COMO CITAR O CORPUS IURIS CIVILIS

E estabelecemos a mesma pena de falsidade também contra aqueles que, no futuro, tiverem a audácia de redigir as nossas leis de forma ininteligível, com abreviaturas. De fato, queremos que tudo, isto é, quer os nomes dos juristas, quer os títulos, quer os números dos livros, seja expresso por uma sequência de letras e não por abreviaturas, de modo que qualquer um que tiver adquirido para si um tal livro, no qual se encontrem abreviaturas em qualquer lugar do livro ou volume, saiba que é dono de um código inútil” (Justiniano, Const. Tanta 22).

 

Por muito tempo houve dúvida se o que hoje chamamos de Corpus Iuris Civilis[1] era aplicado na prática pelos juristas de época justinianeia. O questionamento era justificável por conta da dificuldade (e custo) de produção de cópias de um texto tão extenso (vale lembrar que todas as cópias eram manuscritas e que só o Digesto contém mais palavras que a versão oficial da Bíblia católica).

Descobertas recentes, contudo, têm firmado a opinião de que a compilação como um todo era efetivamente empregada nos cursos de direito da época (os principais estavam em Constantinopla e Beirute) e pelos aplicadores do direito. Exemplo interessante disso é um papiro divulgado há poucos anos que, em sendo de época justinianeia, demonstra uma efetiva circulação de cópias das partes do Corpus Iuris Civilis em alguns cantos do Império: P.Berol. Inv. 14081[2] (evidentemente a dúvida se apresenta principalmente com relação ao Digesto e ao Código, uma vez que as Institutas, pelo seu caráter didático e simplificado, efetivamente devem ter sido bastantes estudadas, ao menos em ambiente acadêmico).

E, a ser verdade isso (e provavelmente é), justifica-se a preocupação de Justiniano (em Const. Tanta 22) com a produção de cópias que não gerassem ambiguidades ou dúvidas em sua leitura. As abreviaturas, em particular, eram um dos principais problemas porque não havia um padrão delas (elas eram muito comuns porque o custo do material de suporte de escrita fazia com que se buscasse sempre economizar com uma redação mais compacta).

A solução (ideal, mas custosa) era proibir abreviaturas nos “códigos” produzidos para serem usados pelos estudantes e aplicadores do direito (algo que, até hoje, é regra para a publicação de nossas leis[3]), em especial quanto aos elementos que serviam para identificar um trecho do texto legal (no caso do Digesto, os nomes dos juristas, os títulos e os números dos livros). Havia, portanto, também uma preocupação quanto à forma de citação dos textos.

É difícil dizer ao certo se essa determinação foi efetivamente seguida, mas certamente causava inconvenientes práticos. Não deve, por isso, causar surpresa que, a partir do renascimento do estudo do Corpus Iuris Civilis no século XI, os manuscritos e, depois, as edições impressas das fontes romanas mui frequentemente passaram a adotar abreviaturas (no texto e nas citações). E a preocupação de Justiniano se confirmou: os leitores das fontes começaram a ter dificuldade de ler seu texto. Quem já se aventurou a tentar ler edições impressas (ou manuscritos) anteriores ao século XVI sabe como não é fácil a leitura em especial por conta das abreviaturas.

Daí terem começado a se difundir livros cujo único propósito era decodificar essas abreviaturas[4] e se ter buscado alguma forma mais simples de se referir a cada trecho legal, com o emprego de números (nas edições de época justinianeia somente os livros e títulos eram numerados). Foi-se desenvolvendo a forma de citação do Corpus Iuris Civilis, cujas regras oscilaram ao longo do tempo. Regras de grande importância prática, pois, até os séculos XIX e XX, essa compilação estava em vigor em muitos países do mundo (ou seja, saber citar esse texto equivalia a saber citar um texto legal qualquer hoje).

Para dar exemplo dessa importância, um dos primeiros volumes da revista mensal de jurisprudência do Tribunal de Justiça de São Paulo (ou seja, do principal órgão do Poder Judiciário na cidade onde havia sido fundada a primeira Faculdade de Direito do Brasil, em 1827) abordou a questão: como as citações do direito romano estavam se tornando frequentes na revista (para reforçar, corrigir ou complementar o direito nacional), sentiu-se a necessidade de as padronizar. Por isso, um dos coordenadores do periódico escreveu (em 1898) um mui objetivo e detalhado guia para leitura e compreensão das referências a fontes jurídicas romanas (com grande destaque ao Digesto)[5].

Até hoje há oscilação na forma de citação das partes do Corpus Iuris Civilis. De um modo geral, não se pode dizer que uma é mais ou menos correta do que outra. O que se pode pensar é que uma pode ser mais ou menos adequada ao destinatário do estudo que está sendo feito. Entretanto, há certo padrão na melhor doutrina. Conhecer a forma adequada de citar facilita a localização de citações feitas e, ao empregá-la em textos, induz o leitor a confiar ou não na citação.

Mais um exemplo: ainda hoje se vê civilistas citando trechos do Digesto de forma que os fragmentos e seus parágrafos são indicados antes do livro e título do Digesto (mais ou menos como se faz hoje com os textos legais em vigor, pois usualmente cita-se o número do artigo antes da referência ao texto legal[6]) e indicando o fragmento e seus parágrafos como “lex” (abreviado como “l.”). Algo como: l. 2, 1, D. 18, 2 (de contr. emptione). O problema é que essa é uma forma típica de citar do século XIX, que já foi abandonada há tempos pela romanística. Isso induz o leitor atento a pensar que se trata de uma cópia de citação de obra muito antiga (sem controle, pelo pesquisador, da fonte exata) – e normalmente a preocupação se confirma (não tendo quem fez a citação consultado diretamente as fontes).

A boa notícia é que a forma padrão atual é das mais simples já empregadas, conjugando abreviaturas (que indicam a parte do Corpus Iuris Civilis) com números. Vejamo-la, de forma objetiva, para cada uma das quatro partes:

 

(i)Institutas[7]:

    1. Abreviatura: Inst. (ou I.).
    2. Elementos básicos: número do livro (são quatro livros no total), número do título (variável de acordo com o livro) e número do parágrafo (variável de acordo com o título).
    3. Peculiaridades: (i) o primeiro parágrafo de cada título é indicado com a abreviatura “pr.” (de “principium”) e não com o número “1”; já o segundo parágrafo é indicado com o número “1” e assim sucessivamente. Antes de “pr.” não se costuma inserir vírgula. (ii) os seguintes títulos têm um único parágrafo e, por isso, não indicam o seu número: Inst. 1, 7; 1, 17; 1, 18; 1, 19; 3, 21.
    4. Exemplos: Inst. 3, 23 pr. (= Institutas, livro 3º, título 23, primeiro parágrafo); Inst. 4, 18, 5 (= Institutas, livro 4º, título 18, sexto parágrafo – não é o quinto porque o primeiro se indica com “pr.”).

 

(ii) Digesto[8]:

    1. Abreviatura: D. (ou Dig.).
    2. Elementos básicos: número do livro (são cinquenta livros no total), número do título (variável de acordo com o livro), número do fragmento (variável de acordo com o título), número do parágrafo (variável de acordo com o fragmento).
    3. Peculiaridades: (i) o primeiro parágrafo de cada fragmento (quando há mais de um) é indicado com a abreviatura “pr.” (de “principium”) e não com o número “1”; já o segundo parágrafo é indicado com o número “1” e assim sucessivamente. Antes de “pr.” não se costuma inserir vírgula. (ii) os seguintes livros não são divididos em títulos e, por isso, não indicam o seu número: 30, 31 e 32. (iii) nem todos os fragmentos são divididos em parágrafos.
    4. Exemplos: D. 18, 1, 1 pr. (= Digesto, livro 18, título 1º, primeiro fragmento, primeiro parágrafo); D. 9, 2, 1, 1 (= Digesto, livro 9º, título 2º, primeiro fragmento, segundo parágrafo – não é o primeiro porque o primeiro se indica com “pr.”); D. 30, 1 (= Digesto, livro 30, primeiro fragmento – esse livro não é dividido em títulos e esse fragmento não é dividido em parágrafos).

 

(iii)Código[9]:

    1. Abreviatura: C. (ou Cod.).
    2. Elementos básicos: número do livro (são doze livros no total), número do título (variável de acordo com o livro), número da constituição imperial (variável de acordo com o título), número do parágrafo (variável de acordo com a constituição imperial), ano de promulgação da constituição imperial (indicado depois, entre parêntesis).
    3. Peculiaridades: (i) o primeiro parágrafo de cada constituição imperial (quando há mais de um) é indicado com a abreviatura “pr.” (de “principium” ou “praefatio”) e não com o número “1”; já o segundo parágrafo é indicado com o número “1” e assim sucessivamente. Antes de “pr.” não se costuma inserir vírgula. (ii) não se sabe a data de algumas constituições imperiais. (iii) alguns títulos contêm apenas uma constituição imperial, mas ainda assim ela é indicada com o número “1” (como C. 12, 41, 1).
    4. Exemplos: C. 4, 21, 17 pr. (528 d.C.) [= Código, livro 4º, título 21, décima sétima constituição imperial, primeiro parágrafo]; 2, 12, 7 (223 d.C.) [= Código, livro 2º, título 12, sétima constituição imperial, que não é dividida em parágrafos]; C. 3, 28, 35, 2 (531 d.C.) [= Código, livro 3º, título 28, trigésima quinta constituição imperial, terceiro fragmento – não é o segundo porque o primeiro se indica com “pr.”].

 

(iv)Novelas[10]:

    1. Abreviatura: Nov. (ou N.).
    2. Elementos básicos: número da constituição imperial (são 168 no total), número do capítulo (variável), ano de promulgação da constituição imperial (indicado depois, entre parêntesis).
    3. Peculiaridades: (i) a primeira parte de cada constituição, antes da divisão em capítulos (quando houver) é indicada com a abreviatura “pr.” (de “praefatio”) e não com o número “1”. (ii) não se sabe a data exata de algumas constituições imperiais.
    4. Exemplos: Nov. 78 pr. (539 d.C.) [= Novelas, constituição 78, praefatio]; Nov. 119, 2 (544 d.C.) [= Novelas, constituição 119, capítulo 2º].

 

Observações gerais: 1) alguns autores utilizam pontos, ao invés de vírgulas, para separar as indicações numéricas (e.g. D. 18.1.1 pr.; D. 9.2.1.1); 2) a edição padrão atualmente para as referências (que podem ser diferentes em edições antigas) é a seguinte: T. Mommsen e P. Krüger, Corpus Iuris Civilis I, 15ª ed., Berlin, Weidmann, 1928 (para as Institutas e o Digesto); P. Krüger, Corpus iuris civilis II, 10ª ed., Berlin, Weidmann, 1929 (para o Código); R. Schöll – G. Kroll, Corpus Iuris Civilis III – Novellae, 5ª ed, Berlin, Weidmann, 1928 (para as Novelas)[11]; 3) em citações mais antigas, por vezes são inseridos números entre parêntesis (que não os anos nas citações do Código e das Novelas) – esses números indicam divisões de texto de edições antigas do Corpus Iuris Civilis e não precisam ser reproduzidas [por exemplo: ao invés de D. 48, 5, 9 (8), 1, indicar simplesmente D. 48, 5, 9, 1].

Todas essas indicações parecem complicadas em um primeiro momento, mas a prática faz com essa forma de citar se torne rapidamente natural e descomplicada. Entender a forma de citar adequada das fontes romanas é fundamental para aqueles que querem se tornar romanistas e muito importante para todos aqueles que querem se ilustrar a partir da quase inesgotável fonte que é o Corpus Iuris Civilis.

 

* Esta coluna é produzida pelos professores Bernardo Moraes e Tomás Olcese e por estudiosos convidados, todos interessados no Direito Romano e em suas conexões com o Direito Contemporâneo.

[1] Cf. nossa coluna anterior (“O texto ilustre: Corpus Iuris Civilis”), publicada em 04-02-2022.

[2] Cf. D. Mantovani – M. Fressura, P.Berol. Inv. 14081 – Frammento di una nuova copia del Digesto di età giustinianea, in Athenaeum 105/2 (2017), p. 689 e ss.

[3] Com poucas abreviaturas expressamente permitidas, como o exemplo de “art.” (LC 95/1998, art. 10, I: “a unidade básica de articulação será o artigo, indicado pela abreviatura “Art.”, seguida de numeração ordinal até o nono e cardinal a partir deste”).

[4] Por exemplo: Modus legendi abbreviaturas in utroque iure, s.ed., 1505.

[5] F. Soter de Faria, Citações do Digesto: modo de fazê-las, in Revista mensal das decisões proferidas pelo Tribunal de Justiça de S. Paulo IV-9 (1898), p. 95 e ss.

[6] Por exemplo: “art. 113 do Código Civil” (e não “Código Civil, art. 113”).

[7] Promulgadas em 533 d.C.: manual para estudantes de direito do primeiro ano dos cursos da época (em Constantinopla e Beirute), elaborado com base nas famosas Institutas de Gaio.

[8] Promulgado em 533 d.C.: compilação de fragmentos de obras de juristas do período clássico do direito romano, com ênfase em textos de juristas indicados da Lei das Citações (de 426 d.C. – Gaio, Modestino, Papiniano, Paulo e Ulpiano) e influenciado pela sistematização de matérias do edito do pretor (outra importante fonte do direito clássico). Foi a obra mais original do conjunto (sem conhecidos modelos anteriores) e mais importante para a construção do direito contemporâneo.

[9] Promulgado, em sua versão revista, em 534 d.C.: compilação de normas elaboradas por imperadores romanos desde o início do século II d.C.[9] até a data de sua promulgação.

[10] Compilação de normas elaboradas por Justiniano depois do Código, mas que nunca teve uma promulgação oficial.

[11] Cf. https://www.bernardomoraes.com/biblioteca-dr

Autor

  • Bacharel, Doutor e Livre-Docente pela Faculdade de Direito da USP (FDUSP), Especialista (“Perfezionato") em Direito Romano pela Università di Roma I – La Sapienza, Professor Associado (graduação e pós-graduação) da FDUSP (Direito Civil e Direito Romano). Procurador Federal (AGU) – https://www.bernardomoraes.com



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