quando Dieter Grimm afirma que o constitucionalismo, tal como surgido no último quartel do século XVIII, foi uma tentativa de reestabelecer a supremacia do direito sem que isso implicasse um direito natural que lhe desse suporte de legitimação[3], sintetiza dois grandes legados da modernidade: a diferenciação entre direito e política e a legitimação dessa última em bases seculares.

Esse primeiro impulso, como se sabe, não foi suficiente. Os regimes nazi-fascistas do século XX corromperam o direito positivo desde dentro[4] e escancararam que as Constituições, enquanto salvaguardas contra maiorias ocasionais, precisavam ainda adquirir força normativa.

Especialmente a partir da segunda metade do século XX, o cumprimento da Constituição passou a ser uma justificada obsessão das Cortes Constitucionais. Por vezes, contudo, sob o argumento de se “concretizar” a Constituição, o Poder Judiciário acaba por atuar de forma excessivamente expansionista.

No Brasil, uma das formas mais conhecidas de atuação expansionista do STF (e STJ, diga-se de passagem) é sua autointepretação como uma Corte de “teses”. Alinhamo-nos ao posicionamento de que teses não são fins imediatos dos Tribunais Superiores; decorrem, antes, do reiterado posicionamento a que aderem em dadas questões. São a estabilização institucional de posições firmadas no julgamento de casos concretos.

É certo que ações de controle concentrado abstrato de constitucionalidade e o próprio instituto da repercussão geral permitem a fixação de entendimentos aos quais se costuma chamar de teses. São opções políticas legítimas. Contudo, fazer o uso desse ferramental não pode, em hipótese alguma, prescindir das efetivas condições processuais para tanto.

No bojo do ARE 1.307.386/RS o STF, em nossa visão, utilizou o instituto da repercussão geral de forma expansionista justamente porque entendeu possível “reinterpretar” as condições processuais para que a Corte pudesse fixar uma tese, à margem de um interesse recursal legítimo e do próprio cabimento do RE.

Vejamos. Cuidou-se de recurso extraordinário com agravo que objetivava promover a reforma de decisão obstativa de recurso excepcional interposto por empresa vencedora no julgamento de IRDR com arrimo no art. 102, III, da CF contra pronunciamento vertido nos seguintes termos:

No caso em tela, a parte recorrente resultou vitoriosa no julgamento de causa-piloto de Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas (IRDR) no qual restou fixada seguinte tese jurídica: é lícita a divulgação por provedor de aplicações de internet, de conteúdos de processos judiciais (em andamento ou findos) que não tramitem em segredo de justiça, e não existe obrigação jurídica de removê-los.

A pretensão deduzida no presente recurso extraordinário é de apreciação do mérito da tese jurídica discutida, viabilizando, assim, que seja firmada uma tese sobre esta temática com alcance sobre todo o território nacional, na forma do art. 985 do Código de Processo Civil.

Consideradas as hipóteses estritas versadas no art. 102 da Lei Maior, na esteira da jurisprudência exarada pela Suprema Corte, o pedido não encontra respaldo legal.

(…)

Inviável, portanto, a submissão do recurso à Suprema Corte.

(…) Ante o exposto, NÃO ADMITO o recurso.

No STF, o Ministro Luiz Fux proveu o agravo interposto pela parte vencedora para exame do recurso extraordinário e, com fulcro no CPC, art. 1.035, manifestou-se pela existência de repercussão geral da questão constitucional suscitada, submetendo a referida matéria à apreciação dos demais Ministros da Corte. A repercussão geral foi reconhecida por maioria de votos, como se denota da síntese:

RECURSO EXTRAORDINÁRIO COM AGRAVO. INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE DEMANDAS REPETITIVAS (IRDR). CIVIL E CONSTITUCIONAL.  RESPONSABILIDADE CIVIL. DISPONIBILIZAÇÃO DE INFORMAÇÕES PROCESSUAIS NA INTERNET PUBLICADAS PELO PODER JUDICIÁRIO SEM RESTRIÇÃO DE SEGREDO DE JUSTIÇA. SUBMISSÃO DA QUESTÃO CONSTITUCIONAL AO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL PARA OBTENÇÃO DE TESE COM ABRANGÊNCIA EM TODO O TERRITÓRIO NACIONAL E NÃO APENAS NO ÂMBITO DE JURISDIÇÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA ESTADUAL. INTERESSE RECURSAL RECONHECIDO. RELEVÂNCIA DA QUESTÃO CONSTITUCIONAL. AGRAVO PROVIDO PARA EXAME DO RECURSO EXTRAORDINÁRIO.

 

O ponto fulcral da decisão que não admitiu o RE repousou na ausência de interesse recursal do recorrente, uma vez que a tese adotada no IRDR lhe foi integralmente favorável. Entretanto, além disso, há, em nosso ponto de vista, óbice intransponível ao cabimento do RE: ausência de hipótese de cabimento prevista no Texto Maior (art. 102, III), conforme a seguir demonstraremos.

 

– II –

No STF, o Min. Luiz Fux, ao analisar o recurso de agravo manejado pela empresa vencedora consignou que no “sistema de precedentes, a impugnação pela via recursal merece leitura própria e contemporânea, divorciada da leitura clássica do interesse recursal que denota a perspectiva individualista do Direito Processual Civil, indicando uma noção restritiva e simplista da sucumbência”.

Justificou tal premissa asseverando que, para o interessado “é fundamental que possa antever a possibilidade de o seu provimento levar à melhora de sua esfera jurídica. À semelhança do que acontece com o interesse de agir, é necessário que o interessado possa vislumbrar alguma utilidade na interposição do recurso, utilidade essa que somente possa ser obtida através da via recursal (necessidade)”.

Prosseguiu consignando que “partir do momento em que o recurso extraordinário se mostra como o caminho adequado para permitir a análise definitiva da correta interpretação do ordenamento pelo Supremo Tribunal Federal, na sistemática dos julgamentos de questões repetitivas, bem como medida necessária para que os envolvidos nos processos subjetivos aos quais a tese será aplicada possam exercer sua liberdade com isonomia e segurança jurídica, é seguro afirmar que os recursos mencionados pelo legislador no artigo 987 podem ser validamente manejados também pelos interessados cuja argumentação prevaleceu no incidente. Em suma, a utilidade do instrumento é evidente, sua interposição, desejável, e sua admissão, imperativa”.

Reforçou o cabimento do RE, com a aplicação do “princípio da eficiência jurisdicional”, pois “ignorar a viabilidade do recurso ao interessado que teve sua posição acolhida é estimular a recorribilidade em todos os processos em curso, sob a ótica individual”, concluindo que “suscitar a impossibilidade do manejo do recurso extraordinário ou do recurso especial da decisão que julga o IRDR acarretaria, consequentemente, abrir a via para diversos recursos extraordinários e recursos especiais da decisão que aplicar a tese fixada a todos os demais casos idênticos”.

Esses são os pontos cruciais que importam para fins deste trabalho. Os aspectos relativos ao mérito da questão levada no bojo do RE nos parece despicienda neste momento, até porque será objeto de deliberação pelo órgão competente do STF, estando, nesse momento, conclusos à Min. Cármen Lúcia (17/12/2021).

 

– III –

Em primeiro lugar, a decisão proferida pelo Ministro Luiz Fux não encontra guarida no texto normativo do art. 102, III, da CF[5] – hipótese essa aventada pela empresa recorrente em seu recurso e que foi sequer objeto de motivação.

No supracitado dispositivo não há que se sustentar o exercício de “competências implícitas complementares”, até porque não há “lacunas constitucionais evidentes”, no arquétipo de uma Constituição analítica. Competência para processar determinadas classes de ações e/ou recursos nominados ad nauseam não permitem outra forma de interpretação diversa daquela de cariz restritivo, como sustentam, aliás, doutrinariamente, Gilmar Mendes e Paulo Gustavo Gonet Branco[6] e Canotilho[7].

Para se permitir a façanha tal qual posta no ARE 1.307.386/RS imprescindível se revelaria a existência de hipótese de cabimento contida em adequada reforma constitucional ao permisso 102 do Texto Maior, fruto da atuação do poder constituinte derivado reformador, nos termos da CF, art. 60.

Portanto, o RE interposto pela empresa vencedora é natimorto.

Cabe-nos, ainda, analisar a falta de interesse recursal no âmbito do direito posto e da dogmática processual.

A interposição de qualquer recurso porventura cabível há de espelhar situação mais favorável ao recorrente que a prevista no ato impugnado. Obviamente que os sujeitos processuais recorrem para obterem algo útil, necessário e mais vantajoso. Daí a noção de “proveito do recurso expressa corretamente o requisito da utilidade que compõe o interesse, superando as dificuldades existentes na fórmula mais vulgar de sucumbência (prejuízo ou gravame)”[8].

Ora, há sucumbência quando o conteúdo do dispositivo da decisão judicial diverge daquele que foi requerido pela parte no processo (sucumbência formal) ou quando, independentemente das pretensões deduzidas pelos litigantes no processo, a decisão judicial colocar uma das partes ou o terceiro em situação jurídica pior do que aquela que tinha antes do procedimento, isto é, quando a decisão produzir efeitos desfavoráveis à parte ou ao terceiro, ou, ainda, quando o demandante não obteve no processo tudo aquilo que poderia dele ter obtido (sucumbência material)[9].

In casu, a empresa vencedora obteve a integralidade de proveitos possível pela via eleita, ou seja, foi plenamente vitoriosa em sua demanda. Não há nenhuma possibilidade de “melhora” da decisão para atingir os seus legítimos interesses, revelando-se, assim, parte ilegítima para a interposição do recurso extraordinário na hipótese.

A fundamentação sedutora consignada pelo Min. Luiz Fux não convence do ponto de vista da “eficiência”, tampouco de sua adequabilidade ao regime dos recursos repetitivos a uma leitura “contemporânea”, pois, falta-lhe arrimo constitucional e legal para tanto. Talvez outro(s) legitimado(s) poderia(m) ter se utilizado da via extraordinária para o único objetivo de estender o teor e a aplicabilidade daquela tese para o âmbito nacional (extensão prevista no CPC, art. 987, § 2.º)[10], como pretendeu a empresa vencedora com o aval da decisão aqui criticada, a exemplo do Ministério Público, mas, peremptoriamente, não foi o caso dos autos.

Com efeito, o CPC, art. 987 caput dispõe acerca do cabimento dos recursos excepcionais contra decisão que julga o mérito IRDR[11], desde que (i) existe sucumbência (materiellen Beschwer) e (ii) hipótese de cabimento regrada na CF. Na hipótese do ARE 1.307.386/RS, ambos os requisitos ou pressupostos não se revelam presentes.

O STF não se conteve em atuar nas vias nada estreitas que lhe foram abertas pela Constituição Federal e reformas que a seguiram, mas invadiu competência alheia ao admitir um recurso extraordinário sem previsão constitucional expressa e explica. Essa usurpação caracteriza uma espécie de ativismo, procurando não banalizar o referido conceito, mas, compreendê-lo e “explicar a ação estratégica do STF”[12].

Não percamos jamais o essencial de vista: o Supremo Tribunal Federal é uma instituição absolutamente essencial ao bom funcionamento da democracia brasileira; incumbe aos observadores jurídicos externos, contudo, auxiliar a Corte a não se perder nessa espécie de “crise de identidade” própria das jurisdições constitucionais que, ao menos desde o embate Kelsen/Schmitt, veem-se entre o direito e a política.[13]

A decisão em comento junta-se a numerosas outras deliberações judiciais que têm suscitado acerba polêmica envolvendo, no fundo, a separação de poderes e seu alcance em fase do nosso peculiar direito constitucional, no bojo do qual o leitmovit não é a legalidade (lato sensu), mas o desejo ao qual epitetamos de “TOCDC” – Transtorno Obsessivo Compulsivo no Descumprimento da Constituição.

 

[3] “Constitutionalism as it emerged in the last quarter of the eighteenth century was an attempt to re-establish the supremacy of the law, albeit under the condition that there was no return to divine or eternal law.” GRIMM, Dieter Grimm. Constitutionalism: Past, Present, and Future, Oxford: Oxford University Press, 2016, p. 200.

[4] Cf. ABBOUD, Georges. Direito Constitucional Pós-Moderno, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2021, Parte I; VALADÃO, Rodrigo Borges. Positivismo Jurídico e Nazismo: formação, refutação e superação da lenda do positivismo, São Paulo: Contracorrente, 2021, passim.

[5] Art. 102. Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe:

(…); III – julgar, mediante recurso extraordinário, as causas decididas em única ou última instância, quando a decisão recorrida: a) contrariar dispositivo desta Constituição; b) declarar a inconstitucionalidade de tratado ou lei federal; c) julgar válida lei ou ato de governo local contestado em face desta Constituição; d) julgar válida lei local contestada em face de lei federal.

[6] Curso de direito constitucional. 7. Ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 1325.

[7] Direito constitucional e teoria da Constituição. 5. Ed. Coimbra: Almedina, 2002, 543.

 

[8] ASSIS, Araken. Manual dos recursos [livro eletrônico]. 4. Ed. São Paulo: Thomson Reuters, 2021.

[9] NERY JUNIOR, Nelson. Teoria geral dos recursos [livro eletrônico]. São Paulo: RT, 2014.

[10] Art. 987. Do julgamento do mérito do incidente caberá recurso extraordinário ou especial, conforme o caso.

(…); § 2º Apreciado o mérito do recurso, a tese jurídica adotada pelo Supremo Tribunal Federal ou pelo Superior Tribunal de Justiça será aplicada no território nacional a todos os processos individuais ou coletivos que versem sobre idêntica questão de direito.

[11] Para nós, esse julgamento que enseja a interposição de RE e/ou REsp é aquele que faz incidir sobre o caso pendente no Tribunal local a tese jurídica fruto do julgamento do IRDR. Em outras palavras: para ser constitucional o dispositivo do CPC (interpretação conforme a CF) é imprescindível que após o julgamento do IRDR, a tese nele firmada seja aplicada ao processo paradigma pendente de julgamento no Tribunal de segundo grau. Essa interpretação encontra ressonância na jurisprudência consolidada do STF, a saber, na Súmula 513: “A decisão que enseja a interposição de recurso ordinário ou extraordinário não é a do plenário, que resolve o incidente de inconstitucionalidade, mas a do órgão (câmaras, grupos ou turmas) que completa o julgamento do feito”.

[12] SILVA. Virgílio Afonso da. Direito constitucional brasileiro. São Paulo: Editora Universidade de São Paulo, 2021, p. 509-511.

[13] Cf., por todos GRIMM, Dieter. Verfassungsgerichtsbarkeit, Frankfurt am Main: Suhrkamp, 2021, p. 105 e ss.

Autor

  • Julio e Matthaus

    Julio César Rossi é Pós-Doutor pela Universidade de Coimbra (UC/PT). Estágio pós-doutoral na Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS). Doutor pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP). Mestre pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP). Membro da Associação Brasileira de Direito Processual (ABDPro). Advogado da União (AGU).
    Matthäus Kroschinsky é Mestrando e Bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP). Advogado.



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