O presente trabalho tem por intuito apresentar algumas reflexões sobre a relevância da distribuição do ônus da prova no êxito ou insucesso da demanda indenizatória fundada no erro médico. A complexidade da matéria e a dificuldade na obtenção das provas, em muitos casos, comprometem a formação de um juízo de convicção e, por isso, a incidência das regras do ônus da prova pode ser determinante para o desenlace da demanda. Ao final, sem a pretensão de exaurir o assunto, são propostas algumas diretrizes para que se alcance um equilíbrio na motivação veiculada na decisão judicial que inverte o ônus da prova.
Como anotado nesta coluna, em outra oportunidade, por Igor de Lucena Mascarenhas, observa-se um intenso aumento da judicialização da Medicina. No passado, eventual mau resultado da prática médica se inseria em uma área de falibilidade e da própria restrição da Ciência Médica. Atualmente, o médico passa a ser visto como ser falível e a possibilidade de culpa profissional passou a ser interpretada como presunção de culpa, cabendo, por vezes, ao médico comprovar a ausência de culpa e o cumprimento dos deveres profissional[1].
Essa percepção de aumento da judicialização da Medicina é confirmada pelo crescimento do número de novas ações aforadas ano após ano tendo como fundamento o erro médico. Segundo dados do relatório Justiça em Números do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), na Justiça Estadual, no ano de 2018, ingressaram 14.575 novas ações no primeiro grau de jurisdição; no ano seguinte, 2019, foram 19.151 e, no último ano, em 2020, o número ascendeu a 21.043 ações indenizatórias propostas cujo assunto é “Erro Médico”[2]. Registre-se que o número total de casos novos ajuizados no primeiro grau sofreu uma redução do ano de 2019 para 2020[3], provavelmente em razão da pandemia do Coronavírus, porém essa tendência de queda verificada no quadro geral das ações não se refletiu nas demandas indenizatórias por erro médico.
Nessas milhares de ações indenizatórias, o estabelecimento ou não da responsabilidade médica emerge como um desafio a ser superado. Alguns motivos podem ser apontados.
Primeiro, em razão da própria complexidade que envolve a atividade médica. Quando se cuida da saúde do ser humano, nunca se poderá afirmar, de antemão, que a não obtenção da cura é imputável ao ato médico. Miguel Kfouri Neto, com propriedade, lembra que “em nenhuma outra atividade profissional o êxito estará sujeito a tantos fatores que refogem por inteiro ao controle quanto na Medicina”. A complexidade do organismo humano, a inevitável influência de fatores externos, as reações imprevisíveis e variáveis dos doentes são fatores que interferem no ato médico e fazem da incerteza atributo indissociável da prática médica[4].
Além das incertezas que permeiam o ato médico, a atividade probatória exige do julgador conhecimentos na seara da Medicina que, comumente, são alheios à atividade judiciária. A prova pericial que, no mais das vezes, é indispensável nas demandas indenizatórias nem sempre se exibe satisfatória para o esclarecimento dos pressupostos fáticos invocados pelas partes para amparar o direito.
A par disso, ainda, provar a existência da culpa médica, requisito indispensável para a configuração da responsabilidade, é sempre tarefa difícil, na medida em que a Medicina é ciência complexa, com resultados aleatórios, imponderáveis, ínsitos à natureza humana[5].
Diante dessas dificuldades que avultam das ações por erro médico, a incidência das regras atinentes ao ônus da prova é um fator relevante a ser considerado para o sucesso ou não da demanda indenizatória.
As normas sobre o ônus da prova se destinam a auxiliar o julgador para resolução do caso concreto em um ambiente de escassez de provas ou na persistência de fatos não esclarecidos.
Ônus da prova é encargo que recai sobre as partes do processo para demonstração de determinados fatos alegados, cuja inobservância pode colocar o sujeito onerado numa situação de desvantagem[6]. Esse encargo pode ser atribuído: a) pela legislação (art. 373, inciso I e II do CPC); b) pelo juiz (art. art. 373, § 1º do CPC ou art. 6º, inciso VIII do CDC); c) pela convenção das partes.
O ônus da prova pode ser considerado como regra de julgamento, incidindo nas situações em que, ao final da demanda, persistem fatos controvertidos não devidamente comprovados durante a instrução probatória. É regra que se aplica apenas no caso de inexistência ou insuficiência de prova, uma vez que, tendo sido a prova produzida e o fato comprovado, não importa por quem, o princípio não se aplicará. Mas também é regra de conduta das partes, porque indica quem potencialmente será prejudicado diante da ausência ou insuficiência da prova[7].
Admitida como regra de conduta destinada às partes, incumbe ao magistrado, quando a distribuição do ônus da prova se der por força de decisão judicial, indicar qual das partes tem o ônus de provar a fim de que se propicie a ela se desincumbir desse encargo.
Embora não haja uma correlação direta entre inversão do ônus da prova e o sucesso da demanda, a decisão judicial que define a distribuição dos encargos probatórios assume papel relevante para o desfecho do julgamento na medida em que atribuir, por exemplo, ao médico, o ônus de demonstrar que não agiu com culpa pode levar à procedência do pedido indenizatório.
Aplica-se, comumente, a regra legal, competindo ao autor provar os fatos que constituem o direito por ele afirmado, enquanto que ao réu impende a demonstração dos fatos impeditivos, modificativos e extintivos do direito do autor (art. 373, incisos I e II do CPC).
Excepcionalmente, autoriza-se ao juiz, de ofício ou a requerimento da parte, a redistribuição do ônus probatório, cuja decisão pode ser impugnada via agravo de instrumento, conforme dispõe o art. 1015, inciso XI do CPC.
Atualmente, nas ações indenizatórias por erro médico, a distribuição do ônus da prova feita pelo juiz pode se fundar tanto na norma de caráter geral do art. 373, § 1º, do CPC, como no regramento específico contido no art. 6º, inciso VIII do CDC.
O art. 373, § 1º, do CPC consagra uma regra geral de inversão judicial do ônus da prova ou distribuição dinâmica do ônus da prova pelo juiz, desde que preenchidos certos pressupostos e diante do caso concreto.
Nada impede que a regra sobre a distribuição dinâmica do ônus da prova positivada no CPC seja aplicada nas causas envolvendo erro médico.
Miguel Kfouri Neto, mesmo antes da entrada em vigor do novo CPC, já proclamava ser censurável a postura estritamente estática dos litigantes na atividade probatória (art. 333 do CPC de 1973), admitindo, de lege ferenda e excepcionalmente, a dinamização da distribuição da carga probatória, mesmo fora das relações de consumo. Com o advento do novo CPC, defende, firmemente, que a fórmula das cargas probatórias dinâmicas é a mais adequada para ser aplicada nos casos de responsabilidade civil do médico e não a pura e simples inversão do ônus da prova do Código de Defesa do Consumidor[8].
Em sintonia com esse entendimento, o Superior Tribunal de Justiça admite que, em casos de erro médico, a teoria da distribuição dinâmica da prova pode incidir[9].
Não obstante o advento da regra geral sobre a distribuição do encargo probatório prevista no CPC, persiste a possibilidade de inversão com fundamento no Código de Defesa do Consumidor. O médico é prestador de serviço pelo que, embora subjetiva sua responsabilidade, está sujeito à disciplina do CDC e, em consequência, pode o juiz inverter o ônus da prova em favor do consumidor, conforme autoriza o art 6º, inciso VIII do CDC[10]. Essa possibilidade também encontra guarida na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça[11].
Independentemente do fundamento legal que ancore a redistribuição do ônus da prova, seja com fulcro no art. 373, § 1º, do CPC ou do art. 6º, inciso VIII do CDC, é de suma importância que o magistrado se atente para algumas diretrizes que não podem ser ignoradas na fundamentação da decisão. Pode-se dizer que os pontos a serem observados pelo magistrado se ligam ao momento em que será proferida a decisão e à motivação do ato decisório.
Com relação ao momento da distribuição do ônus, há consenso de que a fase processual mais oportuna para isso se dá por ocasião da decisão de saneamento e organização do processo (art. 357, inciso III do CPC), o que possibilitará à parte se desincumbir do encargo que lhe está sendo atribuído. Não é possível a inversão judicial do ônus da prova feita na sentença[12].
A distribuição judicial do ônus da prova deve ser veiculada em decisão motivada, seja por expressa exigência do CPC (art. 373, § 1º), seja por imperativo do art. 93, IX da CF.
É seguro se afirmar que a principal motivação para aplicação da teoria da distribuição dinâmica do ônus da prova é atribuir o encargo para a parte mais preparada para dele se desincumbir[13]. O § 1º, do art. 373 do CPC conferiu concretude a esse princípio, dispondo que, nos casos de excessiva dificuldade de cumprir o encargo da regra geral ou à maior facilidade de obtenção da prova do fato contrário, poderá o juiz atribuir o ônus da prova de modo diverso.
Admitindo-se a possibilidade de aplicação do Código de Defesa do Consumidor nas ações de indenização fundadas no erro médico, a inversão do ônus da prova pode ocorrer: a) quando verossímil a alegação do autor supostamente vítima do erro médico, segundo as regras de experiência. b) quando o autor for hipossuficiente.
O juízo de verossimilhança deve ser obtido do cotejo dos argumentos expendidos pela parte autora e pelo requerido, no caso o médico. O que, em um primeiro momento, pode parecer bastante plausível indicando uma deficiência na atuação médica, posteriormente, quando esclarecido na resposta, pode revelar algo justificável ou como consequência normal do procedimento médico.
Quanto ao outro requisito, no mais das vezes, o argumento determinante para justificar a hipossuficiência na responsabilidade civil médica reside na ausência de condições técnicas do paciente. O médico tem maiores condições técnicas de demonstra a regularidade ou não de sua atuação profissional. Enfatize-se que a circunstância de que não deter conhecimentos técnicos na área da medicina é insuficiente para configurar a hipossuficiência da parte demandante. O simples fato de a resolução da controvérsia depender de conhecimentos de ordem técnica, inerentes às ciências médicas, não permite concluir pela hipossuficiência, mesmo porque é justamente para vencer essa dificuldade que a prova técnica deve ser deferida.
Constatada a presença dos pressupostos legais para a inversão do ônus da prova, incumbe ao julgador definir qual ou quais pontos controversos serão objeto da redistribuição do encargo probatório.
Mesmo se a inversão do ônus da prova for estribada no Código de Defesa do Consumidor, impende ao magistrado discriminar quais fatos constitutivos – originariamente atribuídos ao autor – devem ser demonstrados pelo réu. Inadmissível decisão que simplesmente inverte o ônus da prova, sem demais considerações, tais como: “Presentes os pressupostos, inverto o ônus da prova a fim de que o réu demonstre que são inverídicos os fatos alegados pelo autor”.
Decisões judiciais que pura e simplesmente invertem o ônus da prova, levadas às últimas consequências, atribuem ao médico a demonstração da própria inexistência do dano, quando, na realidade, é cediço que o ônus da comprovação da extensão dos prejuízos, sejam de índole material ou moral, repousa sobre a parte autora.
Eduardo Cambi assevera que o juiz, ao inverter o ônus da prova, deve fazê-lo sobre fato ou fatos específicos, referindo-se a eles expressamente; deve evitar a inversão do onus probandi para todos os fatos que beneficiam o consumidor, de forma ampla e indeterminada, pois acabaria colocando o fornecedor o encargo de prova negativa absoluta ou indefinida, o que é imposição diabólica” [14].
Nas demandas fundadas em erro médico, essa repartição do encargo satisfaz imperativo de justiça e se relaciona à busca da verdade real. Nessa perspectiva, incumbirá ao juiz, ao determinar as prova necessárias à formação de seu convencimento, tornar claro qual das partes deverá produzi-las e quais as possíveis consequências da frustração da prova[15].
A toda evidência que há situações em que o médico terá maiores condições de demonstrar a regularidade de sua atuação ou que o autor estará impossibilitado de demonstrar o nexo de causalidade entre a prática médica e o dano. Porém, mesmo nessas hipóteses de hipossuficiência flagrante do paciente, não se pode legitimar que a inversão implique em impossibilidade de defesa.
O equilíbrio, nesse contexto, deve ser buscado caso a caso, de modo que fique resguardado eventual direito do paciente hipossuficiente sem que isso represente aniquilamento do direito de defesa do médico.
[1] MASCARENHAS, Igor de Lucena. Judicialização da Saúde Complementar. https://www.contraditor.com/judicializacao-da-saude-complementar/#_ftn2. Acesso em 04.10.2021.
[2]Disponível em: https://paineis.cnj.jus.br/QvAJAXZfc/opendoc.htm?document=qvw_l%2FPainelCNJ.qvw&host=QVS%40neodimio03&anonymous=true&sheet=shResumoDespFT. Acesso em 20.10.2021. Foram considerados os números referentes à Justiça Estadual (Juízos Cíveis e Juizados Especiais Cíveis) que é o ramo da Justiça com competência para processar e julgar os casos envolvendo erro médico.
[3] Em 2019, na Justiça Estadual, foram 26.488.008 novos casos ajuizados e, no ano de 2020, 17.658.732 novas ações.
[4] KFOURI NETO, Miguel. Responsabilidade civil dos hospitais: Código Civil e Código de Defesa do Consumidor, 3ª edição. São Paulo: RT, 2018, p. 54/55.
[5] KFOURI NETO, Miguel. Responsabilidade civil dos hospitais: Código Civil e Código de Defesa do Consumidor, 3ª edição. São Paulo: RT, 2018, p. 53/54.
[6] DIDIER JR., Fredie. 2016. Curso de Direito Processual Civil – Vol. 2. Salvador: Juris Podium, 2016, p. 110.
[7] NEVES, Daniel Amorim Assumpção. 2016. Novo Código de Processo Civil. Salvador: Juspodium, 2016, p. 656.
[8] KFOURI NETO, Miguel. Responsabilidade civil dos hospitais: Código Civil e Código de Defesa do Consumidor, 3ª edição. São Paulo: RT, 2018, p. 67/107.
[9] Nesse sentido: AREsp 1682349/DF, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, julgado em 13/10/2020, DJe 22/10/2020.
[10] CAVALIEIRI FILHO, Sérgio. Programa de Responsabilidade Civil, 8ª edição. São Paulo: Atlas, 2008, p. 376.
[11] AgInt no AREsp 1649072/RJ, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 10/08/2020, DJe 13/08/2020.
[12] Pacificando a questão, tem-se o REsp 802.832/MG, Rel. Ministro PAULO DE TARSO SANSEVERINO, SEGUNDA SEÇÃO, DJe de 21/9/2011. Mais recente: REsp 1286273/SP, Rel. Ministro MARCO BUZZI, QUARTA TURMA, julgado em 08/06/2021, DJe 22/06/2021.
[13] NEVES, Daniel Amorim Assumpção. 2016. Novo Código de Processo Civil. Salvador: Juspodium, 2016, p. 659.
[14] CAMBI, Eduardo apud DIDIER JR., Fredie. 2016. Curso de Direito Processual Civil – Vol. 2. Salvador : Juris Podium, 2016, p. 127.
[15] KFOURI NETO, Miguel. Responsabilidade civil dos hospitais: Código Civil e Código de Defesa do Consumidor, 3ª edição. São Paulo: RT, 2018, p. 108.