O JUIZ CHICÓ: “NÃO SEI, SÓ SEI QUE FOI ASSIM”

juiz Chicó

A presente coluna visa denunciar a insuficiência epistemológica do §1º do art. 489 do Código de Processo Civil de 2015, sugerindo a adoção da refutabilidade popperiana como critério de teste teórico para a apuração da racionalidade da fundamentação de decisões judiciais, propiciando a transferência das obscuras razões subjetivas do julgador para a racionalidade objetivada no discurso (linguagem) construído no procedimento mediado pela processualidade.

Isto porque, em um Estado de Direito Democrático, imprescindível que um ato decisional esteja devidamente esclarecido e juridicamente embasado para que qualquer do Povo tenha a possibilidade de dele inferir razões com clareza e sobre ele exercer fiscalização mediante exercício de argumentação crítico-racional (fala processual).[1]

Em uma democracia, qualquer cidadão tem o direito de acesso e esclarecimento acerca dos fundamentos de seu sistema jurídico. Cuida-se de uma relação de total horizontalidade entre Estado e Cidadania, de modo que as funções jurídicas da estatalidade não se veem autorizadas a suprimir ou censurar os espaços discursivos de participação e fiscalização popular efetivas na legitimidade de qualquer decisão.[2]

Desta feita, mostra-se necessário buscar por critérios demarcatórios da validade da fundamentação das decisões que estejam comprometidos com a acessibilidade e esclarecimento dos cidadãos acerca dos conteúdos embasadores dessas decisões, possibilitando-os o pleno e isonômico exercício de crítica e, consequentemente, de participação e fiscalidade processuais. Daí o porquê das presentes conjecturas buscarem amparo teórico no racionalismo crítico de Karl Popper e, claro, na teoria neoinstitucionalista de processo de Rosemiro Pereira Leal.

A construção racional das decisões democráticas não pode suprimir, em qualquer instância proposicional ou enunciativa da discursividade, o direito de ilustração e de crítica do cidadão acerca dos fundamentos sobre os quais seu Direito é construído, interpretado e aplicado. É justamente por isso que o Direito, ao pretender-se efetivamente Democrático, há que se orientar por uma racionalidade que oferte os sentidos de seus conteúdos à constante crítica e refutação contínua, pois, como detecta Karl Popper, “com a evolução da função argumentativa da linguagem, a crítica torna-se o principal instrumento de um crescimento adicional (a lógica pode ser vista como o órganon da crítica).”[3]

Assim, ainda que o Novo Código de Processo Civil dedique-se a otimizar objetivamente os critérios da fundamentação das decisões judiciais através da estipulação de “parâmetros mínimos”[4], ainda há muito o que se aprimorar nesse sentido, a começar pela adoção de um critério de demarcação da decisão judicial de acordo com a lógica popperiana da falseabilidade, a garantir que os fundamentos enunciados na decisão não restem intocáveis ou inalcançáveis pelas partes e, consequentemente, blindados à testificação crítico-argumentativa a ser empreendida pelos legitimados em espaços procedimentais processualizados.

Segundo o critério de demarcação popperiano, um determinado enunciado somente pode ter alguma validade científica se for passível (suscetível) de potencial falseamento, isto é, se o próprio enunciado for proposto de uma maneira tal que seus conteúdos estejam ao alcance da crítica sob a forma de testificações contínuas (refutabilidade), ou melhor, de “provas empíricas em sentido negativo”. Usando as palavras originais do próprio Popper:

Contudo, só reconhecerei um sistema como empírico ou científico se ele for passível de comprovação pela experiência. Essas considerações sugerem que deve ser tomado como critério de demarcação, não a verificabilidade, mas a falseabilidade de um sistema. Em outras palavras, não exigirei que um sistema científico seja suscetível de ser dado como válido, de uma vez por todas, em sentido positivo; exigirei, porém, que sua forma lógica seja tal que se torne possível validá-lo através de recurso a provas empíricas, em sentido negativo: deve ser possível refutar, pela experiência, um sistema científico empírico. [5]

Para facilitar o entendimento do que aqui se aduz, é interessante usar do famoso exemplo hipotético das bolinhas na gaveta, que servirá de base para entender o funcionamento do critério demarcação em Popper (a falseabilidade/refutabilidade). Nas linhas que seguem, portanto, serão contempladas 03 (três) situações que circunscrevem, cada uma, um enunciado diferente a ser objeto de falsificação.

Em uma primeira situação, um indivíduo A assim enuncia para um indivíduo B: “eu tenho uma bolinha vermelha na minha gaveta”. Diante da incredulidade inicial do indivíduo B, o indivíduo A simplesmente abre a gaveta, revelando a bolinha vermelha em seu interior. Perceba-se que o indivíduo A submete seu enunciado a um teste fático de falibilidade, conjuntamente partilhável com outro indivíduo, através do qual é possível perceber que o enunciado é válido (se a bolinha efetivamente estiver na gaveta) ou que o enunciado é inválido (se a bolinha não estiver na gaveta).

Em uma segunda situação, um indivíduo A assim enuncia para um indivíduo B: “eu tenho uma bolinha invisível na minha gaveta”. Diante da incredulidade inicial do indivíduo B, o indivíduo A abre a gaveta. Obviamente, não é suficiente, pois o indivíduo B não pode ver a bolinha dentro da gaveta, já que é invisível. Diante do insucesso da empreitada, o indivíduo A então ilumina a gaveta com um feixe de luz ultravioleta, de modo a possibilitar que B contemple que, surpreendentemente, há ali – de fato – uma bolinha invisível (visível com a luz ultravioleta). Veja-se que o indivíduo A não apenas bradou um enunciado, mas disponibilizou uma metodologia de testificação de seu próprio enunciado, sujeitando-o à possibilidade de falseabilidade.

Em uma terceira e última situação, um indivíduo A assim enuncia para um indivíduo B: “entendo que há uma bolinha invisível na minha gaveta”. Perceba-se que este terceiro enunciado é absolutamente imune a qualquer teste fático ou a qualquer possibilidade de refutação crítica, na medida em que, para que se possa submetê-lo a teste é necessário ser o indivíduo A. Basta analisar a própria composição linguística do enunciado, orientada pelo verbo “entendo” (ato do enunciador), para que vislumbre da impossibilidade de sua impugnação. Afinal, o enunciador A é quem assim entende. Por conseguinte lógico, este terceiro enunciado resta totalmente blindado contra qualquer forma de refutação crítica (propensão à indicação objetiva de falhas) pelo indivíduo B.

Qualquer semelhança dessa terceira situação com aquelas decisões em que um juiz enuncia “a meu sentir“, “segundo meu entendimento“, ou “tenho firmado entendimento no sentido de” (e tantas outras frequentes expressões nesse sentido) não é mera coincidência, eis que esses termos simplesmente condicionam a inteligibilidade dos fundamentos da decisão a um requisito de cunho eminentemente subjetivo: é preciso ser o juiz, um verdadeiro “intérprete autêntico”[6], para ser capaz de vislumbrar da validade daquele fundamento, cuja inteligibilidade não se mostra aberta às partes ou à sociedade.

Perceba-se, portanto, que ao condicionar o entendimento e o esclarecimento acerca dos fundamentos de uma decisão a um critério subjetivo (é preciso ser o sujeito-autoridade/julgador-enunciador para vislumbrar da validade do enunciado), o discurso de construção do decisum extrapola as bordas da demarcação pelo critério da falseabilidade e passa a ser construído em um espaço autoimune de império exclusivo da racionalidade subjetiva do próprio juiz, inatingível pela fiscalidade e pela refutação crítico-argumentativa.

Pior: o fetiche da “justiça judiciária”, intensificado pela atual e perigosa coligação dos discursos da efetividade e da celeridade (jurisdicionais) tende a autorizar fundamentações precárias em nome da chamada “jurisdição relâmpago”, gerando um terreno fértil (desprocessualizado) para a racionalidade subjetivista na formação de precedentes, de modo a institucionalizar a violência normativa pela própria jurisprudência, tal qual ensina Luís Reis Mundim, em obra especializada[7].

Uma decisão cujos fundamentos remetem à racionalidade subjetiva do julgador, por restarem obscuros seus motivos, não pode nem mesmo ser devidamente impugnada pelas vias recursais, já que o que especificamente se deve impugnar são seus fundamentos (art. 932, V, CPC/2015)[8] – e seus fundamentos nunca foram expostos à linguagem objetivamente impugnável.

Trocando em miúdos, uma decisão que não expõe de maneira clara, autônoma e objetiva (independentemente do sujeito) os fundamentos que embasaram sua validade lógico-racional torna-se absolutamente impermeável à eliminação de erros através de argumentos críticos pelos cidadãos constitucionalmente legitimados a participar da construção daquele discurso, haja vista tratar-se de um ato obscuro aos destinatários, somente passível de contemplação pela própria pessoa que o enunciou. Se o sujeito-autoridade que enuncia não é eliminado da oferta de análise do enunciado (Mundo 2)[9], sua autonomia e sua objetividade (Mundo 3)[10] restam logicamente comprometidas.

Desta feita, a processualidade democrática mostra-se absolutamente incompatível com uma decisão fundamentada à lá Chicó, que, na insuficiência ou precariedade de esclarecimentos sobre si mesma, imuniza-se subjetivamente (sob o manto da autoridade do sujeito enunciador) em face de potenciais refutações sobre a validade de seus fundamentos, restando apenas justificar a decisão da mesma forma que a personagem de Ariano Suassuna explicava seus pouquíssimo verossímeis causos, quando sobre eles inquirida: “Não sei! Só sei que foi assim!”[11]

[1] Nesse sentido é o ensinamento de Álvaro Ricardo de Souza Cruz: “Num contexto contemporâneo de democracia participativa, a legitimidade do judiciário só pode ser encontrada na racionalidade de suas decisões, de forma a permitir ao cidadão e, especialmente, às partes a apuração e o exame da fundamentação de cada uma delas. Logo, a fundamentação das decisões judiciárias, bem como de qualquer decisão estatal é elemento indispensável da formação do Estado Democrático de Direito (art. 93, IX da Constituição Federal de 1988). (CRUZ, Álvaro Ricardo de Souza. Jurisdição constitucional democrática. 2ª ed rev. e ampl. Belo Horizonte: Arraes Editores, 2014 p.6).

[2] De acordo com o pensamento de Roberta Gresta, “a eficácia autoincludente da participação jurídica tem por pressuposto a observância da articulação horizontal entre Estado e Cidadania, inscrita na matriz constitucional. Por esse pressuposto, os atos legislativos, administrativos e judiciais resultam de decisões conduzidas e fiscalizadas discursivamente. A imperatividade do ato estatal não se traduz na superioridade hierárquica do Estado em relação à Cidadania, porque os agentes estatais não se encontram autorizados a suprimir o espaço de atuação constitucionalmente assegurado ao cidadão.” (GRESTA, Roberta Maia. Introdução aos fundamentos da processualidade democrática. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014 p. 63).

[3] POPPER, Karl Raimund, Sir. Popper: Textos escolhidos. Organização e tradução David Miller, tradução Vera Ribeiro, Rev. Cesar Benjamin. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC-Rio, 2010, p.70.

[4] A expressão destacada consta da obra de Humberto Theodoro Júnior, Dierle José Coelho Nunes, Flávio Quinaud Pedrón e Alexandre Melo Franco Bahia, ao comentarem as inovações quanto à fundamentação das decisões na discussão legislativa do Novo Código de Processo Civil: “É levando em conta tais premissas que os substitutivos trazidos para a discussão junto à Câmara dos Deputados trouxeram importantes contribuições para pensar os limites e parâmetros que a legislação processual deveria trazer, disciplinando os parâmetros mínimos para uma decisão judicial. Há que se exigir do magistrado um patamar de cumprimento ao esforço argumentativo mínimo de explicitação de seu pensamento.” (THEODORO JÚNIOR, Humberto et al. Novo CPC – Fundamentos e sistematização. – 2ª Ed. rev., atual., ampl. – Rio de Janeiro: Forense, 2015, p. 310).

[5] POPPER, Karl Raimund. A lógica da pesquisa científica. Trad. Leônidas Hegenberg e Octanny Silveira da Mota. 9ª Ed. São Paulo: 2008, p. 42.

[6] O termo “intérprete autêntico” advém da teoria kelseniana, que propõe uma noção autoritarista da interpretação (autêntica) jurídica, a sugerir que a legitimidade da interpretação realizada pelo decisor encontra fundamento na sua própria investidura funcional como autoridade julgadora, incorrendo no perigo do monopólio hermenêutico e enunciativo do direito por parte das autoridades estatais. (KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Tradução João Baptista Machado. 6ª Ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998 p. 245-251)

[7] MUNDIM, Luís Gustavo Reis. Precedentes: da vinculação à democratização – Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2018.

[8] Art. 932. Incumbe ao relator: […] III – não conhecer de recurso inadmissível, prejudicado ou que não tenha impugnado especificamente os fundamentos da decisão recorrida;

[9] O citado Mundo 2 da teoria popperiana pode ser bem detectado no seguinte trecho, inclusive, em contraste com a noção de Mundo 3: “A epistemologia tradicional tem estudado o conhecimento ou o pensamento em sentido subjetivo – no sentido do uso comum das expressões “eu sei” ou “eu estou pensando”. Isso levou os estudiosos da epistemologia a irrelevâncias: pretendiam estudar o conhecimento científico, mas, na verdade, estudaram algo que não tem relevância para esse conhecimento. Pois o conhecimento científico não é um saber no sentido do uso comum das palavras “eu sei”. Enquanto o conhecimento no sentido de “eu sei” pertence ao que chamo de Mundo 2, o mundo dos sujeitos, o conhecimento científico pertence ao Mundo 3, o mundo das teorias objetivas, problemas objetivos e argumentos objetivos.” (POPPER, Karl Raimund, Sir. Textos escolhidos. Organização e tradução David Miller, tradução Vera Ribeiro, Rev. Cesar Benjamin. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC-Rio, 2010 p.59).

[10] Popper também esclarece sobre o que chama de Mundo 3: “Entre os habitantes de meu Mundo 3 encontram-se, mais especialmente, os sistemas teóricos; outros habitantes de igual importância são os problemas e as situações problemáticas. Afirmo que os habitantes mais importantes desse mundo são os argumentos críticos e o que poderíamos chamar – por analogia com um estado físico ou um estado de consciência – um estado de discussão ou um estado de discussão crítica; e, é claro, o conteúdo de periódicos, livros e bibliotecas.” (POPPER, Karl Raimund, Sir. Textos escolhidos. Organização e tradução David Miller, tradução Vera Ribeiro, Rev. Cesar Benjamin. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC-Rio, 2010 p.58).

[11] A referência é à personagem Chicó, da famosa obra “O auto da compadecida”, de Ariano Suassuna. Chicó tem o cacoete de contar causos exagerados e extremamente inverossímeis nos quais geralmente figura como protagonista hiperbólico. Ocorre que, quando é questionado sobre os detalhes contraditórios ou sobre as impossibilidades físicas de suas façanhas, Chicó se imuniza dos questionamentos com a mesma resposta: “Não sei! Só sei que foi assim!” (SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. 26ª ed. Rio de Janeiro: Agir, 1993).

Autor

  • Advogado, graduado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC/MG), especialista em Direito Constitucional pelo Instituto de Desenvolvimento Democrático (IDDE), mestre em Direito Processual pelo Programa de Pós-Graduação da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PPDG-PUC/MG), na linha "O processo na construção do Estado Democrático de Direito".



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