“When the late eighteenth and early nineteenth-century writers on contract set about the task of systematic exposition of the abstract principles of contract law they were engaged upon an enterprise which was new to the common law (for reasons essentially connected with the history of legal education) but old to the civilian tradition; they were trying to do what the civilians, the canonists and the natural lawyers had been doing for centuries. Hence for plagiaristic purposes they turned, as Bracton had done six centuries earlier, and St. Germain three, to the written reason of the Romanist tradition, as a source of analysis, categories, and organizing conceptions in which the local common law could be presented and its lacunae filled with speculative and, hopefully, influential discussion. Integral to this process of reception was the publication in 1806 of a translation of R. J. Pothier’s Treatise on the Law of Obligations” (Simpson, Alfred William Brian, Legal Theory and Legal History – Essays on the Common Law, London, Hambledon, 1987, pp. 178 e 179).
Na nossa coluna do dia 3 de dezembro de 2021, apresentamos ao leitor os direitos reais de matriz inglesa (real property law) como um exemplo de resistência do direito inglês à influência do direito romano e do seu desdobramento doutrinário, o ius commune. Na coluna de hoje, pretendemos mostrar um exemplo do fenômeno oposto, isto é, da recepção, pelo direito inglês, de regras, institutos e princípios de direito romano.
Apesar das evidentes diferenças terminológicas e conceituais que separam os ordenamentos de matriz romana dos de matriz inglesa, a verdade é que o direito inglês já foi influenciado, em diversos momentos da sua longa história, pelo direito romano e, principalmente, pelo ius commune elaborado a partir da intepretação e sistematização das fontes romanas.
Um desses momentos foi o século XIII, no qual foi elaborada a obra De legibus et consuetudinibus Angliae (“Das leis e costumes da Inglaterra”), um tratado de direito inglês presumivelmente escrito por Henry de Bracton, magistrado inglês do período. Hoje se sabe que esse escrito, considerado um dos mais importantes da fase fundacional do common law, foi parcialmente modelado na Summa Codicis do célebre glosador bolonhês Azo, chegando a reproduzir vários fragmentos dessa obra ipsis litteris[1].
O tratado bractoniano representa uma primeira tentativa de empregar categorias e classificações do direito romano para sistematizar o direito inglês. Com efeito, Henry de Bracton estruturou a obra seguindo a célebre tripartição das Institutas de Justiniano em pessoas (personae), coisas (res) e ações (actiones), e cita textualmente diversos fragmentos do Digesto e do Código. A matéria-prima da obra, entretanto, é o common law desenvolvido e aplicado pelos tribunais ingleses, que operavam por meio de um sistema de ações (forms of action) e ordens judiciais (writs) tipificadas[2].
O fim do século XIX também foi propício à recepção de institutos de origem romana. A economia da Inglaterra dependia do comércio e o direito contratual inglês precisava acompanhar essa realidade. A doutrina civilista continental, nesse contexto, serviu de referência na sistematização e organização da vasta e complexa casuística contratual do common law[3]. Assim, os legisladores e juristas ingleses do século XIX se serviram de alguns conceitos e categorias elaboradas pelo ius commune, que durante séculos sistematizara o direito civil a partir dos antigos textos de direito romano[4].
Nesse sentido, vários aspectos da compra e venda inglesa (contract of sale) foram estruturados com base na recepção de regras desenvolvidas pela doutrina civilista. É o caso, notadamente, da responsabilidade do comerciante pela reparação do dano causado ao comprador pelo vício da mercadoria, que configurava uma exceção à regra geral segundo a qual o vendedor não responde pelo dano decorrente de vício da coisa, pois cabe ao comprador exercer cautela ao comprar (caveat emptor).
De acordo com a interessantíssima reconstrução feita por Reinhard Zimmermann desse “transplante” normativo[5], o direito contratual inglês, que na época era eminentemente casuístico e pouco estruturado do ponto de vista dogmático, recepcionou a doutrina de Robert Joseph Pothier[6], que adotava a opinião de Charles Du Moulin[7] (conhecido como Carolus Molinaeus entre os juristas do ius commune) acerca da matéria.
Os motivos da recepção são fáceis de compreender: o ius commune, ao longo de vários séculos, havia abrandado o rigor da regra geral de irresponsabilidade do vendedor, especialmente no âmbito do comércio. Daí que os civilistas franceses, já no século XVIII, entendessem que artífices e comerciantes respondiam pelos danos causados pelo vício da coisa vendida, independentemente de conhecimento prévio do vício ou de cláusula expressa de garantia. O comerciante, portanto, além de poder ser obrigado a abater o preço ou desfazer a venda, respondia também pelo dano sofrido pelo comprador em razão do vício da coisa.
A doutrina francesa, por sua vez, desenvolvera essa exceção a partir de Pomp. 9 ad Sab., D. 19, 1, 6, 4[8], em que se admite (de maneira muito tênue) a responsabilidade do vendedor pelo dano causado pelo vício da coisa, mesmo quando ausente o dolo ou a culpa do vendedor. Pompônio, no texto, adota a opinião de Labeão, que era favorável à responsabilização implícita do vendedor pelo dano que o vício da coisa vendida causasse ao comprador, independentemente de garantia expressa, salvo disposição das partes em sentido diverso.
A Lei de Compra e Venda de Mercadorias de 1896 (Sale of Goods Act 1893[9]) acabou adotando a “regra de Pothier”, presumindo a existência de uma “garantia implícita” (implied warranty) que responsabilizava o comerciante pela reparação do dano causado pelo vício da mercadoria.
O direito positivo inglês recepcionou, assim, uma regra do direito civil dos contratos de origem nitidamente romana. E a doutrina inglesa da época não fez qualquer esforço para dissimular a origem da regra ou a crescente influência do direito civil nessa área do direito inglês. De fato, Mackenzie Dalzell Chalmers, o parlamentar que elaborou o projeto de lei que deu origem à Lei de Compra e Venda de Mercadorias de 1896, escreveu um conhecido tratado acerca do tema, no qual compara vários dispositivos da Lei de Compra e Venda de Mercadorias de 1896 com os dispositivos pertinentes do Code civil francês e com trechos da obra de Pothier, que considera o melhor tratado sobre a matéria até então publicado[10].
Em suma: apesar da sua histórica resistência ao direito romano, o direito inglês, em diversos momentos do seu desenvolvimento, interagiu de maneira significativa com o direito romano. No século XIII, essa interação ocorreu por meio da obra dos glosadores. No século XIX, por sua vez, o direito contratual inglês, buscando sistematizar e organizar seus institutos, aproveitou o esforço intelectual empreendido pelos autores do ius commune. Em ambos os casos, houve a recepção, de maneira mais ou menos intensa, da tradição jurídica civilista fundada no direito romano.
* Esta coluna é produzida pelos professores Bernardo Moraes e Tomás Olcese e por estudiosos convidados, todos interessados no Direito Romano e suas conexões com o Direito Contemporâneo.
* Uma parte deste texto foi extraída, com adaptações, de um artigo da minha autoria: T. Olcese, O Método Histórico-Comparativo Aplicado ao Estudo das Tradições Jurídicas Civilista e Inglesa, in E. C. Silveira Marchi, Estudos em Memória do Professor Thomas Marky, São Paulo, YK, 2019, pp. 405-426.
[1] Para uma comparação textual, cf. K. E. Güterbock, Henricus de Bracton und sein Verhältniss zum römischen Rechte: Ein beitrag zur geschichte des römischen rechts in mittelalter, Berlin, Springer, 1862, trad. ao ing. de B. Coxe, Bracton and His Relation to Roman Law: A Contribution to the History of the Roman Law in the Middle Ages, Philadelphia, Lippincott, 1866. A edição padrão da obra Bracton é G. E. Woodbine, Bracton De legibus et consuetudinibus Angliae (c. 1268), vols. I-IV, New Haven, Yale, 1915-1942. Uma versão digital pesquisável dos manuscritos da obra se encontra em https://amesfoundation.law.harvard.edu/Bracton/ [08-03-2022].
[2] Acerca do tema, cf. R. C. Caenegem, The Birth of the English Common Law, Cambridge, Cambridge University, 1997, pp. 29-61 e, de modo geral, J. Gilissen, Introduction historique au Droit, 1976, trad. ao port. de A. M. Espanha e M. M. Malheiros, Introdução Histórica ao Direito, 4ª ed., Lisboa, Calouste Gulbenkian, 2003, pp. 209-213.
[3] Acerca da influência da tradição romanista no movimento de estruturação do direito contratual do common law, cf. K. M. Teeven, A History of Legislative Reform of the Common Law Contract, in University of Toledo Law Review, 26 (1994-1995), pp. 69-80.
[4] A respeito da influência da tradição civilista e do direito romano na formação do direito contratual inglês moderno, é esclarecedora, cf. A. W. B. Simpson, Legal Theory and Legal History – Essays on the Common Law, London, Hambledon, 1987, pp. 178 e ss.
[5] Acerca do tema, cf. R. Zimmermann, The Law of Obligations – Roman Foundations of the Civilian Tradition (1990), Oxford, Clarendon, 1996, pp. 334-335.
[6] R. J. Pothier, Traité du contrat de vente, in J. J. Bugnet (org.), Ouvres de Pothier, vol. III, 2ª ed., Paris, Cosse et Marchal, 1861, p. 88, nt. 213: “Il y a un cas auquel le vendeur, quand même il aurait ignoré absolument le vice de la chose vendue, est néanmoins tenu de la réparation du tort que ce vice a causé à l’acheteur dans ses autres biens; c’est le cas auquel le vendeur est un ouvrier, ou un marchand qui vend des ouvrages de son art, ou du commerce dont il fait profession. Cet ouvrier ou ce marchand est tenu de la réparation de tout le dommage que l’acheteur a souffert par le vice de la chose vendue, en s’en servant à l’usage auquel elle est destinée, quand même cet ouvrier ou ce marchand prétendrait avoir ignoré ce vice” (Há um caso em que o vendedor, mesmo ignorando completamente o defeito da coisa vendida, responde, no entanto, pela reparação do dano que o vício da coisa causar às outras coisas do comprador; é o caso em que o vendedor é um artífice, ou um comerciante que vende o produto da sua obra, ou faz do comércio a sua profissão. O artífice ou comerciante responde pela reparação de todo o dano que o comprador sofrer em razão do vício da coisa vendida, ao usá-la em conformidade com a sua destinação, mesmo quando o artífice ou comerciante não tiver conhecimento do vício).
[7] C. Molinaeus, Tractatus de eo quod interest, Venetiis, 1574, § 49, pp. 105-106: “Cum enim vasculariam profiteatur, sive vasa cudat, sive at aliis facta vendat, et sic hanc artem vel negotiationem exercendo, si non semper expresse, saltem semper tacite ipso facto, et ex professo affirmat vasa ad usum, ad quem prostant, veneant, vel elocantur, idonea, integra esse” (“Quando, pois, for exercida a profissão de fornecedor de vasilhas, seja fazendo vasilhas, seja vendendo vasilhas feitas, e assim se exerça a arte ou o comércio, mesmo que não sempre expressamente, pelo menos pelo próprio fato tacitamente, e em razão da profissão for confirmada a utilidade das vasilhas, devem ser adequadas e íntegras para quem forem expostas, vendidas ou locadas”).
[8] Pomp. 9 ad Sab., D. 19, 1, 6, 4: “Si vas aliquod mihi vendideris et dixeris certam mensuram capere vel certum pondus habere, ex empto tecum agam, si minus praestes. Sed si vas mihi vendidieris ita, ut adfirmares integrum, si id integrum non sit, etiam id, quod eo nomine perdiderim, praestabis mihi: si vero non id actum sit, ut integrum praestes, dolum malum dumtaxat praestare te debere. Labeo contra putat et illud solum observandum, ut, nisi in contrarium id actum sit, omnimodo integrum praestari debeat: et est verum” (Se tiveres vendido a mim uma vasilha, e tiveres dito que nela cabia uma certa medida, ou que tinha certo peso, agirei contra ti pela ação de compra, se me entregares menos. Mas se tiveres vendido a mim a vasilha, e afirmares que está em perfeito estado, se não estiver em perfeito estado, responderás também por aquilo que por causa disso eu tiver perdido; mas se não fosse acordada a entrega em perfeito estado, deverás responder apenas pelo dolo mau. Labeão opina o contrário, e que apenas se deve observar isto, que se não houver acordo diverso, de qualquer maneira deve ser entregue em perfeito estado, e é verdade).
[9] Sale of Goods Act 1893, § 14.1: “Where the buyer, expressly or by implication, makes known to the seller the particular purpose for which the goods are required, so as to show that the buyer relies on the seller’s skill or judgment, and the goods are of a description which it is in the course of the seller’s business to supply (whether he be the manufacturer or not), there is an implied condition that the goods shall be reasonably fit for such purpose, provided that in the case of a contract for the sale of a specified article under its patent or other trade name, there is no implied condition as to its fitness for any particular purpose. § 14.2: Where goods are bought by description from a seller who deals in goods of that description (whether he be the manufacturer or not), there is an implied condition that the goods shall be of merchantable quality; provided that if the buyer has examined the goods, there shall be no implied condition as regards defects which such examination ought to have revealed” (Lei de Compra e Venda de Mercadorias de 1893, § 14.1: Nos casos em que o comprador, expressa ou implicitamente, comunica ao vendedor a finalidade específica a que se destinam os bens, restando evidente que o comprador confia na perícia ou discernimento do vendedor, e a descrição dos bens se ajusta àquilo que o vendedor habitualmente fornece no mercado [independentemente de ser ele o fabricante ou não], haverá uma garantia implícita de que os bens serão razoavelmente idôneos para essa finalidade, desde que no caso do contrato de venda de uma coisa específica sob sua patente ou marca não haja uma garantia implícita de idoneidade para uma finalidade específica. § 14.2: Nos casos em que os bens sejam comprados com base na descrição feita por um vendedor comerciante de bens da mesma descrição [independentemente de ser ele o fabricante ou não], haverá uma garantia implícita de que a qualidade dos bens será adequada para o mercado; porém, se o comprador tiver examinado os bens, não haverá garantia implícita no que diz respeito aos defeitos que esse exame deveria ter revelado).
[10] M. D. Chalmers, The Sale of Goods Act, 8ª ed., London, Butterworth, 1920, pp. IX-X e 46-47. Cabe mencionar que o Sale of Goods Act de 1893 foi revogado pelo Supply of Goods Act de 1973, que por sua vez foi substituído pelo Sale of Goods Act de 1979, ainda em vigor hoje.