À Evie Malafaia
I
Princípio não é norma jurídica. Não sendo norma jurídica, não incide. Não incidindo, não irradia efeitos jurídicos. Não irradiando efeitos jurídicos, não pode criar direitos subjetivos (pretensões, faculdades, poderes ou imunidades) (obs.: abstrair-se-á aqui a disputa analítica que entre si travam as expressões dogmáticas «direito subjetivo», «situação jurídica ativa» e «posição jurídica ativa»). Apenas a regra é norma jurídica e, dessa maneira, pode incidir, irradiar efeitos jurídicos e criar direitos subjetivos. Logo, os direitos fundamentais não podem decorrer de princípios, mas de regras. Não se pode falar em «princípios de direito fundamental», senão em regras de direito fundamental. Desse modo, não se pode falar, por exemplo, em «princípio constitucional do contraditório», «princípio constitucional da ampla defesa» e «princípio constitucional do juiz natural», mas em regra constitucional do contraditório (cuja incidência faz nascer o direito subjetivo fundamental ao contraditório), regra constitucional da ampla defesa (cuja incidência faz nascer o direito subjetivo fundamental à ampla defesa) e regra constitucional do juiz natural (cuja incidência faz nascer o direito subjetivo fundamental ao juiz natural) (até porque, como já se disse alhures, os princípios não fazem parte do ordenamento jurídico e, por essa causa, não podem ser adjetivados em função dos diferentes escalões hierárquicos da estrutura piramidal; assim sendo, expressões como «princípio constitucional», «princípio legal» e «princípio regulamentar» são um non sense – cf. nosso Princípio não é norma – 5ª parte. <https://cutt.ly/WE2umpL>). A regra constitucional sobre direito subjetivo fundamental pode consistir, por exemplo, em: a) regra sobre pretensão (ex.: pretensão à individualização da pena – CF/1988, art. 5º, XLVI); b) regra sobre faculdade (ex.: liberdade de associar-se ou de permanecer associado – CF/1988, art. 5º, XX); c) regra sobre poder (ex.: poder de reunião pacífica – CF/1988, art. 5º, XVI); d) regra sobre imunidade (ex.: inextraditabilidade do brasileiro – CF/1988, art. 5º, LI). Contudo, é de regra jurídica que sempre se trata.
Por esse motivo, a comunidade dos intérpretes da Constituição não se deve impressionar com o estilo fragmentário, lacônico, retórico e, muitas vezes, obscuro dos dispositivos sobre direitos subjetivos fundamentais. Não deve entrever nessa indeterminação semântica a enunciação de princípios. Mesmo porque não existe relação necessária entre vaguidade e principiologicidade. Nem todo dispositivo vago enuncia princípio. Nem todo princípio se enuncia em dispositivo vago. Regras existem que se enunciam em dispositivos vagos. Na realidade, há enunciação de princípio quando ela se estrutura em uma proposição categórica [«A deve ser»]; por seu turno, há enunciação de regra quando ela se estrutura em uma proposição hipotético-condicional [«Se A, então B deve ser»]. Por isso, à comunidade dos intérpretes da Constituição cabe o esforço hermenêutico de desvelar os elementos constituintes da regra jurídica de direito fundamental. Enfim, cabe descobrir o que vai na hipótese de incidência [it.: fattispecie, situazione-tipo ipotizzata; al.: Tatbestand] e o que vai na consequência jurídica [it.: statuzione, conseguenza giuridica; al.: Rechtsfolge]. A metódica dos direitos fundamentais é praticamente absorvida por esse desafio. Nada é mais árduo e, ao mesmo tempo, mais importante em matéria de direitos fundamentais.
Isso não significa, porém, que as constituições não enunciem princípios. Ao contrário: geralmente, elas os preveem de forma expressa e profusa. Aliás, tanto mais os preveem quanto mais sejam dirigentes. Os «objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil» [CF/1988, art. 3º] são helpful examples de princípios. São devidas: a construção de uma sociedade livre, justa e solidária (inciso I); a garantia do desenvolvimento nacional (inciso II); a erradicação da pobreza e da marginalização, bem como a redução das desigualdades sociais e regionais (inciso III); a promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (inciso IV). Cada um desses incisos consubstancia um imperativo jurídico-categórico e, portanto, um princípio de direito (obs.: a propósito, eles são excelentes exemplos para se ilustrar a teleologicidade dos princípios, o que faz do Estado aristocrático-tribunalício de direito jurisprudencial um Estado menos nomocrático que telocrático). É devida a construção de uma sociedade livre, justa e solidária [«A deve ser»]. É devido o desenvolvimento nacional [«B deve ser»]. É devida a erradicação da pobreza e da marginalização [«C deve ser»]. É devida a redução das desigualdades sociais e regionais [«D deve ser»]. É devida a promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação [«E deve ser»]. Note-se a inexpressibilidade absoluta desses «objetivos fundamentais» em imperativos hipotético-condicionais e, em consequência, a impossibilidade absoluta de o juiz aplicar diretamente qualquer um deles para resolver casos práticos. Destarte, não há outra maneira de se instituírem «normas definidoras de direitos fundamentais com aplicação imediata» [CF/1988, art. 5º, § 1º], senão por meio de regras. Em geral, as constituições preveem tanto princípios (que são quase-normas) quanto regras de direito fundamental (que são normas propriamente ditas). Sem embargo, uma coisa não se reduz à outra. Princípios e direitos fundamentais têm naturezas distintas entre si.
II
Para se atender à boa técnica legislativa, é de bom alvitre que os dispositivos sobre regras lhes explicitem tanto a hipótese de incidência quanto a consequência jurídica. No entanto, razões excepcionais distanciam dessa técnica os dispositivos constitucionais sobre direitos fundamentais. Na tradição redacional das constituições escritas, os direitos fundamentais constam de um rol descomplicado, que os enuncia apenas pelas consequências jurídicas. Não se faz qualquer menção às hipóteses de incidência (o que talvez explique a dificuldade de parte considerável da doutrina em reconhecer os direitos fundamentais como regras). Ainda assim, nem todos os elementos da consequência jurídica estão aclarados. Desse jeito, os dispositivos constitucionais sobre direitos fundamentais sofrem de uma dupla privação redacional: explicitação inexistente da hipótese de incidência + explicitação incompleta da consequência jurídica. Entretanto, nada disso pode servir de justificativa para se negar «regridade» aos direitos fundamentais. É importante ressaltar que o leitor almejado pelas cartas políticas sobre direitos fundamentais é o cidadão comum. Logo, para haver acessibilidade leiga ao texto, é preciso que a analiticidade técnica ceda passo a uma sinteticidade vulgar. O didatismo, que instrui o indivíduo simples do povo, deixa órfão o jurista mais especializado. Decerto o problema não é unicamente dos dispositivos constitucionais sobre direitos fundamentais, mas da Constituição como um todo. Isso explica em parte o estatuto peculiar da hermenêutica constitucional, que sempre navega por uma linguagem semidesértica.
De todo modo, nos dispositivos constitucionais sobre direitos fundamentais, o problema se agrava. Além disso, seria impraticável redigir uma lista linear de direitos fundamentais e, ao mesmo tempo, minudenciar a hipótese de incidência de cada um deles. Por isso, para desvendar os elementos descritivos da hipótese de incidência, o intérprete há de se socorrer do conjunto das conexões explícitas e implícitas que o dispositivo constitucional sobre direito fundamental mantém dentro e fora de si. Uma dessas conexões é com a tradição. O sentido histórico-prático dos direitos fundamentais é liberal. Eles visam proteger o indivíduo limitando os poderes do Estado. Por conseguinte, os direitos fundamentais são, em essência, direitos subjetivos de liberdade. Um texto normativo sobre direito fundamental tem como premissa contextual o poder do Estado e, dessa forma, a possibilidade de esse poder ser exercido imoderadamente. Logo, direitos fundamentais são direitos de liberdade que a Constituição imputa ao cidadão, cujo suporte fático é uma relação de direito público in potentia ou in actu. No polo ativo dessa relação jurídica está o Estado, que ostenta um poder [ing.: power; esp.: poder; it.: potere; al.: Leistung]; no polo passivo, o cidadão, que ostenta o correlato estado de sujeição [ing.: liability; esp.: sujeción; it.: soggezione; al.: Haftung]. Todavia, só se pode descobrir a qualidade jurídica do cidadão que ocupa essa relação de poder analisando-se o enunciado da consequência jurídica. Afinal, o alguém que titulariza um direito subjetivo fundamental de liberdade é o mesmo alguém que está ou pode estar submetido a um determinado poder estatal e que, destarte, precisa de meios de defesa ou resistência contra o eventual exercício arbitrário do poder. Em sentido reverso: Se B está ou pode estar assujeitado a um determinado poder do Estado [= hipótese de incidência; fattispecie; situazione-tipo ipotizzata; Tatbestand], então B é titular de um específico direito subjetivo fundamental de liberdade (pretensão, faculdade, poder ou imunidade) contra o Estado [= consequência jurídica; statuzione; conseguenza giuridica; Rechtsfolge].
Convém sublinhar que um mesmo suporte fático pode ser descrito como hipótese de incidência de diversas regras constitucionais sobre direitos fundamentais. Estando ou podendo estar submetido a uma relação jurídica de direito tributário [= suporte fático base], v. g., o cidadão-contribuinte é titular de vários direitos subjetivos fundamentais de liberdade contra o Estado-fisco (as chamadas «limitações constitucionais ao poder de tributar», que formam o estatuto do contribuinte): direito à estrita legalidade da tributação [art. 150, I], direito à isonomia tributária [art. 150, II], direito à irretroatividade da lei impositiva [art. 150, III, a], direito à anterioridade da lei impositiva [art. 150, III, b e c], direito a uma lei impositiva não confiscatória [art. 150, IV], direito a imunidades de impostos [art. 150, VI]. etc. Da mesma maneira, estando ou podendo estar submetido a uma relação jurídica de direito jurisdicional [= suporte fático base], v. g., o cidadão-jurisdicionado é titular de vários direitos subjetivos fundamentais de liberdade contra o Estado-jurisdição (as chamadas «limitações constitucionais ao poder de judicar», que formam o estatuto do jurisdicionado): direito ao juiz natural [art. 5º, LIII], direito a um procedimento em contraditório [art. 5º, LIV], direito a que esse procedimento esteja estabelecido em lei [art. 5º, LIV], direito à ampla defesa [art. 5º, LV], direito à presunção de inocência [art. 5º, LVII], direito ao advogado [art. 133], etc. De ordinário, porém, para cada direito fundamental existe um suporte fático que lhe é próprio e específico. No direito subjetivo fundamental de propriedade [art. 5º, XII], e. g., impede-se que nas diferentes relações jurídicas de poder-sujeição o Estado prive o cidadão da instituição da propriedade (a qual tem os seus limites positivos e negativos fixados obviamente em lei ordinária federal).
III
Perceba-se, portanto, que o sujeito passivo da relação jurídica de direito fundamental é inalteradamente um ente estatal. Nesse sentido, «os direitos fundamentais limitam os poderes do Estado» (PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Comentários à Constituição de 1967; com a Emenda n. 1 de 1969. t. IV. 3. ed. RJ: Forense, 1987, p. 621) (d. n.). Daí o caráter contraestatal e, por consequência, contrapotestativo dos direitos fundamentais. Eles podem ter caráter: i) contralegislativo (quando limitam o poder estatal de legislar – ex.: direito à proporcionalidade das leis; direito à razoabilidade das leis); ii) contra-administrativo (quando limitam o poder estatal de administrar – ex.: direito à publicidade dos atos administrativos; direito à motivação dos atos administrativos); iii) contraexpropriatório (quando limitam o poder estatal de desapropriar – ex.: direito à justa e prévia indenização em dinheiro na desapropriação por necessidade ou utilidade pública; direito à inexpropriabilidade, para fins de reforma agrária, da propriedade produtiva e da pequena e média propriedade rural); iv) contrajurisdicional (quando limitam o poder estatal de judicar – ex.: direito ao juiz natural; direito à presunção de inocência); v) contra-acusatório (quando limitam o poder estatal de acusar – ex.: direito a um promotor imparcial; direito a um promotor independente); vi) contrapunitivo (quando limitam o poder estatal de punir – ex.: direito à integridade física e moral; direito à individualização da pena); vii) contratributário (quando limitam o poder estatal de tributar – ex.: direito à anterioridade da lei impositiva; direito à irretroatividade da lei impositiva); viii) contramigratório (quando limitam o poder estatal de controle migratório – ex.: direito à inextraditabilidade de estrangeiro por crime político ou de opinião; direito ao asilo político); ix) contrainvestigativo (quando limitam o poder estatal de investigar – ex.: direito à inviolabilidade domiciliar; direito ao sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas); x) contrarreformador (quando limitam o poder estatal de reformar a Constituição – ex.: direito à forma federativa de Estado; direito ao voto direto, secreto, universal e periódico); etc.
Logo, não existe relação jurídica de direito fundamental entre dois particulares. Não existe a chamada «eficácia horizontal dos direitos fundamentais» [Drittwirkung von Grundrechten]. Aliás, ela tem servido de justificativa para um abominável panconstitucionalismo, o qual tem sufocado as iniciativas públicas e privadas, transformado o Estado e a sociedade em meros «despachantes» ou «executores materiais» da vontade constituinte e, em consequência, desnaturado o Estado democrático parlamentar em um Estado de jurisdição constitucional. Direito subjetivo de particular contra particular – ainda que proteja um deles limitando o poder privado do outro e ainda que se assemelhe ao conteúdo de um direito fundamental – é direito subjetivo atribuído por regra jurídica de direito infraconstitucional (mais especificamente, por regra legal). Em contrapartida, o sujeito ativo da relação jurídica de direito fundamental varia. O caput do artigo 5º da CF/1988 menciona tão apenas os «brasileiros e estrangeiros residentes no País». No entanto, o dispositivo constitucional disse obviamente muito menos do que pretendia (lex minus dixit quam voluit). Não só os brasileiros e estrangeiros residentes no País estão assujeitados aos poderes do Estado brasileiro, podendo ser eventualmente vitimados por arbítrio. Isso posto, são igualmente protegidos pelos direitos fundamentais, por exemplo: i) os estrangeiros não residentes no País que estejam de passagem pelo território nacional, ou que aqui tenham bens ou negócios; ii) as pessoas jurídicas de direito privado; iii) o Ministério Público, a Fazenda Pública, os Estados estrangeiros e os organismos internacionais, que podem ser vitimados pelo arbítrio do Estado-juiz brasileiro nas causas em que sejam partes ou intervenientes, necessitando assim de direitos fundamentais contrajurisdicionais (processo, legalidade do procedimento, advocacia, contraditório, ampla defesa, juiz natural, imparcialidade judicial, publicidade, fundamentação das decisões judiciais, vedação da prova ilícita, presunção de inocência, reclamação ao CNJ, reclamação às ouvidorias de justiça etc.).
Tudo isso mostra que os direitos fundamentais não se definem exatamente pelo sujeito ativo, mas pelo sujeito passivo. Eles não são sempre direitos «individuais», «do indivíduo», «do particular», embora comumente sejam. A titularidade pelo indivíduo é um traço corriqueiro, mas inconstante dos direitos fundamentais; portanto, é um traço inessencial. É bem verdade que, historicamente, a gênese dos direitos fundamentais se radica no indivíduo. Todavia, não se trata de um invariante do fenômeno. Na realidade, se algo permanece imutável, é isto: os direitos fundamentais como: 1) direitos subjetivos de liberdade; 2) contra o Estado; 3) atribuídos por regras jurídicas de direito constitucional. Como se nota, nenhuma principiologicidade há nisso. Nenhum quid de teleologicidade caracteriza os direitos fundamentais. Eles não refletem nenhum «estado ideal de coisas» a ser alcançado ou promovido. Eles são «nada mais» do que posições jurídicas subjetivas ativas (pretensões, faculdades, poderes, imunidades etc.), que, como tal, somente podem nascer da incidência de regras de direito.
IV
A combinação entre a teoria normativista dos princípios [= princípio como norma autoaplicável] e a teoria principiologista dos direitos fundamentais [= direito fundamental como princípio] faz do juiz um déspota preguiçoso. Faz dele um déspota, uma vez que lhe possibilita customizar o sistema de direito positivo vigente, criando regras jurídicas que lhe convém, suprimindo regras jurídicas que não lhe convém e modificando regras jurídicas ao seu gosto pessoal. Para tanto, o juiz pode: a) inventar ex nihilo um «princípio de direito fundamental», mesmo que ele não esteja positivado expressamente em dispositivo constitucional, nem esteja subentendido em diferentes regras constitucionais; b) «aplicar per saltum» um «princípio de direito fundamental», criando ao seu exclusivo talante uma regra judicial de eficácia ex tunc, que seja capaz de concretizar ex post facto o valor subjacente ao direito fundamental; c) invocar um «princípio de direito fundamental» para dele extrair uma regra judicial implícita «mais justa», que suprima uma regra legal expressa «menos justa» e, dessa maneira, «inconstitucional»; d) refazer a ponderação entre «princípios de direito fundamental» que esteja supostamente à base de uma determinada regra legal expressa, a fim de que o princípio prevalente se torne prevalecido e vice-versa, modificando a opção política do legislador e, desse modo, reescrevendo a regra que ele próprio esquematizou. Em vista disso, o juiz se desnatura de autoridade jurisdicional em uma autoridade pseudojurisdicional microlegislativa completamente desparametrizada. Em lugar de protegerem o cidadão do Estado, os direitos fundamentais são capturados pelo Estado-juiz, que deles se utiliza para usurpar função legislativa e, com isso, aumentar os seus poderes. Daí por que a teoria dos direitos fundamentais como «normas-princípios» é o requisito primeiro para se demolir o Estado democrático parlamentar instituído pela CF/1988; em contraposição, a teoria dos direitos fundamentais como regras é o requisito primeiro para se frear o Estado de jurisdição constitucional proscrito pela CF/1988.
Por sua vez, a combinação entre a teoria normativista dos princípios e a teoria principiologista dos direitos fundamentais faz do juiz um preguiçoso. Isso porque o livra da incômoda tarefa hermenêutica de desvelar: e) todos os elementos constituintes da hipótese de incidência e da consequência jurídica da regra jurídica de direito fundamental; f) o «âmbito factual» [Sachbereich] exclusivo da regra jurídica de direito fundamental, dentro do qual somente ela faz sentido e que não pode ser regulado por nenhuma outra regra jurídica de direito fundamental com «pretensão de concorrência», «colidência» ou «conflito» (sobre a noção de Sachbereich, v., p. ex.: DALLA BARBA, Rafael Giorgio. Comentários sobre o caso «Grafiteiro de Zurique» – uma alternativa para delimitação da área de proteção da liberdade artística. <https://cutt.ly/RR8egUv>). Em suma, o juiz se liberta de uma metódica e, por conseguinte, de uma disciplina objetivo-racional que lhe permita elucidar todos os aspectos da regra jurídica de direito fundamental. Pior: age como um oportunista, que tira proveito da porosidade dos dispositivos constitucionais para subverter a razão de ser dos direitos fundamentais e se tornar um microlegislador indômito ao sabor das próprias vontades. Nesse sentido, o juiz rebaixa a ciência dogmática do direito a um romantismo, que rompe com os espartilhos das formas fixas e regulares, passando a assumir-se fluido e relativo. Não por outro motivo, no discurso da jurisprudência dos princípios, sobressaem o colorido, o idealismo e a emotividade (um bom exemplo é a decisão ativista proferida pelo Pleno do STF no julgamento da ADIn 4277 e da ADPF 132, que reconheceu a união estável para casais do mesmo sexo).
Ao fim e ao cabo, embora disfarçada sob um verniz analítico, a ideia de direito fundamental como «norma-princípio» é uma das peças axiais para que o normativismo seja romanticamente destruído e, como ele, a própria Razão. É interessante lembrar que essa obsessão por se modificar profundamente o ordenamento jurídico sem se tocar em uma única vírgula das leis é própria das autocracias. Em uma das mais abjetas autocracias do Poder Executivo, os textos de direito positivo à época vigentes foram interpretados para se adequarem à «ordem concreta» declarada objetivamente pelo Führer, visto que só ele podia expressar a vontade verdadeira do povo, em sua forma mais pura e não corrompida. Pois na atual autocracia judiciária brasileira não é diferente: as regras legais expressas estão sendo «reescritas» a partir de princípios para se adequarem aos «imperativos da ciência» declarados objetivamente pelo STF, que atribui a si o papel herculano de «empurrar a história na direção certa». Tanto na Alemanha nazista quanto no Brasil de hoje, busca-se atender a pretensos reclamos populares não acolhidos em razão do «déficit de representatividade». E mais uma vez se assiste à substituição trágica de um pensamento formalista desde regras por um pensamento concretista desde princípios. Para se salvar o Brasil dos iluministas de toga e da casta doutrinária que os apoia, é oportuno repetir sempre e sempre: «princípio não é norma», «princípio não é norma», «princípio não é norma»…