No findar do ano judiciário de 2021, a Segunda Turma do Superior Tribunal de Justiça proferiu interessante decisão no Recurso Especial n. 1.693.334 – RJ. Tratava-se de ação civil pública que foi julgada improcedente por falta de provas. Uma das discussões travadas no julgamento do recurso disse respeito à atividade instrutória do juiz e os seus limites.
Naquele caso concreto, o Ministério Público, autor da ação, defendeu a tese de que o juiz possui amplos poderes instrutórios para a busca da verdade real e caberia a ele requisitar, de ofício, ao CADE a documentação necessária para o julgamento da causa.
A posição do STJ, entretanto, foi em outro sentido, a saber:
(…) 5- De fato, existência de regras disciplinando o ônus da prova não autoriza a conclusão de que o juiz está adstrito a uma posição de inércia no campo probatório, permanecendo estanque diante da iniciativa probatória das partes. Pelo contrário, o magistrado, consoante as regras previstas no art. 130 do CPC/73, compartilha com elas o dever de evitar os efeitos do non liquet.
6- Contudo, essa presunção não é absoluta, devendo, pois, ater-se às hipóteses nas quais, diante de um mínimo juízo de convicção quanto aos fatos narrados, a insuficiência de provas impede que o encontre de uma resposta jurídica para o julgamento.
7- O juízo de conveniência quanto às diligências necessárias, além de ser exclusivo do julgador, deve considerar os seguintes elementos: i) mínima certeza da prática delituosa, ii) existência, ainda que mínimos, de elementos probatórios que indicam a prática de infração a ordem econômica por formação de cartéis, iii) ativa atuação do autor da ACP, notadamente quanto a delimitação dos fatos narrados e com intensa participação na fase instrutória do feito.
8- Deixar de requerer diligências possíveis ao tempo da ação e atribuir responsabilidade instrutória ao magistrado, desrespeita a lealdade processual um dos deveres anexos criados pela boa-fé objetiva e direcionada a todos os partícipes do processo. Sua incidência no campo instrutório, indica ser dever das partes apontar todos os elementos probatórios, de forma a permitir que a parte ex adversa exerça o contraditório de forma eficaz. (…)
A partir dessa decisão que, embora tenha considerado dispositivos do CPC/1973, observa-se discussão importante e ainda atual, pois o CPC/2015, em seu artigo 370, continua prevendo a possibilidade de determinação de produção probatória de ofício pelo juiz.
A doutrina do processo civil brasileiro, fincada nas noções publicistas de instrumentalidade do processo, em sua acachapante maioria defende com bastante a produção probatória de ofício pelo juiz.
Por todos, vale citar Cândido Dinamarco e Barbosa Moreira. O primeiro defende que “as forças que impelem o juiz ao ativismo probatório são (a) o dever de promover a igualdade entre os litigantes, (b) a dignidade da jurisdição, que quer o juiz como agente da justiça e não mero refém das condutas e omissões das partes e (c) a indisponibilidade dos direitos e relações jurídico-substanciais em certos casos.”[1]
Barbosa Moreira, por sua vez, defendia que em matéria de produção probatória “o papel do juiz e o das partes são aqui complementares; absurdo concebê-los como reciprocamente excludentes. E não custa reconhecer que, de fato, ao menos no comum dos casos, por óbvias razões, dos próprios litigantes é que se obterá, com toda a probabilidade, aporte mais substancioso.”[2]
Por outro lado, a doutrina garantista do processo civil faz severa crítica a essa posição predominante na dogmática, na jurisprudência e na própria legislação infraconstitucional. Eduardo José da Fonseca Costa defende que:
(…) quando o juiz ordena prova à míngua de requerimento da parte, só pode haver cinco resultados possíveis: 1) prova de fato constitutivo do direito do autor; 2) prova de fato impeditivo do direito do autor; 3) prova de fato extintivo do direito do autor; 4) prova de fato modificativo do direito do autor; 5) prova de nada. Ora, se o juiz tem dúvida somente sobre a existência do fato constitutivo do direito do autor, o único beneficiário real da prova de ofício é o autor, porquanto os resultados (2), (3), (4) e (5) revelam dilação probatória inútil: posto que favoreçam o réu, há tempos a demanda já poderia ter sido rejeitada por ausência de provas. Esse mesmo raciocínio se aplica à hipótese em que o juiz tem dúvida geral (ou seja, dúvida tanto sobre o fato constitutivo quanto sobre o fato impeditivo, extintivo ou modificativo do direito do autor). Por sua vez, se o magistrado tem dúvida sobre a existência do fato impeditivo, extintivo ou modificativo do direito do autor, o único beneficiário real da prova de ofício é o réu, uma vez que os resultados (1) e (5) revelam dilação probatória inútil: embora favoreçam o autor, há tempos a demanda já poderia ter sido julgada procedente. Em suma: a prova ex officio iudicis sempre favorece a parte que tinha o ônus de provar, mas não provou.[3]
Também aqui no espaço do Contraditor alguns textos já foram publicados com críticas ao posicionamento majoritário. Por todos, vale citar a crítica sempre bem construída de Diego Crevelin de Sousa, para quem “os poderes instrutórios são sempre incompatíveis com as garantias da imparcialidade (e, antes, da impartialidade) – seja qual for o procedimento, a natureza do direito discutido ou a condição dos sujeitos envolvidos –, donde inconstitucionais.”[4]
Na continuação de sua abordagem sobre o tema da prova de ofício, Diego Crevelin de Sousa aborda julgados do STJ e enfrenta a questão que se coloca sobre a natureza jurídica: há um dever do juiz ou é sua faculdade determinar a produção de prova de ofício? A conclusão, a partir dos julgados analisados, foi de que a jurisprudência do tribunal consolidou-se no sentido de que há uma faculdade do juiz; havendo dever apenas nos casos envolvendo direitos indisponíveis[5].
Todas essas discussões são altamente pertinentes, entretanto, outro ponto há que ser destacado e ele tem relação com a decisão proferida pela Segunda Turma do STJ no julgamento do Recurso Especial n. 1.693.334 – RJ, a que se fez referência no início deste texto.
Como se viu lá, o posicionamento da Turma foi no sentido de que o juiz tem poderes instrutórios, mas que eles são residuais. O destaque que se quer dar aqui diz respeito à associação entre o tema da produção de prova de ofício com o da lealdade processual.
O relator expôs assim o seu posicionamento a respeito dessa associação:
A lealdade processual é um dos deveres anexos criados pela boa-fé objetiva. Direcionada a todos os partícipes do processo, indica ser dever das partes – no campo probatório – narrar os fatos objeto da demanda, com indicação de todos os elementos probatórios, de forma a permitir que a parte ex adversa exerça o contraditório de forma eficaz. Como bem ensina o professor Arruda Alvim “(…) a lealdade é um paradigma ético, que informa a atividade, no sentido do litigante agir de frente, sem chicanices, sem providências inesperadas, mesmo que tais providências sejam legítimas.” Deixar de apresentar documentos já conhecidos ao tempo da ação e atribuir responsabilidade instrutória ao magistrado, repito, fere de morte, os deveres anexos da boa-fé objetiva na seara processual.
No caso concreto, a partir do que se infere do acórdão, a parte autora tinha conhecimento a respeito da existência de prova documental que poderia ser útil para o julgamento do caso, mas não requereu a sua produção. Após ser proferida sentença de improcedência por falta de provas, em recurso de apelação, a parte autora argumentou que a instrução fora incompleta, pois o juiz não teria determinado a juntada da prova documental.
A conclusão da Turma é irretocável no ponto em que indica não ter o juiz dever de produzir a prova de ofício. Não há, efetivamente, dever. Mas, de qualquer modo, a associação com o tema da lealdade processual é perigosa.
Limpando o campo da análise, é preciso dizer desde já que quando a parte sabe da existência de determinada prova, deixa de requerer a sua produção e, após sentença em seu desfavor, busca atribuir ao julgador a responsabilidade pela produção probatória, tem-se claramente deslealdade processual. Nisso não há como discordar do tribunal.
Entretanto, a afirmação anterior do relator é que pode revestir-se de algum perigo: “indica ser dever das partes – no campo probatório – narrar os fatos objeto da demanda, com indicação de todos os elementos probatórios, de forma a permitir que a parte ex adversa exerça o contraditório de forma eficaz”.
Para o relator, é dever das partes indicar os elementos probatórios. Entretanto, quando se trata de produção de provas, o que se tem não é dever e, sim, ônus.
Quando a parte tem ônus de produzir prova não se pode imputar a ela um dever de indicar os elementos probatórios, ainda que se queira conectar essa indicação com a exigência de lealdade processual e com o exercício do contraditório da parte contrária.
Se há um ônus de provar, a indicação dos elementos probatórios é também um ônus. E, obviamente, a não desincumbência desse ônus acarreta consequências. Se a parte autora, como se viu no caso concreto julgado pelo STJ, não produziu provas suficientes para a formação do convencimento do magistrado, a consequência será fatalmente a improcedência dos seus pedidos.
Essa dinâmica ônus-consequência funciona bem e demonstra a desnecessidade de se trazer para este campo a noção de dever de provar conectada com lealdade processual e contraditório.
Digo isso não porque o contraditório não seja importante na dinâmica da prova. Ele é, mas a conexão que se quis fazer no acórdão é dispensável, porque em nada agrega. Ao contrário, turva a compreensão. O conceito de ônus de provar já satisfaz a noção de contraditório que se quer implantar nessa dinâmica, até mesmo porque toda ela é construída a partir de preclusões sistemáticas, que vão ocorrendo desde a fase inicial do processo até o momento da prolação da decisão de saneamento.
É nesta decisão em que o juiz irá estabelecer os pontos controvertidos e decidir sobre as provas a serem produzidas. E o saneamento vai estabilizar-se, gerando preclusão[6], inclusive, para o juiz, pois não caberia cogitar-se de decisão estável cujo conteúdo pudesse ser alterado/acrescentado pelo magistrado.
Com esse sistema de preclusões, o contraditório fica plenamente preservado, pois a parte adversa tem a segurança de que não será surpreendida por provas que poderiam ser produzidas ou cuja produção poderia ter sido requerida desde antes. E não será surpreendida nem mesmo pelo juiz que deseje produzir prova de ofício.
E também a conexão com a ideia de lealdade processual nada agrega a essa dinâmica, pois a prova, não sendo um dever e, sim, um ônus, caso não produzida, não pode gerar consequência danosa para aquele sobre o qual o ônus não recaía e isso, automaticamente, gerará consequência danosa para aquele que não se desincumbiu desse ônus.
Não há que se falar em deslealdade processual porque uma parte deixou de indicar todos os elementos probatórios. É como pensar o processo judicial de forma romântica, retirando dele a essência do que ele representa na prática: um conflito. Nesse âmbito, impor um dever às partes de indicar todos os elementos probatórios, mesmo os contrários aos seus interesses, é um descompasso com a própria realidade e uma forma de captura de um argumento jurídico por um argumento moral.
Essa captura não pode ser tolerada porque em nada acrescenta ao bom andamento do processo. Há uma sistemática que já permite a imposição de consequências danosas para a parte que não indica todas as provas possíveis e não as produz e isso ficou claro a partir do resultado do processo que chegou ao STJ e que motivou este texto: improcedência do pedido.
A improcedência, naquele caso, decorre da básica e funcional equação ônus da prova-consequência, não havendo qualquer necessidade de se misturar aí um argumento moral de deslealdade processual por desrespeito a um inexistente dever de indicação de elementos probatórios.
[1] DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de Direito Processual Civil. Vol. III. 6ª ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2009, p. 56.
[2] MOREIRA, José Carlos Barbosa. A função social do processo civil moderno e o papel do juiz e das partes na direção e na instrução do processo. In: ____ Temas de direito processual: 3ª série. São Paulo: Saraiva, 1984, p. 55.
[3] COSTA, Eduardo José da Fonseca. Levando a imparcialidade a sério: proposta de um modelo interseccional entre direito processual, economia e psicologia. Tese (Doutorado em Direito Processual Civil) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo: São Paulo: 2016, p. 124-125.
[4] SOUSA, Diego Crevelin de. Ainda e Sempre a Prova de Ofício: o silencioso sepultamento dos poderes instrutórios supletivos no CPC/15. Disponível em: https://www.contraditor.com/52-ainda-e-sempre-a-prova-de-oficio/. Acesso em 02/03/2022. Vale também a leitura de outro texto relevante, de autoria de Luís Gustavo Reis Mundim: https://www.contraditor.com/prova-ex-officio-e-preclusao-a-volta-dos-que-nao-foram/.
[5] SOUSA, Diego Crevelin de. Ainda e Sempre a Prova de Ofício: é correto dizer que o STJ atribui caráter de dever aos poderes instrutórios do juiz? Disponível em: https://www.contraditor.com/79-ainda-e-sempre-a-prova-de-oficio-2/. Acesso em 02/03/2022.
[6] “Permitir que o juiz possa determinar a produção de prova após a preclusão para a parte que não a requereu a tempo e modo ou após ter indeferido a prova e reconsiderado em momento procedimental posterior, é o mesmo que transformar uma garantia das partes em um instrumento do poder estatal, que mantém a violência judicial.” (MUNDIM, Luís Gustavo Reis. A prova ex officio e a preclusão: a volta dos que não foram. Disponível em: https://www.contraditor.com/prova-ex-officio-e-preclusao-a-volta-dos-que-nao-foram/. Acesso em 02/03/2022).