Como vem sendo bastante discutido nos textos publicados nesta Coluna, o movimento constitucionalista posterior à Segunda Guerra Mundial cuidou de ofertar bases à uma atividade jurisdicional que propiciasse às partes real influência sobre os conteúdos decisórios, assim como para a participação em todas as esferas de poder, ao passo em que “o processo começa a ser percebido como um instituto fomentador do jogo democrático, eis que todas as decisões devem provir dele, e não de algum escolhido com habilidades hercúleas”[1].
Não por acaso, pensar o processo como forma de controle ao exercício do poder e viabilizador da construção participada de decisões comuns, são pontos que derivam da necessidade de se quebrar todo e qualquer protagonismo.
Inspirado na necessidade de rompimento com protagonismo do juiz nas decisões, o processualista italiano Elio Fazzalari cuidou de desenvolver um modelo teórico que, em reforço a críticas já existentes acerca de uma relação jurídica processual[2], responsável por colocar o processo como instrumento da jurisdição e dar bases à concepção de um protagonismo judicial[3], inverte a lógica de importância do tripé estruturante do direito processual e coloca as partes definitivamente habilitadas a gerar real influência sobre a atividade decisória.
De acordo com o raciocínio traçado por Fazzalari, não seria a jurisdição o centro do mencionado tripé estrutural do direito processual (Ação, Jurisdição e Processo), mas sim o processo e a sua capacidade de estruturar a formação de provimentos decisórios.
Deste modo, mais do que um indivíduo solitário, habilitado a ouvir os argumentos das partes e utilizá-los apenas caso entenda devido, diante sua plena capacidade de apresentar a solução mais justa e consentânea com os valores por ele estabelecidos[4], a estrutura do processo, enquanto procedimento realizado em contraditório, permitiria que as partes pudessem apresentar argumentos que comporiam a estrutura da decisão final. A atividade das partes em contraditório, abraçando de forma definitiva o devido processo legal na atividade jurisdicional, teria o condão de viabilizar a oportunidade das partes se fazem presentes na construção da decisão que elas próprias experimentariam ao final.
A diferenciação feita por Fazzalari, entre processo e procedimento, é o ponto fundamental de descaracterização do processo enquanto instrumento de atuação da jurisdição. Isto porque, segundo Fazzalari, o procedimento seria a sequência de normas, atos e posições subjetivas[5], que se unem e relacionam entre si de forma encadeada e em constante pressuposição, como fase preparatória da decisão final.
Em outras palavras, o “procedimento não é atividade que se esgota no cumprimento de um único ato, mas requer toda uma série de atos e uma série de normas que os disciplinam, em conexão entre elas, regendo a sequência de seu desenvolvimento”[6], pois, em tal conexão “o cumprimento de uma norma da sequência é pressuposto da incidência de outra norma e da validade do ato nela previsto.”[7]
Já o processo seria uma espécie do gênero procedimento, a partir da incorporação de um importantíssimo aspecto que lhe dará caracterização própria: o contraditório.
Fazzalari enxerga no contraditório entre as partes a capacidade dialética que torna o procedimento não apenas uma sequência encadeada de normas, atos e posições jurídicas, mas a capacidade de que tal estrutura possibilite o debate entre as partes para a contribuição ao provimento que está sendo gestado[8].
Na visão do próprio autor, o processo se caracteriza como um procedimento “do qual participam (são habilitados a participar) aqueles em cuja esfera jurídica o ato final é destinado a desenvolver efeitos: em contraditório, e de modo que o autor do ato não possa obliterar as suas atividades.”[9] Veja que o autor do ato (juiz), deve respeitar a atividade dialética das partes no procedimento, caracterizada tal dialeticidade, viabilizada pelo contraditório, como elemento necessário para que as partes atuem na formação do provimento, cujos efeitos suportarão.
Essa estrutura normativa e dialógica se caracterizará como processo na visão de Fazzalari, a partir do fornecimento amplo pelas partes de subsídios hábeis à formação da decisão pelo juiz, ou seja, uma estruturação formal na construção do provimento final.
Nesse sentido, a cisão entre processo e procedimento, somado a importância técnica atribuída ao contraditório, dão à concepção fazzalariana um lugar de destaque dentre as teorias do processo e da jurisdição. Nesse sentido, comenta Aroldo Plínio Gonçalves:
No direito processual atual, concebido como sistema normativo, o processo já não pode ser reduzido a uma mera legitimação pelo procedimento, não porque se devam dispensar as formas, mas porque o processo já não é mais apenas um rito para justificar uma sentença. A estrutura jurídica que permitiu o desenvolvimento do conceito de processo construído sobre o contraditório é resultado de muitas conquistas históricas. O procedimento desenvolvido em contraditório entre os interessados na decisão final construiu-se não como uma forma de participação dos jurisdicionados para justificar um ato imperativo final do Estado, mas como garantia da participação dos detentores de interesses contrapostos, em simétrica paridade, para interferir na formação daquele ato.[10]
Dessa forma, a estruturação de processo e procedimento por Fazzalari, quebrando no plano técnico o dogma de um privilégio cognitivo do julgador a partir de uma visão do processo como estrutura de legitimação para a construção dos provimentos, de forma conjunta deste com as partes,[11] permite reafirmar a inversão de importância do tripé estrutural da ciência processual.
A jurisdição, nessa toada, deixa de lado uma configuração calcada no poder do Estado, personificado na figura do juiz ou tribunal, para se assentar em bases processuais, já que a participação das partes na atividade de formação das decisões se torna determinante.
Como ressalta o próprio Fazzalari, destacando a dita inversão do tripé estrutural:
Essa atividade de conhecimento dos pressupostos do provimento jurisdicional, isto é, a atividade por meio da qual o juiz verifica que ocorrem, no caso concreto, as circunstâncias em presença das quais deve ser acionada a norma que lhe impõe o dever de emanar aquele provimento, é longa, fatigosa e custosa; dela participam não somente o juiz, mas também seus auxiliares […] e, sobretudo, os sujeitos em cuja esfera jurídica a medida jurisdicional emanada é destinada a incidir em contraditório entre eles.
[…]
A série da atividade em questão constitui – compreende-se bem – um ‘processo’, o qual se qualifica como ‘jurisdicional’, porque é o processo por meio e mediante o qual é conduzido o provimento jurisdicional.
[…]
Portanto, o estudo da jurisdição (e da jurisdição civil) deve basear-se sobre o processo. O processo é a única estrutura na qual, e em virtude da qual, os vários aspectos daquela atividade fundamental podem ser ordenados de modo coerente; com uma diferença, mas a meu ver, diferença que representa um progresso em relação aos precedentes sistemas fundados sobre a ‘ação’ e sobre a ‘relação jurídico processual’. Esses conceitos, de matriz pandectística, elaborados e utilizados com fins reconstrutivos sob a sugestão das categorias civilísticas e da considerada dependência do processo do direito subjetivo, deveriam ter sido abandonados, já há muito tempo, porque superados e impróprios. De um lado, a ‘ação’ não pode abarcar as características do processo, acima enunciadas, e isso vale não somente para a velha, mas persistente visão segundo a qual ação consistiria e se exauriria na faculdade de colocar em movimento o processo, isto é, segundo o ponto de vista de quem o promove e limitadamente do ponto de vista de sua iniciativa (proposição e demanda); mas também para a visão que atualmente configura a ação como série de faculdades, poderes e deveres, tantos quantos a lei assinale a cada parte guiando a sua conduta ao longo de todo o processo, já que a série de condutas é um posterius e não um prius na categoria do processo, não podendo exauri-lo.
Por outro lado, o clichê da ‘relação jurídica’, que foi útil, ao seu tempo, para entender a ação como posição jurídica subjetiva em uma estrutura mais articulada, a da relação jurídica, uma vez que ela é considerada sob o plano das posições subjetivas, é incompatível com o processo, pois a relação jurídica é um esquema simples e incapaz de conter a complexidade do processo (assumir que aquela relação processual é relação jurídica complexa, é pura convenção de linguagem, que leva em conta a realidade, mas não a explica, o que somente remete novamente a uma outra convenção); e, como esquema estático, não pode representar-lhe a dinâmica.[12]
O dinamismo proporcionado pelas bases processuais, fornece às partes a capacidade de atuar de forma conjunta com o decisor, algo que a relação jurídica processual, base de uma visão instrumental e meramente tecnicista do processo, nunca foi capaz de permitir. Nota-se, a partir de então, o claro rompimento com a visão do protagonismo do decisor na realização da atividade jurisdicional, assim como da própria centralidade existente na junção da estatalidade e da substitutividade da jurisdição como elementos caracterizadores, o que já foi possível afirmar em um último ensaio trazido nesta Coluna[13].
As ideias de Fazzalari permitem gatilho importante a viabilizar a democratização no contexto do direito processual, como a visão que oferta ao contraditório o caráter de garantia de influência e não surpresa[14] na construção participada das decisões jurisdicionais, afeta ao processualismo constitucional democrático.
O rompimento com uma visão juricêntrica, calcada apenas na importância do Estado-juiz como canalizador e solucionador dos problemas em sociedade, adicionando o necessário aspecto procedimental-técnico que permitisse às partes atuar de forma mais ativa na construção das decisões judiciais, a partir do contraditório como pilar, apresenta verdadeira pedra de toque concebida pelo jurista italiano para fornecer bases a uma definitiva democratização da atividade jurisdicional.
[1] NUNES, Dierle. Processo Jurisdicional Democrático. Curitiba: Juruá, 2012, p. 39-49.
[2] NUNES, Dierle. Processo Jurisdicional Democrático. Curitiba: Juruá, 2012, p. 100.
[3] NUNES, Dierle. Processo Jurisdicional Democrático. Curitiba: Juruá, 2012, p. 183.
[4] NUNES, Dierle. Processo Jurisdicional Democrático. Curitiba: Juruá, 2012, p. 183; STRECK, Lenio Luiz. O que é isto – decido conforme minha consciência? 4ª. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2013, p. 26-27.
[5] FAZZALARI, Elio. Instituições de Direito Processual. Campinas: Bookseller, 2006, p. 113-115.
[6] GONÇALVES, Aroldo Plínio. Técnica Processual e Teoria do Processo. 2ª. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2016, p. 93.
[7] GONÇALVES, Aroldo Plínio. Técnica Processual e Teoria do Processo. 2ª. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2016, p. 95.
[8] “O processo começa a se definir pela participação dos interessados no provimento na fase que o prepara, ou seja, no procedimento. Mas essa definição se concluirá pela apreensão da específica estrutura legal que inclui essa participação, da qual se extrairá o predicado que identifica o processo, que é o ponto de sua distinção: a participação dos interessados, em contraditório entre eles. […] Chega-se, assim, ao processo como ‘espécie’ de procedimento realizado através do contraditório entre os interessados, que, no processo jurisdicional, são as partes.” (GONÇALVES, Aroldo Plínio. Técnica Processual e Teoria do Processo. 2ª. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2016, p. 96-97.)
[9] FAZZALARI, Elio. Instituições de Direito Processual. Campinas: Bookseller, 2006, p. 118-119.
[10] GONÇALVES, Aroldo Plínio. Técnica Processual e Teoria do Processo. 2ª. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2016, p. 158-159.
[11] NUNES, Dierle. Processo Jurisdicional Democrático. Curitiba: Juruá, 2012, p. 196.
[12] FAZZALARI, Elio. Instituições de Direito Processual. Campinas: Bookseller, 2006, p. 138-141.
[13] Confira em https://www.contraditor.com/monopolio-jurisdicional-pelo-estado/
[14] NUNES, Dierle; BAHIA, Alexandre; HORTA, André; SILVA, Natanael Lud. O Contraditório como garantia de Influência e não-surpresa no CPC-2015. In: Normas Fundamentais. Salvador: Juspodivm, 2016, p. 217.