Introdução
O tratamento dispensado à liberdade sindical no ordenamento jurídico nacional merece constante reflexão. O texto constitucional, em seu artigo 8º, afirma expressamente sua garantia. Algumas normas internacionais de direitos humanos ratificadas pelo Brasil também a consagram, como, por exemplo, o Protocolo Adicional à Convenção Americana Sobre Direitos Humanos em Matéria de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (Protocolo de San Salvador), in verbis:
- 1. Os Estados Partes garantirão: a. O direito dos trabalhadores de organizar sindicatos e de filiar-se ao de sua escolha, para proteger e promover seus interesses. Como projeção desse direito, os Estados Partes permitirão aos sindicatos formar federações e confederações nacionais e associar-se às já existentes, bem como formar organizações sindicais internacionais e associar-se à de sua escolha. Os Estados Partes também permitirão que os sindicatos, federações e confederações funcionem livremente; b. O direito de greve.
- O exercício dos direitos enunciados acima só pode estar sujeito às limitações e restrições previstas pela lei que sejam próprias a uma sociedade democrática e necessárias para salvaguardar a ordem pública e proteger a saúde ou a moral pública, e os direitos ou liberdades dos demais. Os membros das forças armadas e da polícia, bem como de outros serviços públicos essenciais, estarão sujeitos às limitações e restrições impostas pela lei.
- Ninguém poderá ser obrigado a pertencer a um sindicato.
Entretanto, a Convenção 87 da Organização Internacional do Trabalho, a principal norma internacional garantidora da liberdade sindical, ainda não foi ratificada pelo país, principalmente em virtude de seu texto ser incompatível com a Constituição Federal de 1988. Nesse contexto, um dos principais empecilhos para a ratificação da norma internacional é o modelo de organização sindical pátrio, estabelecido no inciso II do artigo 8º constitucional, conhecido como unicidade sindical, que limita a criação de entidades sindicais à categoria e à base territorial mínima de um município.
Na mesma linha, Platon Teixeira de Azevedo Neto defende que “É certo que o Brasil respeita a liberdade pessoal de filiação e a auto-organização interna dos sindicatos, porém não alcançou a plenitude da autonomia sindical em razão da unicidade”[1].
Sendo assim, é urgente a necessidade de se buscar harmonização legislativa entre o atual modelo de organização sindical e as normas internacionais, especialmente após o conteúdo das decisões proferidas pela Corte Interameriana de Direitos Humanos nas Opiniões Consultivas n.º 22 de 2016 e 27 de 2021, que serão abordadas no presente estudo.
Liberdade sindical e unicidade sindical: contornos conceituais
A liberdade sindical abrange não apenas o tradicional direito de associação, constituição ou de filiação a uma entidade, mas o direito ao exercício das funções sindicais. Além disso, compreende a atividade sindical, seja ela implementada por uma associação, por grupo profissional ou, até, por apenas um trabalhador. Dessa forma, o núcleo, apesar de não excludente, da definição de liberdade sindical não é constituído nem pelo indivíduo e seu direito de associação, muito menos pela estrutura de organização sindical. Um exemplo de atividade sindical que acontece sem a organização sindical ocorre quando, ainda não criado o sindicato, os trabalhadores considerados isoladamente, implementam uma atividade direcionada para a fundação da entidade sindical[2].
Liberdade sindical compreende um conceito no sentido de se apresentar como um direito de organização e de atuação, ambos indivisíveis e complementares entre si[3].
Para tornar mais didática a exposição do tema, interessante apontar que a liberdade sindical deve ser compreendida por dois aspectos: o individual e o coletivo, sendo que o primeiro deles consiste nas liberdades individuais de filiação, não-filiação e desfiliação e o segundo compreende as liberdades de associação, organização, administração e exercício de funções[4].
Com amparo nas lições de Amauri Mascaro Nascimento e no texto da Convenção 87 da Organização Internacional do Trabalho, Walküre Lopes Ribeiro da Silva apresenta a liberdade sindical dividida em quatro dimensões: liberdade de organização, liberdade de administração, liberdade de exercício de funções e liberdade de filiação[5].
Para o presente estudo, merece ser aprofundada a análise da liberdade de organização, pois é está relacionada aos critérios utilizados para a criação das entidades sindicais, dando origem aos três modelos atualmente existentes: unidade, pluralidade e unicidade sindical.
A liberdade de organização compreende o modelo de organização dos trabalhadores que pode ser dividido em duas formas: espontânea (ou não-preestabelecida pelo poder estatal) e não-espontânea (ou preestabelecida pelo Estado). No primeiro caso, a organização é consequência da autonomia dos grupos que optarão, conforme os critérios que eles próprios julgarem adequados, as melhores formas de se unirem. No segundo, o modelo sindical é “fechado, restrito, uniforme” e a legislação impede que os trabalhadores se organizem por critérios de livre opção. Dessa forma, essa dimensão da liberdade sindical abrange também a questão da pluralidade sindical ou do sindicato único, isto é, a autorização da legislação para que em um certo espaço geográfico, em relação a um mesmo setor econômico, possa existir um ou mais de um sindicato de pessoas que em princípio estariam vinculadas a um mesmo grupo[6].
Nessa medida, em relação à unicidade sindical, é importante registrar que ela consiste na determinação do Estado de permitir a existência de um único sindicato, representativo de um grupo, em determinada área territorial. Possui as seguintes características: a) representação de um grupo por um único sindicato, lembrando que qualquer membro do grupo apenas será representado pela mesma entidade sindical; b) essa representação ocorrerá nos limites territoriais de uma determinada área geográfica; c) esse modelo é estabelecido pelo poder estatal, seja por ato discricionário ou por dispositivo legal[7].
O modelo da unicidade, portanto, é aquele em que se reconhece somente a existência de um único sindicato representativo de seus integrantes, trabalhadores ou empregadores, ao mesmo tempo e no mesmo local para uma mesma categoria[8].
Feitos os registros acima a respeito da unicidade sindical e sua relação com a liberdade sindical, nos próximos tópicos será realizada a análise das opiniões consultivas proferidas pela Corte Interamericana de Direitos Humanos que impactam diretamente o modelo de organização sindical brasileiro.
Corte Interamericana de Direitos Humanos e a interpretação de normas via jurisdição consultiva
Em seu Relatório Anual de 2012, a Corte Interamericana de Direitos Humanos foi expressa ao afirmar que os órgãos jurisdicionais domésticos dos países que ratificaram a Convenção Americana e estão submetidos à jurisdição da Corte, são obrigados a realizar, ex officio, o controle jurisdicional de convencionalidade entre as normas jurídicas domésticas e os tratados de direitos humanos que integram o sistema interamericano. Na hipótese de o controle não ser efetuado pela jurisdição interna de cada um dos Estados, a Corte Interamericana possui competência para concretizar o controle de forma complementar[9]. Nessa medida, quando a Corte Interamericana decide que em um caso concreto a Convenção Americana foi violada, o pronunciamento é vinculante (artigos 62.3 e 66.1 da Convenção) e o Estado tem a obrigação de adaptar e modificar o direito interno, incluindo a própria Constituição como ocorreu no caso de A Última Tentação de Cristo (julgado em 5 de fevereiro de 2011)[10], em que a Corte Interamericana de Direitos Humanos determinou que o Chile modificasse dispositivo de sua Constituição, relacionado à censura televisiva, que contrariava a Convenção, situação que foi concretizada depois da decisão da Corte[11].
Isso não significa que a decisão interamericana implica em uma ab-rogação do preceito local, pois o país é que deve cumprir o pronunciamento regional[12].
Além da jurisdição contenciosa exercida pela Corte, há ainda sua jurisdição consultiva. No exercício desta última, a Corte realiza a interpretação de normas jurídicas internacionais, delimitando o conteúdo delas e também o seu alcance, ainda que inexistente casos contenciosos. André de Carvalho Ramos afirma ser “inegável que a jurisdição consultiva supre o incipiente reconhecimento da jurisdição obrigatória de Cortes Internacionais pelos Estados, servindo as opiniões consultivas para a fixação do conteúdo e alcance do Direito Internacional atual”[13].
Na sua função de intérprete última da Convenção Americana, a Corte Interamericana elabora pareceres consultivos que, além de suas decisões, devem também ser respeitados no âmbito do direito interno, com o objetivo de contribuir com os magistrados e tribunais locais a controlarem a convencionalidade das leis diante dos tratados internacionais de direitos humanos. Assim, os Estados possuem a responsabilidade de recepcionar as opiniões consultivas para aplicar na esfera de seu direito interno, afastando sua responsabilização por violação da Convenção Americana no plano internacional[14].
As opiniões consultivas da Corte Interamericana de Direitos Humanos não obrigam os Estados, todavia, constituem relevante fonte de informações sobre o entendimento que o órgão responsável possui a respeito das obrigações assumidas pelos países signatários do Pacto de São José da Costa Rica. Logo, surge o fenômeno da “coisa julgada interpretada”, que possui a finalidade de nortear o Estado e cujo entendimento deve ser observado para impedir uma responsabilização futura[15].
[1]AZEVEDO NETO, Platon Teixeira de. A justiciabilidade dos direitos sociais nas Cortes Internacionais de Justiça: em busca da proteção efetiva do sujeito trabalhador na contemporaneidade. 2016. Tese (doutorado)
– Universidade Federal de Minas Gerais, Faculdade de Direito. Belo Horizonte. 2016, p. 230.
[2]ERMIDA URIARTE, Oscar. A proteção contra os atos anti-sindicais. Trad. Irany Ferrari. São Paulo: LTr, 1989. p. 20.
[3]NASCIMENTO, Amauri Mascaro. A liberdade sindical na perspectiva do direito legislado brasileiro. In: FREDIANI, Yone; ZAINAGLI, Domingos Sávio (Coords.). Relações de direito coletivo Brasil-Itália. São Paulo: LTr, 2004, p. 25-38
[4]BRITO FILHO, José Claudio Monteiro. Direito sindical. São Paulo: LTr. 2000. p. 88.
[5]SILVA, Walküre Lopes Ribeiro da. Liberdade sindical no contexto dos direitos humanos: a experiência da OIT, Revista do Departamento de Direito do Trabalho e da Seguridade Social, São Paulo, v. 1, n. 1, p. 205-222, jan./jun. 2006.
[6]NASCIMENTO, Amauri Mascaro. Direito sindical. 2. ed. rev. ampl. São Paulo: Saraiva, 1991, p. 117-118.
[7]BRITO FILHO, José Claudio Monteiro. Direito sindical. São Paulo: LTr. 2000, p. 99.
[8]RUSSOMANO, Mozart Victor. Princípios gerais de direito sindical. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1995, p. 77.
[9]VAZ, Paulo Junio Pereira. Controle de convencionalidade das leis. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2016, p. 78-
79.
- [10]HITTERS, Juan Carlos. Control de constitucionalidad y control de convencionalidad. Comparación (Criterios fijados por la Corte Interamericana de Derechos Humanos). Estudios Constitucionales, ano 7, n. 2, p. 109- 128, 2009.
- [11]AGÜÉS, Néstor Obligaciones internacionales y control de convencionalidad. Estudios
Constitucionales, Centro de Estudios Constitucionales de Chile Universidad de Talca, año 8, n. 1, p. 117- 136, 2010. O caso analisado pela Corte Interamericana verificou que o disposto no artigo 19, n. 12 da Constituição chilena estabelecia a censura prévia na produção cinematográfica, texto completamente contrário ao conteúdo do artigo 13 da Convenção Americana que assegura o direito de liberdade de pensamento e de expressão. In MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. O controle jurisdicional da convencionalidade das leis. 3. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais. 2013, p. 159-160.
[12]Entretanto, nos delitos contra a humanidade, a coisa parece ter um matiz diferenciado, pois nos casos
Barrios Altos, Tribunal Constitucional de Peru e La Cantuta, a Corte Interamericana se comportou como um verdadeiro Tribunal Constitucional declarando inaplicáveis em todo o país com efeito erga omnes as leis de anistia ditadas no Peru. In HITTERS, Juan Carlos. Control de constitucionalidad y control de convencionalidad. Comparación (Criterios fijados por la Corte Interamericana de Derechos Humanos). Estudios Constitucionales, ano 7, n. 2, p. 109-128, 2009, p. 109-128.
[13]RAMOS, André de Carvalho. Processo internacional de direitos humanos, 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 241.
[14]MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. O controle jurisdicional da convencionalidade das leis. 3. ed. rev. atual. e
ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais. 2013, p. 105.
[15]RAMOS, André de Carvalho. O diálogo das cortes: O Supremo Tribunal Federal e a Corte Interamericana de Direitos Humanos, In: AMARAL JUNIOR, Alberto do; JUBILUT, Liliana Lyra (Orgs). O STF e o direito internacional dos direitos humanos. São Paulo: Quartier Latin do Brasil, 2009, p. 805-850.